Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de janeiro 2023


31 de Janeiro de 2023

O coração é como um fruto

O coração é como um fruto
cresce
amadurece
mas não cai:
Se alguém o quiser
não morre

Ana Hatherly


30 de Janeiro de 2023

Paul Klee



30 de Janeiro de 2023

língua materna

se eu fosse eloquente na tua língua
dir-te-ia
como é
quando alguma coisa difícil te ama,
como é
quando começas a amá-la de volta,
e como isto pode
custar-te tudo.

Lucille Clifton


26 de Janeiro de 2023

Berlim

Alugaram bicicletas e, durante dois dias, percorreram toda a extensão do Muro e depois o perímetro das vedações que separavam Berlim Ocidental do resto da Alemanha de Leste. Os jovens alemães que viviam em Berlim Ocidental não tinham de cumprir o serviço militar. Tudo o que havia de não-convencional - futuros poetas, pintores, escritores, realizadores de cinema e músicos e, em geral,  a contracultura - acorria à cidade que, no entanto, parecia deserta, um lugar no fim do mundo.

Ian McEwan, in Lições


25 de Janeiro de 2023

Gosta Adrian-Nilsson



25 de Janeiro de 2023

Do not despise your inner world

Do not despise your inner world. That is the first and most general piece of advice I would offer… Our society is very outward-looking, very taken up with the latest new object, the latest piece of gossip, the latest opportunity for self-assertion and status. But we all begin our lives as helpless babies, dependent on others for comfort, food, and survival itself. And even though we develop a degree of mastery and independence, we always remain alarmingly weak and incomplete, dependent on others and on an uncertain world for whatever we are able to achieve. As we grow, we all develop a wide range of emotions responding to this predicament: fear that bad things will happen and that we will be powerless to ward them off; love for those who help and support us; grief when a loved one is lost; hope for good things in the future; anger when someone else damages something we care about.

Martha Nussbaum


25 de Janeiro de 2023

Do que me lembro

Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para esse reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo
Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite
Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo

José Tolentino Mendonça


24 de Janeiro de 2023

Homens

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria


23 de Janeiro de 2023

Alqueva



23 de Janeiro de 2023

Passagem

Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?

Manuel António Pina


23 de Janeiro de 2023

Éramos os eleitos do sol

Éramos os eleitos do sol
E não nos demos conta
Fomos os eleitos da mais alta estrela
E não soubemos responder à sua dádiva
Angústia de impotência
A água amava-nos
A terra amava-nos
As selvas eram nossas
O êxtase era o nosso próprio espaço
O teu olhar era o universo frente a frente
A tua beleza era o som do amanhecer
A primavera amada pelas árvores
Agora somos uma tristeza contagiosa
Uma morte antes do tempo
A alma que não sabe em que lugar se encontra
O Inverno nos ossos sem qualquer relâmpago
E tudo isto porque não soubeste o que é a eternidade
Nem compreendeste a alma da minha alma no seu barco de trevas
No seu trono de águia ferida de infinito

Vicente Huidobro


19 de Janeiro de 2023

André Fougeron



19 de Janeiro de 2023

As palavras quotidianas

A questão é entender a intenção
das palavras que usamos obcecadamente:
as que o ardina grita,
as que o leiteiro murmura entre os vapores
do amanhecer,
as que rodopiam obsessivamente na cabeça do louco,
as que sem saber o carteiro leva no saco.

São poucas as palavras que sustentam a realidade
e que poderiam destruí-la apenas com a sua ausência;
são as que usamos para explicar a nossa parte do mundo,
as palavras de nossa convicção,
da nossa aposta íntima.

A questão é entender a intenção das palavras,
essa harmonia sem ênfase que se parece ao destino.

Santiago Sylvester


18 de Janeiro de 2023

Gosta Adrian-Nilsson



18 de Janeiro de 2023

Compreender o quê?

Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir, para onde Ehud, o que são essas senhoras velhas, os ganidos da infância, os homens curvos, o que pensam de si mesmos os tolos, as crianças, o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som, trinado, urro, grito, o que é asa hen?

