Arquivo de dezembro 2020
¶ 31 de Dezembro de 2020
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 31 de Dezembro de 2020

¶ 31 de Dezembro de 2020
The valley
edge by edge
bare field by field
I walked through it through you
rain by rain
cold by cold
root absence
and the purposeful cold
Eye opened
slow
but what is slow
Jean Valentine
¶ 30 de Dezembro de 2020
O dia está triste,
Perséfona deve ter sido hoje forçada por Vulcano.
O inverno derrama-se na cidade
como se tívessemos de pagar
os problemas do Inferno. Os automóveis
engarrafam o trânsito
de Santa Catarina - a rua,
não a santa
que dos gemidos de Perséfona não entende -.
Sejamos pacientes. Saboreemos
este momento em que os motores em ralenti
aguardam o orgasmos dos deuses.
Egito Gonçalves
¶ 30 de Dezembro de 2020

¶ 30 de Dezembro de 2020
Este foi o ano em que passámos da crítica do medo como instrumento de dominação, pretexto de todas as discriminações, para o elogio do medo como virtude. Ele tem um impacto evidente na formação da opinião, inibindo muitas manifestações de resistência social.
Manuel Loff
¶ 29 de Dezembro de 2020
Enquanto escrevo, dezembro acaba no meio da habitual neurose das listas - dos mais vendidos à dos que se vestem melhor no ano.(...) A realidade transforma-se num grande torneio, e apaixona-nos saber quem são os vencedores. Por uma vez, a culpa deste impulso não é da Internet. Os gregos foram pioneiros da classificação com as suas famosas listas: os sete sábios e as sete maravilhas.
Irene Vallejo, in O Infinito num Junco
¶ 29 de Dezembro de 2020

¶ 29 de Dezembro de 2020
Tenho o âmago aziago do problema
e a resposta sobre o túmulo do soldado
o desagregar das tendências
e o esgarçamento da inconsciência
depois o que tenho será
a desnecessidade dos arbustos
cobrindo a passagem no desmoronar
do som e a reação arbitrária das autoridades
nos problemas relembro cenas
infantis na resolução das respostas
em apostas afins dos entretenimentos
(guardo a fortuna em cofres
e me dedico a ganhar espaços
o tempo permanece imóvel
e transito em silêncio).
Pedro Du Bois
¶ 28 de Dezembro de 2020
Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham - como numa paragem de autocarro.
Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara ao limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentiamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatias sanduiches de realidade.
Egito Gonçalves
¶ 27 de Dezembro de 2020

¶ 27 de Dezembro de 2020
Eu não gostava de ser rei.
Os reis praticamente
não têm vida própria. Têm sempre
que ter juízo, têm sempre que
prestar atenção. E não se pode estar sempre
com atenção. Sempre a cumprimentar.
Máquina de cumprimentos. Máquina
de apertar mãos. Não pode calçar
quaisquer sapatos. Ele bem queria
os azuis. Mas não pode. Porque tem
de calçar os castanhos. Houve alguém
que inventou isto. Tomam conta
do rei. E também ele
toma conta de si. Para não
sujar a camisa. Tem logo que
vestir outra. Da reserva.
Camisas de serviço. Tem à mão
a reserva. Nem uma pedrinha
pode ter na sopa. No entanto,
uma vez encontrou uma
no puré de legumes. O cozinheiro
ficou tramado. Não o tramem. No fundo,
o rei sentiu-se feliz por encontrar
uma pedra no puré de legumes.
Não tinha ideia de encontrar
fosse o que fosse no puré de legumes.
E logo uma pedra! Até que enfim,
alguma coisa lhe aparecia na sopa.
Enfim, alguma coisa. Aconteceram
coisas. É certo que quase cuspiu
um dente. Esteve quase
para partir um dente. E
afinal não partiu. Ficou
a abanar, mas ficou lá.
Chamaram o cozinheiro.
Mostraram-lhe a pedra.
Dias a fio o pobre cozinheiro
andou mesmo desesperado.
Ainda bem que nada de mal
aconteceu. Rapidamente tudo
foi esquecido. Esqueceram.
Este caso também.
E não se falou mais nisso.
Endre Kukorelly
¶ 26 de Dezembro de 2020
A pandemia fez-nos descobrir, não digo o pior de nós, mas muita coisa que nos impediu de ter uma acção conjunta em prol das tais igualdades. A hostilidade que existe entre uma pessoa e outra, o não podermos tocar, a maneira como obedecemos ao Estado. O estado de emergência fez-nos escolher uma coisa muito má: estamos prontos a obedecer a uma instância que entra nas nossas vidas. Temos que confinar, temos que fazer isto e aquilo e obedecer. Os efeitos estão lá e são a criação de hábitos de aceitação de que uma autoridade estatal ou um governo possam intervir e mandar na nossa vida pessoal. Isso muda completamente a nossa consciência e a própria democracia. A pandemia já mudou o campo completo de acção no espaço público, no espaço comunitário em que todos se cruzam. Já não olhamos para os outros com a espontaneidade de nos aproximarmos porque somos da mesma espécie, porque gostamos uns dos outros. O que se mostrou com a pandemia é que temos medo e o outro pode ser um perigo. Isso é muito mau.
José Gil
¶ 26 de Dezembro de 2020

