Reflexões bucólicas III Dificuldades (o que o fogo não destruir, endurecerá) A liberdade é uma condição sine qua non para o exercício pleno de quase todas as virtudes: repare-se como até a lealdade para com os outros poder ser condicionada pelos limites (mesmo auto-impostos) à nossa própria liberdade. Só quem é inteiramente livre e senhor de si, dos seus actos, das suas opções, pode assumir, com total frontalidade, a solidariedade e a defesa intransigente a que muitas vezes a lealdade obriga. Ao contrário, quem está preso nas teias da obscuridade gerada pela coexistência de personae (que, se não se contradizem, numa esquizofrenia complexa e perturbante, pelo menos estabelecem percursos que se ignoram e deixam escoar os dias em permanente paralelismo e desdobramento), pode ver-se incapaz de cumprir os mais elementares procedimentos de solidariedade activa, não assumindo de forma aberta a protecção de quem se imaginava envolvido por essa força de carácter. Na “vida real”, esse palco de compromissos e de trocas necessárias à sobrevivência feliz, a liberdade total é quase impossível e acaba, com frequência desgostante, por ser preterida face ao comodismo confortável das rotinas, abandonada por causa de outros deveres de gratidão (mais antigos no tempo, mais sólidos no modo, mais ricos e significantes na componente afectiva?) , trocada em prol de vantagens que se julgam (e serão...) bem maiores. Esta é, certamente, uma das faces da verdade. Mas sempre convém não esquecer de que, neste território labiríntico, haverá provavelmente outras. Ana Roque --------