Hilda Hilst


17 de Janeiro de 2023

Casal

A noite chega
e depois da noite, escuridão
depois da escuridão
olhos
mãos
e respiração, respiração, respiração
e o som da água
que cai ping ping ping da torneira
depois dois
pontos vermelhos
de dois cigarros acesos
o bater do relógio
e dois corações
e duas solidões

Forugh Farrokhzad, trad. Bruno M. Silva


17 de Janeiro de 2023

Gosta Adrian-Nilsson



15 de Janeiro de 2023

explicar palavras

Vista daqui, a infância cabe na palavra anona.
A palavra Arminda também serve , além de nome
é o resumo de uma celebração.
A palavra juventude é demasiado eufórica,
mas continua, impetuosa e grave, a salvo de
qualquer caducidade.
Também o meu tio Santiago estava a salvo da caducidade:
          sensatamente a ignorava
          quando aos setenta anos fazia projectos que lhe
                          levariam outros setenta
          e sumariava, como quem ensina,
                          sou eterno, isso é tudo.
Não se trata tanto, então, de juntar palavras como
           significados: a persistência de alguém que por acaso
           seja eu.
Porque quem fará o trabalho, senão eu,
           sabendo que consiste, até à exaustão,
           em continuar a procurar o já procurado?
Mais uma vez
não é repetição:
            o que conta é o gotejar,
            o preço da aprendizagem;
surge então a palavra inconclusa: reclama
            a sua metade,
                           encrespa-se e não vem só.
Daí todo este ruído:
            este excesso de palavras
            para explicar palavras.

Santiago Sylvester


14 de Janeiro de 2023

A falésia

Janela entre céu e terra em lugar desconhecido. Aberta sobre um penhasco incolor. O cume escapa à vista onde quer que se fixe. Assim como o sopé. Recortado por duas fatias de céu eternamente branco. Alguma sugestão no céu sobre o fim da terra? O éter além? Nenhum vestígio de aves marinhas. Ou demasiado pálido para se ver. Enfim, que prova de um rosto? Nenhuma que a vista vislumbre onde quer que se fixe. Desiste e o pandemónio começa. Emerge por fim primeiro a sombra do rebordo. A paciência será animada com restos mortais. Um crânio inteiro surge no fim. Um único entre aqueles cujos restos evidenciam. Tenta ainda afundar o osso frontal na rocha. O velho olhar como que mostrando-se no interior das órbitas. Por vezes o penhasco desaparece. Então o olho esvoaça de uma margem branca à outra margem. Ou por consequência afasta-se de tudo.
 
Samuel Beckett


12 de Janeiro de 2023

Oskar Schlemmer



12 de Janeiro de 2023

Reencontro

Alguma vez pensaste como será
O nosso reencontro?
Se o sol brilhará
Ou se a chuva baterá
Contra o vidro da janela?
Aparecerás subitamente
Numa esquina,
Como um sonho caindo no meu vazio?
Ou irei esperar-te
Contando ansiosamente as horas no relógio
Até apareceres?
Tu.
Ter-te-á a vida mudado,
Tornando-te estranha?
Iremos saudar-nos rapidamente
Com um sorriso resignado, partindo logo à pressa?
Ou será como era dantes?

Ruth Maier


11 de Janeiro de 2023

não há mais palavras

Tenta acabar de imediato
com os gestos deliberadamente provocatórios e as estatísticas de vendas,
almoços de domingo e fornos a gás,
acabar com os desfiles de moda e os horóscopos,
paradas militares, concursos de arquitectura
e o tumulto das luzes dos semáforos.
Liberta-te de tudo isso e prepara-te
para terminar com as festas e a remota possibilidade
de ganhares na lotaria,
índices do custo de vida e análises da bolsa de valores,
porque é muito tarde,
é demasiado tarde,
acaba com isso e vem para casa
para o silêncio que enfim
te encontrará como sangue quente a pulsar na testa
e como um trovão pelo caminho
e o bater das horas em relógios enormes
que fazem os tímpanos vibrar,
porque as palavras já não existem,
não há mais palavras,
de agora em diante toda a conversa terá lugar
com as vozes das pedras e das árvores.