¶ 26 de Dezembro de 2020
Com este meu andar,
ando. Assim se movem
o tornozelo e o pé.
Sei andar. Vagueio.
Ontem fui até
à esquina. Mas
estava muito frio, e voltei
para trás. Rua do Coração.
Vim para casa. Quase
fiquei gelado. Não tinha
luvas. Tentei não pensar
no frio que sentia.
Tentei pensar. Pois,
mas só me vinha à ideia
todo aquele frio
que estava, que bom seria
ter as luvas. Hoje pelo menos
vou até à Rotunda.
É o meu plano. Hoje será
o meu programa. Vou realizar
este projecto.
E assim lá vou outra vez
à esquina da rua do Coração
com a Szondy, e daí
até à Arad, virando
à esquerda para a Szinyei,
e aí à direita:
a Rotunda. A minha vida
é andar assim. Ou seja,
esta marcha. Uma corrente. Enfim,
a vida é feita de
caminhadas e marchas.
Ou melhor, consiste nisso.
Não é um discurso tranquilo. Mas
também não é de acagaçar. Trinta e seis linhas.
Tantas palavras. Tantas letras.
Endre Kukorelly
¶ 25 de Dezembro de 2020

¶ 25 de Dezembro de 2020
O tempo estava confuso
A hora imprecisa Acercava-se
chuva ou tempestade No éter
ouviam-se estalidos Apesar
das dificuldades não perdíamos
a conexão com o mundo
As ordens eram claras
Tínhamos que sorrir
Bohdan Zadura
¶ 25 de Dezembro de 2020

¶ 25 de Dezembro de 2020
Ensinei aos meus filhos que o pai foi um homem extraordinário: (poderão
contá-lo assim a qualquer um, um dia, se o quiserem): e depois que todos
os homens são extraordinários:
e que de um homem sobrevivem, não sei,
pelo menos umas dez frases, talvez (juntando tudo: os tiques,
os ditos memoráveis, os lapsos):
e isso nos casos afortunados:
Edoardo Sanguineti
¶ 24 de Dezembro de 2020

¶ 23 de Dezembro de 2020
O livro é, sobretudo, um recipiente onde o tempo repousa. Uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência e a sensibilidade humana venceram essa condição efémera, fluente, que levava a experiência do viver para o nada do esquecimento.
Emilio Lledó
¶ 22 de Dezembro de 2020

¶ 22 de Dezembro de 2020
Ver o cortejo de cedros
e acreditar que é o cenário.
Depois estender a mão
através da longa perspectiva
oblíqua e poder palpar,
na pele, que também os cedros
têm corpos húmidos, saliva,
à espera do Amor.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 21 de Dezembro de 2020
Homens se afastam em calmaria
o silêncio estende as asas
entre homens e mulheres
fixadas em angústias
ao ver seus homens
em afastamentos
nos carnavais fantasiosos
se escondem os homens
de seus fantasmas
e a calmaria em músicas
se oferece para mulheres
descobertas ao acaso
as mulheres em angústias
sentem o calor da refrega
e sonham entregas
em longínquos carnavais
homens retornam angustiados
pelo medo de serem interpelados
por mulheres ácidas em calmarias
de águas revoltadas.
Pedro Du Bois
¶ 21 de Dezembro de 2020

