Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de agosto 2018


31 de Agosto de 2018

Ismael Nery

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31 de Agosto de 2018

Red right hand

Take a little walk to the edge of town
Go across the tracks
Where the viaduct looms
Like a bird of doom
As it shifts and cracks
Where secrets lie in the border fires
In the humming wires
Hey man, you know
You're never coming back
Past the square, past the bridge
Past the mills, past the stacks
On a gathering storm comes
A tall handsome man
In a dusty black coat with
A red right hand

He'll wrap you in his arms
Tell you that you've been a good boy
He'll rekindle all the dreams
It took you a lifetime to destroy
He'll reach deep into the hole
Heal your shrinking soul
But there won't be a single thing that you can do
He's a god, he's a man
He's a ghost, he's a guru
They're whispering his name
Through this disappearing land
But hidden in his coat
Is a red right hand

You don't have no money?
He'll get you some
You don't have no car?
He'll get you one
You don't have no self-respect
You feel like an insect
Well don't you worry buddy
Cause here he comes
Through the ghettos and the barrio
And the Bowery and the slum
A shadow is cast wherever he stands
Stacks of green paper in his
Red right hand

You'll see him in your nightmares
You'll see him in your dreams
He'll appear out of nowhere but
He ain't what he seems
You'll see him in your head
On the TV screen
And hey buddy, I'm warning
You to turn it off
He's a ghost, he's a god
He's a man, he's a guru
You're one microscopic cog
In his catastrophic plan
Designed and directed by
His red right hand

Nick Cave and the Bad Seeds


30 de Agosto de 2018

Igual

A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.
A raiz não parece dar aquele fruto.
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem.
Retirada a linguagem
a semente é igual a flor
a flor igual a fruto
fruto igual a semente
destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.

José de Almada Negreiros


29 de Agosto de 2018

Chris Barbalis

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29 de Agosto de 2018

Explicações da Cura

O precipício não tem futuro ou desalento
Mas um carreiro que atravessa as giestas e o trevo
Um carreiro que chega ao seu destino
Como a lenha podada ao fogo
A madrugada aos olhos do mocho.
O desamparo não tem as mãos juntas
Mas o peito dividido
A abelha no coração do polen
Fazendo circular o zumbido.
O coração tem uma roldana a girar
No eixo do desvio
Os olhos de criança diante do que passa.
E a canção é mão que se afadiga
A sarar do degrau e do perigo.

Daniel Faria


28 de Agosto de 2018

Sylvia Pankhurst

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27 de Agosto de 2018

Procida

Caem limões
na ilha de Procida.
O amarelo
tingiu as casas.
Os homens
com os seus corações
pintaram de vermelho outras.
O verde da natureza
ficou guardado
para os mais discretos.
O azul do céu e do mar
da Itália e dos gregos
fez-se suave nos prédios.
E a prisão ao alto
um monumento
no seu império de cores
de gatos e de mistérios.

Rui Esteves


26 de Agosto de 2018

Mabel Alvarez

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26 de Agosto de 2018

Tempos

A boca seca
sobre a hora
da ansiedade

longe o assobio:
             alguém passa
             com medo

na tinta fresca
              fresta
         por onde
    vejo o futuro

precioso líquido
na regeneração
do corpo

vento.

Pedro Du Bois


21 de Agosto de 2018

Marie Laurencin

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21 de Agosto de 2018

Da respiração

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas.

Daniel Faria


19 de Agosto de 2018

Mabel Alvarez

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19 de Agosto de 2018

A origem

Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

Konstantínos Kaváfis, trad. Jorge de Sena


17 de Agosto de 2018

Mabel Alvarez

Mabel Alvarez.jpg


17 de Agosto de 2018

Em Ceres

Em Ceres anoitece.
Nos píncaros ainda
Faz luz.

Sinto-me tão grande
Nesta hora solene
E vã

Que, assim como há deuses
Dos campos, das flores,
Das searas,

Agora eu quisera
Que um deus existisse
De mim.

Ricardo Reis


16 de Agosto de 2018

Memória

A memória incorpora
o tempo: torna
leve o presente

pesado
no que repetimos
como erro

no que aprendemos errado

a memória é descanso e algoz
de que não podemos fugir
ou trocar as histórias
passadas por nossos avós

nela nos prendemos ao fantasiar

as cores que não tiveram
no futuro que não teremos.

Pedro Du Bois


15 de Agosto de 2018

Mabel Alvarez

a11 Mabel Alvarez (1891-1985) Arabella with Calla Lillies 1934.jpg


15 de Agosto de 2018

Os Justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luis Borges


14 de Agosto de 2018

Wisława Szymborska

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14 de Agosto de 2018

a honra de viver

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Wislawa Szymborska


5 de Agosto de 2018

John William Waterhouse

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5 de Agosto de 2018

O Espaço do Poeta

A escrivaninha negra com entalhes,
os dois candelabros de prata, o cachimbo vermelho.
Está sentado, quase invisível, na poltrona, com a janela sempre às suas costas.
Por detrás dos óculos, enormes e cautos, observa o interlocutor à luz intensa,
ele próprio oculto dentro de suas palavras, dentro da História,
com personagens seus, distantes, invulneráveis,
capturando a atenção dos outros nos delicados revérberos
da safira que traz num dedo, e alerta sempre para saborear-lhes as
expressões, nos momentos em que os tolos efebos
umedecem os lábios com a língua, admirativamente. E ele,
astuto, sôfrego, sensual, o grande inocente,
entre o sim e o não, entre o desejo e o remorso,
qual balança na mão de um deus, ele oscila por inteiro,
enquanto a luz da janela atrás lhe põe na cabeça
uma coroa de absolvição e santidade.
"Se a poesia não for a remissão - murmura a sós consigo -
não esperemos então misericórdia de ninguém".

Yannis Ritsos, trad. José Paulo Paes


4 de Agosto de 2018

Mabel Alvarez

Mabel Alvarez (1891-1985) Self-Portrait of the Artist 1923.jpg


4 de Agosto de 2018

Coisas simples e incompreensíveis

Nada de novo -- repete ele. Os homens matam-se ou morrem,
sobretudo envelhecem, envelhecem, envelhecem -- os dentes,
os cabelos, as mãos, os espelhos.
Aquele vidro do candeeiro, quebrado -- foi consertado com um jornal.
E o pior de tudo: quando aprendes que algo vale a pena, já passou.
Então se faz uma grande serenidade. Chega o verão. As árvores
são altas e verdes -- muito provocantes. As cigarras cantam.
À tardinha, as montanhas azulecem. Lá de cima descem
homens obscuros. Coxeiam ladeira abaixo (fingem que coxeiam).
Lançam cães mortos ao rio, e depois, muito tristes e como que irritados
dobram os sacos de linho, coçam os testículos e olham a lua
na água. Somente essa coisa inexplicável:
fingirem-se de coxos, sem que ninguém esteja a vê-los.

Yannis Ritsos, trad. José Paulo Paes


3 de Agosto de 2018

última vontade

Disse: creio na poesia, no amor, na morte,
e por isso mesmo creio na imortalidade. Escrevo um verso,
escrevo o mundo; existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. Esta pureza
é de novo a primeira verdade, a minha última vontade.

Yannis Ritsos