¶ 31 de Maio de 2021
Assim
Uma pessoa atravessa a vida quase sem dar por isso, e depois é que começa a pensar, quando a vida já passou.
Antonio Tabucchi, in Estórias com figuras
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 31 de Maio de 2021
Uma pessoa atravessa a vida quase sem dar por isso, e depois é que começa a pensar, quando a vida já passou.
Antonio Tabucchi, in Estórias com figuras
¶ 31 de Maio de 2021
Então eu fui. Uma tarde subi
Aquela colina íngreme e rochosa,
Parando para descansar e admirar uma flor silvestre
E a vista do lago
No vale lá em baixo.
Teria gostado de uma cabra por companhia.
Uma preta e branca, com um sino
Para ir à frente, pastar um pouco e romper
O silêncio quando este retoma sua ascensão
Até onde uma árvore escura e silenciosa está
Esperando todos estes anos que alguém
Se sente à sua sombra, em calma consigo mesmo.
Até o vento está sempre a inventar
Joguinhos para as suas folhas brincarem,
Sem pressa agora de perturbar a paz.
Charles Simic
¶ 30 de Maio de 2021
As is your desire, so is your will. As is your will, so is your deed. As is your deed, so is your destiny.
¶ 30 de Maio de 2021
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
-- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
-- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
-- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço --
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave -- qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
Herberto Helder
¶ 29 de Maio de 2021
Repousa no espaço de um olhar. O ar dança na rua.
Sombras e ruídos. As árvores têm uma idade clara.
Vagarosa persistência, a alguns metros do solo.
O enigma está vivo no centro da aparência.
Uma criança designa o mar. Alguém traz uma folha.
Alguém compreende a sede de uma pedra!
Quem estuda a felicidade? Quem define um jardim?
Que linguagem é a do espaço? O que é o sal da sombra?
Esquecemos a linguagem do vento e do vazio
Nunca houve um encontro. Quando será o inicio?
Vejo a folhagem e os frutos da distância.
Olho longamente até ao cimo da ternura.
Vivo na luz extrema em todas as direcções.
O pequeno e o grande conjugam-se, consagram-se.
Canto na luz suave e bebo o espaço.
António Ramos Rosa
¶ 29 de Maio de 2021
Alguém se atrasou a voltar para casa.
A lâmpada deixada acesa na janela
Arde enquanto o dia irrompe,
e vai arder durante meses.
À noite, a nossa pequena rua é escura.
As gaiolas cedo são cobertas.
Os peixes mal se mexem em seus jarros.
Mesmo as luzes da varanda são desligadas
Deixando apenas aquela janela acesa
Para as mariposas prestarem homenagem
Até que o tempo fique frio
E os telhados, brancos de neve.
Charles Simic
¶ 28 de Maio de 2021
Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?
Manuel António Pina
¶ 28 de Maio de 2021
(...) à medida que envelhecemos pensamos muito na memória, e pensamos no tempo, e pensamos no que a memória faz com o tempo e no que o tempo faz à memória, e no que podemos saber. Os limites do nosso conhecimento apresentam-se-nos mais evidentes. Quando se é novo toma-se como certa a extensão do conhecimento, pensamos que esse conhecimento não terá fim.
¶ 28 de Maio de 2021
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Adélia Prado
¶ 27 de Maio de 2021
Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.
Nuno Júdice
¶ 26 de Maio de 2021
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre - salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
Joseph Brodsky
¶ 25 de Maio de 2021
To pretend, I actually do the thing: I have therefore only pretended to pretend.
Derrida
¶ 25 de Maio de 2021
Suponho que os leitores e os escritores têm a mesma relação com os livros: ou lhes interessam, ou não. Há "famílias" de escritores e de leitores. Como leitora, se um livro não me interessa, ponho-o de lado. Não se pode ler tudo, o leitor escolhe os livros que se abrem à sua frente como caminhos, que o chamam ou seduzem, ou que ele próprio gostaria de escrever, porque se identifica com eles. Há livros e autores que nos vão acompanhar ao longo da vida, outros de quem nos despedimos logo nas primeiras páginas. É uma questão de "química", como nas relações humanas. A relação com os livros é uma relação humana, de pessoa a pessoa, de mundo interior a mundo interior.