¶ 21 de Dezembro de 2020
O Solstício de Inverno ocorre no dia 21 de dezembro de 2020 às 10h02min, marcando o início da estação no hemisfério norte (a mais fria apesar da Terra vir a estar o mais perto do sol a 2 de janeiro). A origem latina (Solstitium) da palavra associa-se ao facto do Sol travar o movimento diário de afastamento ao plano equatorial e "estacionar" ao atingir a sua posição mais alta ou mais baixa no céu local. O sol neste dia de solstício estará o mais baixo possível no céu em Lisboa e aquando da sua passagem meridiana atingirá a altura mínima de 28º . A duração do dia no Solstício de Inverno é a mais curta do ano. Esta estação prolonga-se por 88,98 dias até ao próximo Equinócio, a 20 de março de 2021.
¶ 20 de Dezembro de 2020

¶ 20 de Dezembro de 2020
Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
o tropel das nuvens
a espessura azul das árvores acesas pelos faróis
o rumor verde
As palavras saem de um ferida exangue
de teclas de metal fresco
de caminhos e sombras
da vertigem de ser só um deserto
de armas de gume branco
Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
e há palavras como giestas vivas
Matrizes primordiais matéria habitada
forma indizível num rectângulo de argila
quem alimenta este silêncio senão o gosto de
colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?
As palavras vêm de lugares fragmentários
de uma disseminação de iniciais
de magmas respirados
de odor de gérmen de olhos
As palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos claros
Que são as palavras?Imprecisas armas
em praias concêntricas
torres de sílex e de cal
aves insólitas
As palavras são travessias brancas faces
giratórias
elas permitem a ascensão das formas
elevam-se estrato após estrato
ou voam em diagonal
até à cúpula diáfana
As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado
Que enfrentam as palavras?O espelho
da noite a sua impossível
elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
e são signos do acaso pedras de sol e sal
a da sua língua nascem estrelas trituradas
António Ramos Rosa
¶ 20 de Dezembro de 2020
Não é raro que um bem
nos seja confiado
na hora que temos por errada
José Tolentino Mendonça
¶ 19 de Dezembro de 2020

¶ 19 de Dezembro de 2020
Nunca houve flores mais belas
que as dos jardins persas
nem paz nem festa como aquelas
nem outro mais perfeito ouro-azul
que suas primaveras levantando rosas
entre ondas álgebras de fumo e de cabelos.
Eucanaã Ferraz
¶ 19 de Dezembro de 2020
Como numa fotografia, o instante
em que te distingo da paisagem.
No mundo em absoluto silêncio,
apenas o privilégio dos teus gestos,
a realidade toda feita de vidro. E tu,
focada no centro de um instante
desfocado, imortal e perfeita,
razão perfeita.
José Luís Peixoto
¶ 18 de Dezembro de 2020

¶ 18 de Dezembro de 2020
A poesia é incomunicável.
Fique quieto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 17 de Dezembro de 2020
Essa voz que deixei perder
já não me procura;
e nada será jamais
tão simples e singular
como aquela voz modulada
e firme na sua insegurança,
tão indefesa como estar vivo.
Porque falo nisto agora?
Desista de me ler
quem busca um fio coerente,
uma afirmação rotunda
e concisa. Não tenho loja
com essa mercadoria.
Nem com mais nenhuma.
Procuro apenas o som nítido de uma voz,
entre todas as coisas que deixei perder.
Procuro.
Luís Filipe de Castro Mendes
¶ 17 de Dezembro de 2020

¶ 17 de Dezembro de 2020
E se as voltas de fechadura
não acabassem nunca?
e se tivesse de ficar toda a vida
aqui fora, a dar voltas à chave?
Faço a cópia das minhas chaves
faço a cópia das minhas cópias
o que gasto para as multiplicar
serve para tirar a cada uma o seu valor
o meu Valério. No perfil dos versos
reproduzo o recorte
dentado das chaves.
Valerio Magrelli
¶ 16 de Dezembro de 2020
Andava a colher as ervas daninhas, olhos postos no querer das coisas.
Às vezes, dizia-lhes: ainda não estais preparadas; o verdor há-de ir embora. Depois veremos.
E afastava-se, pedindo desculpas ao jardim.
Zeferino Silva
¶ 15 de Dezembro de 2020

¶ 15 de Dezembro de 2020
Não se convence que a escrita e a vida vão a par,
Descontadas diferenças de velocidade e alguma
Galhardia no tempo. O corpo demora a experimentar.
Usa-se. É o facto dos afectos. Entrou na vida? Entrou
Na escrita floral dos fiéis de amor. Não quer, todavia,
Abri-la, ainda menos lê-la. E tão teimosamente o faz
Que dificilmente um novo perfume entre sede e planta
Lhe subirá pelo caule. Ó rapariga, quando te irá cheirar
A luar libidinal?
Maria Gabriela Llansol
¶ 14 de Dezembro de 2020
A identidade, como a pele,
renova-se, perde-se de sete
em sete anos, muda no mesmo
corpo, torna diferente
a permanência humana.
A identidade é a soma
das intenções, uma foto
instantânea para um propósito
imediato que não dura.
A identidade é um equívoco
para camuflar o coração.
Pedro Mexia
¶ 14 de Dezembro de 2020

