Em tempo Há muito, muito
Em tempo
Há muito, muito tempo, tanto que já ninguém vivo se lembra, AmAta era a habitante do Modus; tinha um amigo, B., que a visitava quando queria e que nunca foi expulso, nunca deixou de ter a palavra mágica que abria a porta da casa dela. É verdade que AmatA viajou, se exilou como Cristo no deserto, à procura de si mesma, presa da sua indiscutível humanidade. AmAtA pode ir para onde precisa, porque é puro espírito, sem prisões. Eu fiquei, governanta austera de negro vestida, passeando incansável nos corredores sem fim do Vivendi. Hoje soube de B., ausente há muito, quase desde que AmAtA se tornou nómada errante (porque erra em todos os sentidos do termo, mas isso já não a assusta). B. escreve bem, é erudito (seria culto se tivesse uma ética de verdade, um verdadeiro sentido de generosidade que, obviamente, lhe falta - e a cultura é mais do que mero saber, é também emoção); a inteligência rutilante de B., o seu incansável labor e a sua memória lendária só fazem dele alguém que sabe muito, mas não alguém que saiba o essencial, o mais simples e o mais complicado: amar. B. é um gestor fabuloso de si mesmo, dos seus interesses, do seu prazer, da sua alegria, mesmo que cultivá-los seja matar a alegria dos seus fornecedores energéticos. Foi, aliás, por isso que AmAtA sempre soube que B. era um amigo, no sentido de um mestre amável embora caríssimo, e não um amante. Ela era AmAtA por ninguém, e menos de todos por si própria; vivia uma vida de expectativa, num registo totalmente imposto de fora, que a forçava, que nada a ajudava a construir-se, mas que era plena de riqueza para o olhar de outrém. AmAtA era, por isso, self-deprecating, por perceber que, por mais que tentasse chegar ad augusta per angusta, a angusta nunca terminava eapenas o contra-poder que detinha se tornava ocasionalmente menos ténue (e não era poder que ela perseguia, a não ser sobre si própria).
Amata disse-me que sentia, apesar de tudo, uma estranha falta de B.; respondi-lhe que se compreende: B. é , em grande medida, o seu autor (o criador de quase tudo nela e o detentor de autoridade sobre ela durante muito tempo). Mas, mesmo com dor (ou, se calhar, mesmo só com dor), AmAtA pode viver em busca de si própria, não por uma qualquer veleidade romântica, mas por respeito para com a sua indesmentível dignidade. AmAtA tem direito a conhecer-se, a mostrar-se como é e, eventualmente, a ser amada pelo que é. Sem artíficos nem encenações, sem se inscrever no guião para ela feito por quem a pretender usar na medida das suas conveniências sem a querer como é. Disse-lhe tudo isto, mas nunca sei se ela me ouve. Pergunto-lhe quando a voltar a ouvir.
Ana Roque
--------
Publicado em 11 de Agosto de 2003