Arquivo de março 2024
¶ 31 de Março de 2024
Voa, meu sonho, voa sobre as planícies geladas,
Voa sobre as árvores mortas do Inverno,
Paira sobre a lonjura das belas noites de estrelas,
Nunca pares, continua a voar cada vez mais.
Arde, minha saudade, como chama eterna,
Arde na escuridão onde tudo se apagou e foi há muito.
Eterna é esta saudade, é a vida, é a ousadia,
E o fogo que salta sobre o véu de cinzas.
Compreende que para quem nada conseguiu,
E junto à praia nunca repousou,
Não há morte para alta fogueira que ardeu,
Não há medida para terras azuis da sua saudade.
O meu coração vive de saudade em saudade.
Sempre para desconhecida costa se volta –
A saudade de um poeta não obedece às leis do espaço,
A terra dos sonhos não tem fronteiras.
Bertel Gripenberg, trad. José Agostinho Baptista
¶ 30 de Março de 2024

¶ 30 de Março de 2024
Um pássaro entrou numa nuvem.
Uma nuvem entrou num pássaro.
«Qual a verdade?», perguntou
o homem. «Está no pássaro? Ou
está numa nuvem?» E enquanto
o homem procurava a resposta,
o pássaro saiu da nuvem, fazendo
com que a verdade saísse do homem.
Nuno Júdice
¶ 28 de Março de 2024
Eu, sabendo que te amo,
E como as coisas de amor são difíceis,
Preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.
Nuno Júdice
¶ 27 de Março de 2024

¶ 26 de Março de 2024
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
Nuno Júdice
¶ 25 de Março de 2024

¶ 25 de Março de 2024
Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum
atenta no silêncio pintado
dia após dia derrama
o leite da jarra na tijela,
o Mundo não merece
o fim do mundo.
Wislawa Symborska
¶ 24 de Março de 2024
Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com
outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.
Jorge de Sena
¶ 23 de Março de 2024

¶ 23 de Março de 2024
jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência frequentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta
Ana Cristina Cesar
¶ 22 de Março de 2024
Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos
cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
Nuno Júdice
¶ 21 de Março de 2024

¶ 21 de Março de 2024
Como se o teu amor tivesse outro nome no teu nome,
chamo por ti; e o som do que digo é o amor
que ao teu corpo substitui a doçura de um pronome
– tu, a sílaba única de uma eclosão de flor.
Diz-me, então, por que vens ter comigo
no puro despertar da minha solidão?
E que mumúrio lento de uma cantiga de amigo
nos repete o amor numa insistência de refrão?
É como se nada tivesse para te dizer
quando tu és tudo o que me habita os lábios:
linguagem breve de gestos sábios
que os teus olhos me dão para beber.
Nuno Júdice
¶ 20 de Março de 2024
No inverno, as praias desertas enchem-se de espuma
e de gaivotas. Ouço o rebentar das ondas contra a falésia;
e respiro o ar salgado com a impressão luminosa
da manhã. À noite, esta imagem transforma-se
numa simples memória: e colo-a ao vidro da alma
para não me esquecer do que vi, sabendo que um
dia a poderei usar, no poema, onde o mar se irá
transformar nesta imagem que guardei, numa
manhã de inverno.
Porém, não ouço no fundo das palavras
a rebentação da maré; nem respiro, por entre
os versos, o frio húmido de um litoral onde aprendi
as cores exactas da manhã. O poema não passa de
um mapa onde acompanho, na linha dos substantivos,
a corrente do mundo, e imagino, na mancha
de cada adjectivo, a forma das paisagens. E desfolho
as estrofes numa viagem abstracta, em busca
das grandes praias da vida.
Mas o mar continua colado ao vidro
da minha alma, embaciando o que escrevo
com o seu ritmo matinal.
Nuno Júdice
¶ 20 de Março de 2024

¶ 20 de Março de 2024
O equinócio de primavera acontece este ano no dia 20 de março às 03h06. Equinócio é uma palavra que aglutina dois termos com significados diferentes. Aequus significa "igual" e nox, "noite", e quer dizer literalmente "noites iguais", isto porque nessa altura a noite e o dia têm sensivelmente a mesma duração, 12 horas.
A Astronomia define como equinócio o instante em que o Sol, assim como o vemos do planeta Terra, cruza o plano do equador celeste, isto é, a linha do equador terrestre que é projetada na esfera celeste. É exatamente nessa hora que tem início a estação da primavera.
¶ 19 de Março de 2024
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice
¶ 19 de Março de 2024

¶ 18 de Março de 2024
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
Nuno Júdice
¶ 17 de Março de 2024
Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
¶ 16 de Março de 2024

¶ 16 de Março de 2024
Mãos inexistentes segurando coisa nenhuma
zero graus talvez existam,
contudo. O leite também azeda
com a trovoada. Os vulcões têm nomes
permanentes, mesmo se não expelem lava.
O mesmo nome não promete que
sejamos semelhantes. Água e fantasmas
conseguem atravessar muitas coisas.
Consegues ver através de nada? Os fantasmas
vivem, sim e não. Ausente é quando estás
não estando. Às vezes sinto a tua ausência
mesmo estando tu presente. Às vezes estás
sem seres aquele de quem sinto a falta.
Nem todas as nuvens têm um nome.
Jannah Loontjes
¶ 15 de Março de 2024
O mal fascina-me porque acho que todos somos capazes do mal. Quando pensamos nas qualidades humanas, pensamos em coisas boas, no altruísmo, bondade, heroísmo, que somos capazes de nos sacrificarmos por uma ideia, pela nossa família, pelo nosso país. Tudo isso soa muito bem e é humano. Mas o oposto, o egoísmo, a violência, a inveja, todos os vícios, isso também é profundamente humano.
Fernanda Melchor
¶ 15 de Março de 2024