Rolf Jacobsen


10 de Janeiro de 2023

José Pancetti



10 de Janeiro de 2023

Algumas pessoas

Algumas pessoas
saem da nossa vida, algumas pessoas
entram sem convite
na nossa vida e sentam-se,
algumas pessoas nela
caminham calmamente, algumas pessoas
oferecem-te uma rosa
ou compram-te um carro novo,
algumas pessoas
ficam muito próximas de ti, algumas pessoas
que esqueceste por completo,
algumas pessoas, algumas pessoas
são tu próprio,
algumas pessoas
nunca viste de todo, algumas pessoas
comem espargos, algumas pessoas
são crianças,
algumas pessoas sobem ao telhado,
sentam-se à mesa,
descansam nas redes, passeiam com guarda-chuvas
vermelhos,
algumas pessoas observam-te,
algumas pessoas nunca atentaram em ti, algumas pessoas
querem dar-te a mão, algumas pessoas
morrem durante a noite,
algumas pessoas são outras pessoas, algumas são tu mesmo, outras
não são,
algumas são.

Rolf Jacobsen


9 de Janeiro de 2023

Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Hélder


8 de Janeiro de 2023

Oskar Schlemmer



8 de Janeiro de 2023

Boas relações

Os reclusos detestam-se
mas apesar do rancor
tratam-se com educação.

Os reclusos detestam-se
mas contudo, por dignidade,
jamais falam com o guarda.
Os reclusos detestam-se
mas à noite mantêm diálogos
fingindo que falam sozinhos.

Raúl Gustavo Aguirre


8 de Janeiro de 2023

Aquele que nunca aprende

Aquele que nunca aprende toca o fogo,
aquele que nunca aprende dá uma mão,
aquele que nunca aprende volta a andar.

Aquele que nunca aprende magoa-se
contra uma parede e contra outra
e depois contra outra e contra outra
e continua a caminhar.

Raúl Gustavo Aguirre


7 de Janeiro de 2023

Amedeo Modigliani



6 de Janeiro de 2023

O único inconveniente

Está-se bem na minha caverna.
E lá tudo é possível.
Não há rei mais poderoso
do que este ser solitário.
O único inconveniente,
é certa sensação
de que algo essencial
ocorre noutro lugar.

Raúl Gustavo Aguirre


5 de Janeiro de 2023

Outra parábola

No prado, junto à tua margem, deixarei um bote.

Estará à tua disposição para quando desejares usá-lo.

No fundo terá um pequeno furo. Quando o navegares, encher-se-á de água, não o suficiente para te fazer naufragar mas apenas para que uma vez chegada a esta margem se torne inutilizável.

Pois desta margem não há retorno.

Alberto Cinza


4 de Janeiro de 2023

Oskar Schlemmer



4 de Janeiro de 2023

Parábola

Um pássaro leva o sol no coração.
Quando começar a cantar
ainda muito silêncio haverá na sua música
será possível compreendê-la
mas depois muito lentamente
a música crescerá
e ao ardente meio-dia
no imenso e furioso meio-dia
o pássaro e quem o seguia terão desaparecido.

Raúl Gustavo Aguirre


2 de Janeiro de 2023

No fundo dos teus dias

No fundo dos teus dias apenas o amor ficará.
Quando romperem as pedras, quando estalarem os vidros,
quando apartarem as lentas e piedosas cortinas,
não se verão teus ossos que nada foram,
não lerão teu nome borrado pelos ventos,
não encontrarão teu rosto nas arenas,
mas o amor estará onde tu estiveste,
poderão trazê-lo do fundo dos seus dias,
levantá-lo, pô-lo de pé, levá-lo em andores
por um tempo melhor, de beleza sem fome,
por um tempo de magia, sem penas nem justiça,
como um dia há-de ser o tempo para todos.

Raúl Gustavo Aguirre


1 de Janeiro de 2023

Pablo Picasso



1 de Janeiro de 2023

Ifigénia na Táurida

Assim desces até mim, Promessa cumprida,
filha mais bela do pai supremo!
Como te mostras grandiosa à minha frente!
Mal alcanço com o olhar as tuas mãos,
cheias de grinaldas, de frutos e de bênçãos!
Só vós, ó deuses, conheceis o amplo reino do futuro,
quando, noite após noite, brumas e astros
nos fecham o horizonte. Calmos,
ouvis a nossa urgência; mas a vossa mão
só colhe maduros os frutos dourados do céu

Goethe, trad. Frederico Lourenço