Duas semanas?! Para ser
Duas semanas?!
Para ser inteiramente franca, pareceram-me dois longos meses, mas o calendário afirma, peremptório, que parti a 29 de Julho e hoje estou de volta a casa. Será que estes dias correram pior que os seus semelhantes de anos anteriores? Não creio (aliás, em relação a alguns deles, seria mesmo impossível, a não ser que estivesse um serial killer à solta pelas bandas do sul...); mas é sempre tão penosa a arquitectura dos dias que parte de nós não quer... enfim, passaram. E decidi que para o ano, assim, não há mais.
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Vi, com horror inevitável e partilhado, como o verde quase desapareceu, devorado a vermelho, de hectares imensos. E vidas que não vi. Não sei que dizer desta aparente inevitabilidade apocalíptica. Sei que é um assunto eminentemente político mas, por uma vez, não me apetece dizer nada.
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Li vários livros de que gostei, e um deles só durou umas horas, porque não podia ser deixado: Sombras errantes, de Pascal Quignard, ed. Gótica; se parasse, podia transformar-se e a minha alma sequiosa nunca mo perdoaria. Por causa dele, vivi um momento inesperado, vindo de outro mundo. Há nele duas ou três frases que me são preciosas:
O passado mais longínquo éo mais denso da energia da explosão. Toda a recordação intensa se aproxima da força.
(...)Há um mundo onde as idades não são iguais, onde os sexos não são indiferentes, onde os papéis não são equivalentes, onde as civilizações não são confundíveis.
Há um mundo onde o ignorante não equivale ao sábio, onde o oral não tem a mesma voz que o escrito, onde o vulgus não é o mesmo que o atomos, nem o bárbado o mesmo que o civilizado.
Há outro mundo.
Há um mundo que pertence à margem do Letes.
Esta margem é a memória.
É o mundo dos romanos e o das sonatas, o do prazer dos corpos nus que amam a persiana meio-fechada, ou o do sonho, que gosta dela ainda mais encostada, até simular a escuridão da noite ou inventá-la.
É o mundo das pegas sobre as sepulturas.
É o mundo da solidão que a leitura dos livros ou a audição da música requerem.
O mundo do silêncio tépido e da penumbra ociosa onde vagueia e subitamente se excita o pensamento.
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Amei umas linhas que me chegaram em bits de um tempo outro, as quais transcrevo:
Te loquor absentem, te vox mea nominat unam; nulla venit sine te nox mihi, nulla dies.
Só se diz com pureza.
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Quem me temperou a alma por dias imensos, por mais anos do que Jacob serviu Labão, pai de Lia e de Raquel, como dizem que se temperam os metais (com a precisão ditada por uma enorme experiência), disse-me, há muito, muito tempo, em tom de crítica amável, que leio muito, mas de modo anárquico. Pura verdade, respondo tantas luas depois que já nem sou reconhecível (reconhecida serei sempre, no fundo de tudo o que secou e ficou em pó); mas o mesmo ecletismo que me foi depois apontado é o filho primogénito dessa voracidade legente, irmão de uma vontade exploratória sobre os que ainda não têm tempo de vida para o cânone. E ainda bem, pelo trigo reluzente que vale o pouco joio que vem junto.
Ana Roque
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Publicado em 10 de Agosto de 2003