Teolinda Gersão
¶ 25 de Maio de 2021
Eu entendo que muytos no que sobr"esto tenho scripto, e adiante screvo, ainda que per fundamento desvayrados syntom a trsiteza, devem com a graça de deos aver esforço, consselho e avisamento, com grande parte de boa sperança.
Por quanto sey que muitos forom, som, e ao diante seram tocados deste pecado de tristeza que procede da voontade desconcertada, que ao presente chamam em os mais dos casos doença de humor manencorico, do qual dizem os fisicos que vem de muytas maneiras per fundamentos e sentidos desvairados, mas de três anos continuados fuy del muyto sentido, e per special mercee de nosso senhor deos ouve perfeita saude.
Ca nom he pequeno conforto e remedio aos que som desto tocados saberem como os outros sentirom o que elles padecem, e ouverom comprida saude, por que huu? dos seus principaes sentymentos he penssarem que outrem ja mais nunca tel sentio que fosse tornado a sseu boo stado em que antes era.
D. Duarte, in O Leal Conselheiro
¶ 24 de Maio de 2021
Sempre achei que os sonhos eram narrativas-limite, literatura em estado puro. Muito antes de saber do surrealismo e de ter lido Freud, Jung ou qualquer outro. É talvez assim que todos caminhamos: entre o mundo onírico, onde aparentemente nada faz sentido, e o mundo não menos absurdo do que (nos) acontece.
Teolinda Gersão
¶ 23 de Maio de 2021
Há algo de novo no ar, talvez a luta do botão
para se tornar numa folha. Quase duas semanas depois desenrola-se, mas
vendo bem, o que são duas semanas de vida? Numa noite fria, há
uma pausa na luta do ser. Suponho que seja por isso que nós
dormimos. Numa história infantil falavam da terra do encantamento.
Nós rastejamos até ela, nós, mamíferos de vida curta, não percebemos que
já estamos lá. Para os deuses, a lua é a lua inteira,
mas para nós muda segundo a segundo porque somos sempre peixes
no ventre da baleia terrena. Estamos encarcerados e não podemos escapar
da casa dos nossos corpos. Eu poderia dizer que fomos libertados,
mas não sei, na nossa noite privada, quando as nossas almas explodem
num bilião de fragmentos e calmamente se reúnem num lago negro
na floresta, longe da prisão da carne, do incessante "eu". Isto foi
um sonho e nos sonhos estamos sempre sozinhos, caminhando
na estrada fantasma para além das nossas vidas. Ultimamente vejo o acordar
como se fosse outra possibilidade de primavera.
Jim Harrison, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 23 de Maio de 2021
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
José Luís Peixoto
¶ 22 de Maio de 2021
Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
imensa chama. Troquei suspiros e beijos
com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas
em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção
e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada
me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.
Maria do Rosário Pedreira
¶ 21 de Maio de 2021
For life is the best thing we have in this existence. And if we should desire to believe in something, it should be a beacon within. This beacon being the sun, sea, and sky, our children, our work, our companions and, most simply put, the embodiment of love.
Patti Smith
¶ 21 de Maio de 2021
A dança lê o espaço
E só onde pousa o corpo
Não é o vazio.
Conheceis o deslumbre
De um mundo que só existe
A cada gesto.
Nuno Rocha Morais
¶ 20 de Maio de 2021
Dizem que as palavras amargas são
(de longe e ao perto)
as mais inteligentes, meritórias e dignas
de qualquer sacrifício,
da grande bondade de estar por cá
(haja a quem agradeça).
Dizem que as palavras amargas
são sinal de alguma inteligência e valores altos,
na reacção às notícias do mundo.
Calha dizer, Olívia, que sem palavras amargas
(ou mesmo alguma amargura)
não somos merecedores de coisa alguma
(em bom).
Mas um beijo é um beijo é um beijo é um beijo.
Para lá de fomes e milhafres, salvaguardada a empatia
e o que nos une, o direito à vida e a mais que a vida
(desculpa, querida, não ter regado as flores),
um beijo é precisamente o que quero dar.