¶ 14 de Dezembro de 2020
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
La sonrisa ancha
La lluvia en el pelo
No importaba nada
Ibas a encontrarte con él
Con él, con él, con él, con él, con él
Son cinco minutos
La vida es eterna en cinco minutos
Suena la sirena
De vuelta al trabajo
Y tu caminando
Lo iluminas todo
Los cinco minutos
Te hacen florecer
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
La sonrisa ancha
La lluvia en el pelo
No importaba nada
Ibas a encontrarte con él
Con él, con él, con él, con él, con él
Que partió a la sierra
Que nunca hizo daño
Que partió a la sierra
Y en cinco minutos quedó destrozado
Suena la sirena
De vuelta al trabajo
Muchos no volvieron
Tampoco Manuel
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
Victor Jara
¶ 13 de Dezembro de 2020

¶ 13 de Dezembro de 2020
Se para te falar devo marcar um número
transformas-te em número,
dispões as linhas
na combinação a que respondes.
O três que se repete,
o nove em terceiro lugar,
indicam algo do teu rosto.
Quando te procuro
devo desenhar a tua imagem,
devo reproduzir os sete algarismos
análogos ao teu nome
até se entreabrir o cofre-
-forte da tua viva voz.
Valerio Magrelli
¶ 12 de Dezembro de 2020

¶ 12 de Dezembro de 2020
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 11 de Dezembro de 2020

¶ 11 de Dezembro de 2020
Dezembro de 2020, acaba o ano de Fellini e Lisboa
está sitiada.
Entre outros impedimentos, citemos do cardápio o utilitário:
De sábado a domingo, trabalhar legalmente o apetite,
às treze e picos,
saqueando o Tejo.
Pelas quinze menos um quarto, chegar à Cinemateca e estar esgotada;
Rumar ao Chiado, encontrar livros que não posso levar para casa.
Pelas dezassete, encontrar amigos disponíveis,
e ainda assim beber legalmente um tinto.
Das vinte às tantas, fintar desgostos antigos
na calçada.
Pensar que é possível encontrar-te, e encontrar-te.
Regressar a casa em passo legítimo
(gosto recente).
Culpar a pouca sorte, com alguma pertinência
(ou o Natal).
Rui A.
¶ 10 de Dezembro de 2020

¶ 10 de Dezembro de 2020
Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes, quem sabe, a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso de uma solidão. No meio de outros.
Clarice Lispector
¶ 10 de Dezembro de 2020
As tuas mãos pousadas na baça memória
da mesa, abertas no rasgão fulvo da tarde, e soltas
à luz que te salta dos olhos: como as lembro,
presas nos dedos da vida, e de súbito rompendo
a incerteza de palavras inúteis!, as tuas mãos
que se levantam deste silêncio, desta pausa
do mundo, e emprestam à pedra a sua forma,
agarram-me, puxando-me para o corpo ausente
no corpo da noite. Como se essas mãos me
ensinassem o caminho dos rios, ao encontro de águas
opostas no mais largo dos estuários, bebo
por elas o líquido fresco do início. Toco o seu
fundo mais seco com os lábios; e sigo as
suas linhas até esse prado onde pastam os
rebanhos da alma. Ouço os seus passos
contrários nos caminhos da terra. Acompanho
a sua obstinação por entre chávenas e copos,
até esse rebordo onde pousaste o braço
numa hesitação de abraço. Deixo-me guiar
por um pastor de sombra, esperando
que o sol as limpe do teu rosto. Aprendo
contigo um rumo de conchas e fendas,
uma permanência de margens de algas. Perco-me
na pensativa pose da tua melancolia,
no sorriso de anjo inquieto que me
emprestas. Quando o devolverei? Em que casulo
de secreta agonia?
Nuno Júdice
¶ 9 de Dezembro de 2020