¶ 14 de Março de 2024
Por falta de energia, no rasto
Da doença, nos últimos anos
Poupei-me, mas eis-me de volta
À
linha de partida: todo o dizer
Verdadeiro é um dissídio.
Lá fora, rajadas de vento
Fustigam-nos – um ciclone
Desceu sobre os ombros
Da cidade, despenteia-a,
Dobra os ramos das acácias,
Penetra no forro do telhado
De zinco do alpendre que abriga
A esplanada em que saboreio
Um café sem açúcar (é
Como se ingerisse o bico
De um lápis) e faz-me ouvir
Os martelos de Pitágoras.
Nunca desfalece a energia
Na natureza, nunca refreia
E devemos imitar-lhe o ímpeto,
Denunciar como desconfiamos
Do presente e que embora
A vocação seja um borrão
É o momento de agir,
De abraçar o desengano.
Nestes dias de tristeza sociológica
(Parece que nos povos exibir
O corno é o mais premente,
Necessitam de regredir
Pra se acreditarem domésticos)
Entretive-me com o celta Kenneth
White, o das alvas montanhas
Escarpadas, sobressaindo
Como volutas no nevoeiro.
O Ken é tão brilhante na teoria
Como às vezes coxo no verso,
Enumerativo e sequencial,
Mais do que arquitectónico,
Mas é alimento seguro
Para estes dias de uma estúrdia
Incapaz de reconhecer-se até
Na simples arte de fazer compotas.
Também os romanos destilavam
O azeite de quarenta maneiras
Antes de colapsarem
E desse saber ser esquecido
Por mais de dois mil anos.
A lição que doravante convém
Lembrar, incansavelmente,
Nesta época de pavorosas
Correntes de um vento malsão
Que a História e o próprio modo
Civilizacional arrastam: tudo
O que está vivo sempre
Nos perturba e o que magoa
Não está na dor, mas
Na exigência de a atravessarmos.
¶ 13 de Março de 2024

¶ 13 de Março de 2024
Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 12 de Março de 2024
Quantas memórias
me trazem à mente
cerejeiras em flor
Matsuo Bashô
¶ 12 de Março de 2024
O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
O
poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.
¶ 11 de Março de 2024

¶ 11 de Março de 2024
Perfeito é não quebrar
A imaginária linha
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 10 de Março de 2024
Abro a porta, entro na varanda. Noite.
Nos quintais vestígios de pombos. Neve
que jaz ao acaso. Um gato sob um arbusto
sacode o pêlo, embosca uma sombra.
A lua descansa sobre um telhado. Cortada por vozes
que cantam. Al Jazeera.
Roupa enregelada pendurada num silêncio de morte.
A camada branca ocupa tudo sem vergonha, faz amizade
com ombreiras pálidas, grades de varandas, antenas parabólicas.
Também eu pertenço aqui. Sozinha. Porém,
rodeada de gente e animais.
Porém e porém. Isto é tão inverno, tão noite
como uma noite de inverno. Aspiro. Cheiro. Lixo.
Humidade. Cozinha. Pêlo de gato.
Jannah Loontjes
¶ 9 de Março de 2024

¶ 8 de Março de 2024
Como uma ligadura de gesso
o tempo enrolou-se à volta das
minhas pernas,
nada vejo à minha volta
ou parece que tudo desapareceu.
Amanhã e ontem colocam-me
as mesmas questões
hoje dobra-se entre
o papel empoeirado
de um pesado livro enfadonho
em cima da secretária,
aonde me sento
e sento.
Jannah Loontjes
¶ 8 de Março de 2024
o deserto é minha casa
com os olhos
consumo o labirinto
tenho ventos e
areias arrumadas
em demasia
tenho luas em mim
um céu negro
sem poesia
negro
e sem poesia.
passa o pássaro
―que seja uma andorinha
invoco
o seu alvoroço libertino
a fluidez do seu canto
a humidade morosa
no seu bico
o pássaro incessante
desmanchando o meu deserto
em fuga errante
no seu rumo
todas as margens
todos
os murmúrios
do mar.
Ondjaki
¶ 7 de Março de 2024
São vários os conceitos que me movem.
Um gesto abstracto desfila na imaginação:
sobre o azul, os cedros dos Himalaias.
É este o jardim de tarde que procuro.
Um lugar de intensa luz que cegue rotinas,
repetidos esquemas de pensamento.
A mesma luz até à renovada frase.
Transportem-se cedros dos Himalaias
pela imaginação adentro,
e a imensa realidade tornar-se-á
desabitável, desabituável,
repleta de conceitos que nos movam.
Luis Quintais
¶ 6 de Março de 2024

¶ 6 de Março de 2024
Mulher sou eu. É daquelas palavras que fazem parte de mim. Se no meu pensamento não está isso de ser mulher, por mais inconscientemente que seja, então estou a fazer muito mau uso de mim própria. Uma pessoa, quando é mulher, tem de entender o que isso quer dizer. Depois, é conforme a mulher.
Maria Teresa Horta
¶ 5 de Março de 2024
Por vezes há
um incerto silêncio
à minha volta…
Que me quer ferir
e rasga
Me ameaça
e desgraça
Me deseja
e me desata
Maria Teresa Horta
¶ 5 de Março de 2024
ri
¶ 5 de Março de 2024
Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.
¶ 4 de Março de 2024
Camille Pissarro
¶ 4 de Março de 2024
Março voltou, esta
ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar
de vidro vai direito ao coração.
Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos
com o monótono silabar do vento
ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor.
E pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.
Eugénio de Andrade