Da falta de rumo & outros (tristes) tópicos (nova e inesperada carta de AmAtA) As intertextualidades são, como se vê, um jogo a que não gosto de resistir, mas que por vezes me “avaria” um pouco o sentido das frases...é , em parte, o caso do título desta segunda epístola de hoje, onde a tristeza surge associada aos assuntos a tratar, quando o enfoque que me norteia é, se não o contrário, pelo menos razoavelmente distante dessa visão melancólica. Afinal, o tema de partida também não é propriamente alegre: numa passagem de um livro que li por esta altura, há um ano, de Robert Dessaix (Cartas de Veneza), o narrador diz que hoje se tende a usar demasiado a palavra depressão para situações e estados de alma que não a justificam, uma vez que se trataria quase sempre de um sentimento de desorientação, a que ele chamou “falta de rumo”. Lembrei-medestas linhas porque, em particular durante o pico do verão passado (ou até meados de Setembro, talvez), alguém se referia à sua depressão, num certo dia, ou dias, por causas sobretudo ligadas com os emaranhados problemas da sua vida profissional; no entanto, dizia também sentir depressão por pura “dor intelectual”, o que gera em mim uma enorme perplexidade, uma vez que ao desconhecimento se contrapõe a vontade de aprender, contra a ignorância consciente assoma a curiosidade, ao contrário de uma tristeza “afundante” que, ao fim ao cabo, imobiliza, desmotiva e impede a superação – sempre parcial, claro – do estado de não saber vituperado; quando se toma consciência, em dado momento, da enorme massa do que não se sabe (vanitas, vanitas...quem pode saber tudo, se até Cristo não soube responder à pergunta essencial?!), é desafio e não motivo para desgosto o que vejo... Ora, a existência de um inesgotável acervo de coisas que gostaríamos de saber e não sabemos é, a meu ver, exactamente um dos mais seguros antidepressivos, uma vez que garante que nunca ficaremos sem nada de novo para ver, pensar, conhecer, provar, enquanto formos vivos e capazes (e só nesse estado o problema do conhecimento nos pode afectar, não é?); é como se soubesse que mesmo onde falham obras, empreendimentos, projectos e até afectos, algo permanece sempre disponível, cheio de promessas: os livros a ler, a música a ouvir, as culturas dos outros, as filosofiasantigas e as nascentes, as línguas...é o melhor “fundo de garantia” que imaginar podemos! Se, pelo contrário e por absurdo, já soubéssemos tudo o que gostaríamos de saber, aí sim, haveria um certo pré-suicídio mental, um corte enfastiado com o mundo, um encerramento em si mesmo capaz de nos fazer perecer , ao menos em parte importante da nossa dimensão intelectual. Mas não é só esta contestação da tal forma de encarar o cognoscível que aqui me trouxe: é também a tal questão da utilização “por excesso” da noção de depressão para identificar modos de sentir que serão talvez “sintomas”, autênticos sinais de alerta paralembrar que não estará talvez a viver como melhor nos quadra, que temos que nos repensar, redefinir objectivos e traçados para lá chegar – e isso não é depressão, é ausência dela, porque a depressão é o fim da luta pelo encontro consigo mesmo, com todos os solavancos de que esse caminho é feito. Esse mal estar consigo e com a vida tal como ela"acontece” em determinado momento ou período será, assim, e a meu ver ( sendo este decorrente de um mero “saber de experiência feito), o resultado de um poderoso sistema pessoal de defesa perante a quebra, um abanão auto inflingido. Assim, esses estados são como a febre, que nos alerta para a infecção e nos faz tomar medidas para assegurar a cura, rápida ou lenta, consoante estamos como uma simples gripe ou uma forte pneumonia. Angústia perante um momento de interrogação, de falta de rumo, de contrição perante os resultados de escolhas do passado, para não repetir tais passos no futuro – depressão não será, porque não é o fim do caminho, antes a pausa prévia face a bifurcações cruciais. AmAtA --------