Com toda a amargura do mundo.
Com amor.
Sim, eu sei, a terra é lenta.
Rui A.
¶ 18 de Maio de 2021
Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
De todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.
Luís Filipe Parrado
¶ 17 de Maio de 2021
Os instantes Superiores da Alma
Acontecem-lhe - na solidão -
Quando o amigo - e a ocasião Terrena
Se retiram para muito longe -
Ou quando - Ela Própria - subiu
A um plano tão alto
Para Reconhecer menos
Do que a sua Omnipotência -
Essa Abolição Mortal
É rara - mas tão bela
Como Aparição - sujeita
A um Ar Absoluto -
Revelação da Eternidade
Aos seus favoritos - bem poucos -
A Gigantesca substância
Da Imortalidade
Emily Dickinson, trad. Nuno Júdice
¶ 16 de Maio de 2021
Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.
Luís Filipe Parrado
¶ 15 de Maio de 2021
Gosto das mulheres velhas
as mulheres feias
as más mulheres
são o sal da terra
não sentem aversão
pelo lixo humano
conhecem a outra face
de uma medalha
do amor
e da fé
vêm e vão
os ditadores endoidecem
têm as mãos manchadas
com sangue de seres humanos
as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
compram carne fruta pão
limpam cozinham
permanecem na rua com os braços
cruzados calam
as mulheres velhas
são imortais
Hamlet agita-se na rede
Fausto faz um papel vil e ridículo
Raskólnikov golpeia com um machado
as mulheres velhas são
indestrutíveis
sorriem com indulgência
deus morre
as mulheres velhas levantam-se cada dia
pela madrugada compram pão vinho peixe
morre a civilização
as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
abrem as janelas
retiram a sujidade
morre um homem
as mulheres velhas
levam os restos
enterram os mortos
plantam flores
nas tumbas
gosto de mulheres velhas
de mulheres feias
de más mulheres
crêem na vida eterna
são o sal da terra
o córtex de uma árvore
são os olhos submissos dos animais
vêem na sua justa medida
a cobardia e o heroísmo
a grandeza e a insignificância
como as exigências
de um dia quotidiano
seus filhos descobrem a América
caem nas Termópilas
morrem nas cruzes
conquistam o cosmos
as mulheres velhas saem de madrugada
para a cidade compram leite pão
carne condimentam a sopa
abrem as janelas
só os idiotas se riem
das mulheres velhas
das mulheres feias
das más mulheres
porque são mulheres belas
mulheres boas
mulheres velhas
são um ovo
são um segredo
sem segredos
são uma bola que roda
as mulheres velhas
são múmias
dos gatos sagrados
são pequenos
murchos
secos
frutos mananciais
ou gordurosos
budas ovais
quando morrem
brota do olho
uma lágrima
que se une na boca
com o sorriso
de uma mulher jovem
Tadeusz Różewicz
¶ 14 de Maio de 2021
Estive a escrever
um momento ou uma hora
sentia ira
mudo
sentei-me junto a mim
os olhos embaciaram-se-me de lágrimas
estava a escrever há muito tempo
de repente dei-me conta
de que não tenho a pena na mão
Tadeusz Różewicz
¶ 13 de Maio de 2021
Conto-vos uma história
não muito curiosa
a queima de poemas
deve fazer-se em silêncio
é uma cerimónia
desprovida de gestos
patéticos
a queima de poemas deve fazer-se
no meio de uma decoração comum
uma mesa três cadeiras
um armário com livros
arde o papel
dança a chama
o fumo sobe para cima
Quando nasceram as palavras
gritou
agora cala
Tadeusz Różewicz
¶ 12 de Maio de 2021
Assolado
pelo riso e pelas palavras
golpeado
pelos pequenos sentimentos e pelas coisas insignificantes
por meio amor
e meio ódio
aí onde há que gritar
falo com um sussurro
Conheceis esta voz
quebra-se na garganta seca
como uma cana
os velhos poemas caem de mim
todavia não me atrevo a sonhar com os novos
com a nova poesia
a qual
pode pressentir-se
num momento feliz
Tadeusz Różewicz
¶ 11 de Maio de 2021
Nunca entregues o coração todo, porque o amor
Nem será digno de consideração
Para as mulheres apaixonadas se lhes parecer
Certo, e elas nunca imaginam
Como se esvai de beijo em beijo;
Porque tudo o que é aprazível é
Apenas um breve deleite, gentil e sonhador.
