Da realidade (ou da fortuna
Da realidade
(ou da fortuna improvável)
Às vezes, no meio do caminho que escolhemos deserto para melhor respirar, alguém improvável vem e, com doçura a esconder a firmeza, arranca o cenário que, de tão longamente conhecido, julgávamos pano de fundo de uma incontornável realidade; esse movimento solta-nos da condição (tão marcada, tão bem conhecida que era tomada por eterna, tão "respeitável" até) de vítima poderosa no jogo sombrio do (des)amor: com solidez flexível, quase diria feminina (ai, os padrões herdados, os estereótipos aprisionantes, os preconceitos castradores, as lentes unifocais para ler o mundo...), com paciência firme. Com o corpo disponível atrás da chama do olhar. Sem medo das palavras e da sua missão (incompleta) iluminante das coisas.
Mas a questão, aqui, estará porventura no grau de petrificação, de resolução inflexível, de quem se descobre amada: pode ter-se instalado uma "defesa" automática que esconde o novo, um cansaço persistente no olhar, provindo de uma coisa simples e magoante chamada desconsideração. Pode ter-se ficado exausta no esforço despendido a dançar às escuras, de encontro às paredes da indiferença mascarada de desejo. Só uma força última, arrancada ao que sobrou da coragem de estar viva, deixará enfim ver a fogueira nos olhos do outro e, resistindo embora, estender a mão. Tomar balanço, resistir ainda, mas já em voo.
O único perigo, invisível e letal, é o da distância intransponível entre a vítima antiga e o calor da chama. Se for demasiado tarde, se o frio gélido do desespero longo e o sol ardente do deserto em fuga, juntos, tiverem chegado ao centro, nem essa fogeira ardente fará o milagre. Não será ouvida a palavra, essa única, demiúrgica palavra, levada pelo vento sem remédio. Não se pode ressuscitar quem quer estar morto, não há liturgia salvífica para quem não encontra outro ponto de aglutinação do real que lhe afaste o olhar do que a matou. E, injustiça habitual nesta selva escura, pode-se soçobrar por estúpido acidente na tentativa.
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Publicado em 9 de Março de 2004