¶ 9 de Dezembro de 2020
O humor das coisas se entrelaça
em objetos alegres no que foi proposto.
A chance de reconhecer na imobilidade
vidas encravadas em totens milenares
de crenças: posso dizer
o que sei das coisas
e riscar nos objetos a palavra
existente sobre o nada.
Não faço: objeto ao humor
a desgraça do sorriso instalado
no rosto do boneco e a cobra
sorri suas presas: a bola
em arremessos finais
em dias atravessados
busco no objeto pontiagudo o lancetar
da face e me descubro a rir abraçado
ao poste: objeto humorado.
Pedro Du Bois
¶ 8 de Dezembro de 2020

¶ 8 de Dezembro de 2020
Era uma vez uma mãe de um filho. Ela amava-o com completa devoção.
E ela protegia-o porque sabia quão triste e cruel é o mundo.
Ele era sossegado por natureza e bastante inteligente, mas não estava interessado em ser amado ou protegido, porque estava interessado noutra coisa.
Consequentemente, numa idade precoce, ele bateu com a porta e nunca mais voltou.
Mais tarde ela morreu, mas ele nunca soube.
Louise Bourgeois
¶ 7 de Dezembro de 2020

¶ 7 de Dezembro de 2020
Desliza a caneta
para a virilha da página
e em silêncio se recolhe a escrita.
Esta folha tem os confins geométricos
de um estado africano, onde disponho
o alinhamento paralelo das dunas.
Agora desenho
enquanto conto o
que contando se perfila.
É como se uma nuvem
chegasse a ter
forma de nuvem.
Valerio Magrelli
¶ 6 de Dezembro de 2020

¶ 6 de Dezembro de 2020
Aspirações, mais ou menos
Gostava de escrever um dia sobre a ciência
e a conquista do espaço,
sobre religião e mitologias
e, mais ainda, sobre os vinhos e a natureza
da alma dos vizinhos;
Gostava de escrever sobre a luta diária de tantas mães sem filhos,
sobre o primo que não arranja emprego
e os desgostos de amor da Eulália;
sobre as esquinas onde se escondem miúdos de tantos bairros e aldeias,
umas sem escola e meninos, outras com meninos sem escola:
todas, ainda hoje, com padre ao domingo
(dizem que tem estado vivo).
Gostava de escrever os desafios
em todas as áreas domésticas do século XXI:
da moda à política internacional
e a muitas questões internas.
Perceber porque funciona o meu fígado, e falar disso.
Gostava de escrever sobre medicinas alternativas,
coisas sérias e brincadas,
sobre o universo e tudo o que abarca,
do direito à greve às rendições de pais e filhos.
Gostava de escrever sobre decisões mais ou menos acertadas,
da hora zero à vinte e quatro,
sobre a neutralidade que afecta e a indecisão que corrompe;
sobre as mulheres de má vida e os homens infelizes,
sobre as certezas viris que nos prendem,
sobre as dúvidas assintomáticas,
a evitar que façam mal.
Sobre a luz e a sombra nos olhos de um fotógrafo de Abril.
Gostava de me soltar ainda, na virtude mais careca
e no inacreditável penteado de Alberto,
que é um homem um pouco desorganizado mas percebe de selos como ninguém
e há-de casar com a Eulália.
Terão ambos alguns dias felizes e bem regados,
quase inevitavelmente seguidos da infelicidade precoce dos filhos,
aos quais de algum modo se renderão nos primeiros anos de birra
para logo a seguir, por vingança sistemática,
pelos seis de cada menino,
lhes trocarem as esquinas pela catequese ao domingo.
Com sistemática falta de cinema e total ausência de literatura
(dos cinco aos sete),
que talvez não fizesse especial mal.
Isto enquanto o vizinho que perdeu greve e sustento
não é chamado para nada.
Ficam os miúdos de Alberto e Eulália
sem saber que há espaço para outras conquistas
e reflexões matemáticas, atlânticas e filosóficas
que até poderiam ter
o seu interesse.
Pesa mais a almofada e a falta de viagem da Senhora Dona Eulália,
que não aprendeu com os desgostos do seu marido despenteado
(mais dado aos selos que às cartas)
na construção dos seus filhos pouco carismáticos
Mas não sou poeta,
mesmo sabendo que muita da boa poesia nasce
da falta de poesia.
É um desgosto, confesso.
Quase tanto como não ter o Cão
à cabeceira.
Sou porém razoável, a elencar assuntos.
E esse é, talvez,
um eterno descanso
Rui A.
¶ 6 de Dezembro de 2020

