¶ 26 de Dezembro de 2018
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de dezembro 2018
¶ 26 de Dezembro de 2018
no mundo
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes
José Tolentino Mendonça
¶ 24 de Dezembro de 2018
A meio do caderno
Ao meio das folhas, no meio das vozes
que abrem e cantam a clareira, a corda
de algodão delgada e branca que atravessou
quatro orifícios, quatro furos petrolíferos,
dá o nó e o laço
que seguram as páginas de terra e
formam o caderno. Nas praias imóveis
nas suas ondas quietas, na rugosidade
branca das suas verdes folhas, podes
agora
escrever na leitura o livro
entre ti e mim tecido/entretecido
das sílabas vivas do surdo clamor
do mundo, do vivo enquanto
vivo.
Beija o anel do luar e
do sol: a música do mundo
presa na haste viva que o livro
hasteia branca e vermelha.
Manuel Gusmão
¶ 21 de Dezembro de 2018
Solstício de Inverno
O Solstício de Inverno ocorrerá no dia 21 de dezembro de 2018 às 22h23min, marcando o início da estação no hemisfério norte (a mais fria do ano, apesar da Terra vir a estar o mais perto do sol a 3 de janeiro). O sol neste dia de solstício estará o mais baixo possível no céu em Lisboa, e aquando da sua passagem meridiana atingirá a altura mínima de 28° .
¶ 21 de Dezembro de 2018
Do fogo
O que se torna visível depois do escuro
senão a espessura da cidade?
Distingo traços de lume
onde antes o dia apagava
qualquer sinal de estradas.
Carros percorrem-nas,
dirigem-se para ilegíveis pontos.
São luzeiros incendiando a cidade,
estes carros que a atravessam.
Mais do que isso, ali, naquela colina,
descubro uma passagem, um segredo guardado:
o mapa da cidade
é escrito quando a noite me vence por dentro.
Táctil, cego, avanço para o fogo
que me devora.
Luís Quintais
¶ 18 de Dezembro de 2018
Uma vez mais
Nesta vida -- é um facto -- estamos sempre
a desaprender coisas novas. O mundo
vai guardando a luz nas suas bainhas negras
e temos a melindrosa companhia dos fantasmas
que nos procuraram: eles governam rudemente
os nossos pequenos reinos e há um ceptro novo
para cada coroação. De repente, com a volta
das estações, damos por nós muito mais velhos
nas fotografias. As razões que nos assistiam
empalidecem em paisagens cruelmente coagidas
pela luz. Fomos expulsos dos grandes palácios
da alegria? Onde estão os mapas que nos guiavam
lá dentro, exactos como o instinto? Não sabemos
responder: o caminho turva-se: são as incertezas
da maturidade. As palavras não nos iluminam
e o amor está condenado aos defeitos naturais
do coração, que ainda assim há-de voltar a arder
sem defesa nem socorro uma vez mais.
Rui Pires Cabral
¶ 17 de Dezembro de 2018
As mãos
As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar
ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada
Al Berto
¶ 16 de Dezembro de 2018
Os Olhos
O rosto que olha para trás,
o lado de fora do visível,
existe este rosto ou é apenas,
diante da infância, o olhar que se contempla?
Em ti, ó noite,
reclino a cabeça.
O que eu fui sonha,
e eu sou o sonho:
alguma coisa que pertence
a um desconhecido que morreu
que outro desconhecido (é este o meu rosto?)
fora da infância infinitamente pense.
Manuel António Pina
¶ 14 de Dezembro de 2018
Era essa canção de pedra
Era um choro de olhos
Abertos; um copo de silêncio
A esvaziar de um trago;
Um corpo ácido como certas
cidades nocturnas.
Era essa canção de pedra
Que os rios murmuram; esse
Muro de ramos partidos numa
Secura de lábios; a sombra
Que desce com a chuva.
Nuno Júdice
¶ 13 de Dezembro de 2018
São as cores?
São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento - as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração
Apaixonar-me e outra vez,
e agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo - e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?
E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
- aprender a voar -
pelo desassossego de um dedo
preso à terra
Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,
de qualquer coisa
Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
- ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes -
Ana Luísa Amaral
¶ 12 de Dezembro de 2018
Tudo é possível
A poesia é incomunicável.
Fique quieto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? O amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 11 de Dezembro de 2018
Tempo de mudez
aqui fico agora,
discordo mas não cedo,
aqui fico por uns tempos,
até que me vá daqui para outra gente,
e descanse, num país bastante banal,
aqui não, não aqui.
Hans Magnus Enzensberger
¶ 11 de Dezembro de 2018
O nome
O nome parece a infância.
Quando na velhice é termos vindo
Sem pressa
Para dentro
Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai
É um fruto.
O nome é ainda
O modo como chamas.
O nome é a arma contra mim. O maior perigo.
Com os teus lábios podes destruir-me.
Daniel Faria
¶ 10 de Dezembro de 2018
Ver-te
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Ruy Belo
¶ 9 de Dezembro de 2018
Regresso
Regressas a casa, onde
regressas? A sombra espera
a tua sombra, um disco
ouvido no escuro. Regressas
a casa, mas tens a chave
e não a porta, ou o contrário,
ou a chave e a porta e mais nada.
Pedro Mexia
¶ 8 de Dezembro de 2018
A noite antiga
Em redor da luz
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada
Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada
Em redor da chama
Que a menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda
Enquanto a noite antiga
Imensa e exterior
Tece seus prodígios
E ordena seus milénios
De espaço e de silêncio
De treva e de esplendor
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 7 de Dezembro de 2018
Imagem & Reflexo
Fechados em paredes
na proteção do medo
da nossa incapacidade
paredes nuas
e descoloridas
paredes decoradas
em cores pintadas
trazemos para dentro
a natureza rabiscada
acreditamos na permanência
e nos dizemos confortáveis
sábios e toleráveis
no que temos
aberto e amplo
o espectro permanece.
Pedro Du Bois
¶ 6 de Dezembro de 2018
E eu tenho de partir para saber
Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.
Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.
E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 3 de Dezembro de 2018
Com a tua letra
Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.
Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.
Fernando Assis Pacheco