Oh, nunca entregues o coração sem volta,
Pois elas, apesar do que dizem com lábios suaves,
Entregaram ao jogo seus corações.
E quem saberia ainda jogar bem
Se estivesse surdo e mudo e cego de amor?
Este que isto escreve fala do que é seu
Porque entregou o coração todo e perdeu.
W. B. Yeats, versão de Pedro Mexia
¶ 10 de Maio de 2021
Posso nomear o inominável com a palavra
posso nomear a pátria
o amor o oiro uma rosa
posso gritar ou calar
posso enunciar as cores
os mares as ilhas os pássaros os frutos.
Digo o nome de minha amada
à pátria chamo-a pelo seu nome
repito duas vezes uma palavra
chamo o inominável com o silêncio.
Tadeusz Różewicz
¶ 9 de Maio de 2021
Morrer é importante demais para estar com paninhos quentes. Dizer que alguém faleceu é querer evitar a única palavra que está à altura do que lhe aconteceu.
Miguel Esteves Cardoso
¶ 8 de Maio de 2021
Um vendaval
despojou todas as folhas das árvores ontem à noite
com a excepção de uma folha
deixada
a baloiçar sozinha num ramo nu.
Com este exemplo
a Violência demonstra
que sim, senhor -
gosta da sua piadinha de vez em quando.
Wisława Szymborska
¶ 7 de Maio de 2021
Dizias que nos sobram as palavras:
e era o lugar perfeito para as coisas
esse escuro vazio no teu olhar.
E demorava a dura paciência,
fruto do frio nas nossas mãos vazias
que mais coisas não tinham para dar.
Dizia então a dor o nosso gesto
e durava nas coisas mais antigas
a solidão sem rasto que há no mar.
Luís Filipe Castro Mendes
¶ 4 de Maio de 2021
Não te ocupes das vírgulas, todos esses signos
de pontuação, hífens e aspas
que marcas com tanta minúcia,
perder-se-ão, por obra do descuido
do corrector e o teu ritmo
da frase, do pensamento, da linguagem
resultará menos importante do que
esperavas ou talvez do que querias.
Tudo isso eram sonhos dourados:
não te lerão ao som da música da fala
antes ao som do estrépito do mundo.
Piotr Sommer
¶ 3 de Maio de 2021
Nas festas sempre vêm de longe
algumas pessoas adultas;
estranhos, uma família distante
da esposa ou dos amigos.
Em geral é a última vez
que os vês, ou também
a primeira, quase como os retratos
dos velhos mestres na pequena
Exposição de Época. Querem manter-se
galhardos e sorriem para
ti, e para um par de pessoas mais,
como se quisessem gravar suas fotos
no ar. Vê,
move-se-lhes o branco dos olhos.
Entretanto esfria a comida,
o vodka nos copos
impregna-se de vidro, e eles
seguem falando, oferecem-te a tarte
que prepararam em casa. Os homens
já têm sono, as crianças dormem.
Mas quase sempre
alguém os escuta até ao final.
um jovem tímido,
bem educado, já com idade
para tomar vodka
com os adultos, todavia
um pouco aflito
com as mulheres, ainda sozinho
consente amavelmente as palavras
de uma velhinha afável, que amanhã
terá de acompanhar à estação
depois do pequeno-almoço.
Piotr Sommer
¶ 2 de Maio de 2021
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Eugénio de Andrade
¶ 1 de Maio de 2021
O sol da tarde
atrás da esquina da cidade,
e cada segmento de pele,
e cada pensamento
permanecem sobrepostos,
e nada se pode ocultar
porque tudo sai a reluzir:
as cartas sem resposta,
a ingratidão,
uma memória curta.
Piotr Sommer