¶ 6 de Dezembro de 2020
Doce peso
em celebração da mulher que sou
deixa-me levar uma echarpe de três metros,
deixa-me tocar o tambor pelas que têm dezanove anos,
deixa-me levar taças para oferecer
(se é isso o que me toca).
deixa-me estudar o tecido cardiovascular,
deixa-me calcular a distância angular dos meteoros,
deixa-me chupar o pecíolo das flores
(se é isso o que me toca).
Deixa-me imitar certas figuras tribais
(se é isso o que me toca).
Pois o corpo preciso disso,
que me deixes cantar
para a ceia,
para o beijo,
para a correcta
afirmação.
Anne Sexton
¶ 5 de Dezembro de 2020

¶ 5 de Dezembro de 2020
Cada célula tem uma vida.
Há aqui bastantes para satisfazer uma nação.
Chega que a populaça possua estes bens.
Qualquer pessoa, qualquer grupo diria:
Está tudo tão bem este ano que podemos plantar de novo
e pensar noutra colheita.
Uma praga tinha sido prevista e foi eliminada.
Por isso muitas mulheres cantam em uníssono:
uma numa fábrica de sapatos amaldiçoando a máquina,
uma no aquário cuidando da foca,
uma aborrecida ao volante do seu FORD,
uma cobradora na portagem,
uma no Arizona enlaçando um bezerro,
uma na Rússia com uma perna de cada lado do violoncelo,
uma trocando panelas num fogão no Egipto,
uma pintando da cor da lua as paredes do quarto,
uma no seu leito de morte mas recordando um pequeno almoço,
uma na Tailândia deitada na esteira,
uma limpando o rabo ao seu bebé,
uma olhando pela janela do comboio,
no meio do Wyomming e uma está
em qualquer lado e algumas estão em todo o lado e todas
parecem estar cantando, embora haja quem
não possa cantar uma nota sequer.
Anne Sexton
¶ 4 de Dezembro de 2020
Escrever o teu rosto neste envelope
e acreditar que assim tu voltarias
Vã tentativa
fazer acreditar no magnetismo da linguagem
na força da gravidade das letras
Bruno Weinhals
¶ 4 de Dezembro de 2020

¶ 4 de Dezembro de 2020
Trabalho cada ideia como o todo. Refaço perguntas
machucadas e nego respostas conduzidas. Externo
a frieza do conhecimento. Recolho no solo a pisada
e a transubstancio no barro primitivo: tenho o molde
a distância e o sentido. Impeço a fragmentação
do pensamento: sou do ocaso o guardião da cena
repetida em olhos encerrados: o ocaso do dia
contabilizado. Resisto. Dou força ao vento
derrubado em lembranças inúteis e ao som
que vem da rua - pessoas passam -
devoro as palavras ditas: falo em democracia
no alterar o sujeito da sentença e alterno inocentes
e culpados: recupero a malemolência extremada
dos profetas e discurso de porta em porta uma
ideia de cada vez: apenas uma porta aberta.
Pedro Du Bois
¶ 3 de Dezembro de 2020

¶ 3 de Dezembro de 2020
Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.
Não ser lido por quem lê. Somente
pelos que procuram qualquer coisa
rugosa e rápida a caminho de uma revista
onde fotografaram todo o ludíbrio da felicidade.
Que um poema meu lhes pudesse entregar.
ademais da morte,
um alívio igual ao de atirar os sapatos
que tanto apertam os pés desencaminhados.
Joaquim Manuel Magalhães
¶ 2 de Dezembro de 2020

¶ 2 de Dezembro de 2020
Depois de ter falado toda a manhã
com um estranho acerca daquela anónima
cabeça de rapaz do século dezasseis
sinto que é de matéria breve que
tenho composto todos os meus objectos
todos ordenados à vida e sem aquela
alegria que devemos encontrar
no que tentamos reduzir ao tempo.
Uma só hora daquela cabeça não
caberia em toda a manhã
porque ela é lisa como vidro
e nenhuma dissertação de arte
a poderá tornar densa e as suas ideias
essas somos nós que
as fabricamos.
joão Miguel Fernandes Jorge
¶ 1 de Dezembro de 2020

¶ 1 de Dezembro de 2020
Sobre a bondade. Reflexo espelhado
do tempo: roubo
o espaço e o detenho
à frente do espectro:
esperto agente gentios
expostos gêmeos
separados no aporte
do barco ao porto: deslizo
remos em águas
de malefícios: o mal estar
da bondade na fronte franzida
por estar sozinho na gravidade
da presença reposta ao ato.
Pedro Du Bois