Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de dezembro 2016


26 de Dezembro de 2016

As Palavras

As palavras foram feitas para abafar o grito
As palavras são forma entre outras de fintar o arrepio mais íntimo
e tudo o mais que pode envergonhar qualquer gentio.

Diz-me, preferias ser Sol, ou falar dele?
Comentar uma das mulheres de Modigliani
(Jeanne Hebuterne ou uma prima com os genes, vê se não),
ou beber-lhe o olhar?
Marcar um golo limpo e lindo, ou comentá-lo?
Ser homem de palavra, na circunstância,
ou seduzir plateias com nada?
(esta, uma escolha que dirá muito de ti, não menos que as outras).

As palavras não chegam, não chegam, as palavras não chegam.
Por exemplo, quando queremos falar do amor,
da dor de ser o eterno segundo classificado,
da dor de dentes da filha pequena, da revolução,
da falta de pão, do brinco verde, da puta que os pariu.

Talvez por isso, a pensar nisso, as palavras sejam tão preciosas;
sempre menos que o que pode ir com elas.

Uiva, cão.

Rui A.


25 de Dezembro de 2016

Mário Cesariny de Vasconcelos

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25 de Dezembro de 2016

Prenda

Dizes-me que o silêncio
está mais próximo da paz do que os poemas
mas se como prenda
te trouxesse o silêncio
(pois eu conheço o silêncio)
dir-me-ias
Isto não é o silêncio
isto é mais um poema
e devolver-mo-ias

Leonard Cohen, trad. Vasco Gato


24 de Dezembro de 2016

Tsuguharu Foujita

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24 de Dezembro de 2016

Os Justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luís Borges


21 de Dezembro de 2016

Imagina

Não saibas: imagina ...
Deixa falar o mestre, e devaneia ...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões ...
Um a-be-cê secreto
Que soletres à margem das lições ...

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia.

Miguel Torga


21 de Dezembro de 2016

Salvador Dalí

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21 de Dezembro de 2016

Solstício de inverno

O  início do inverno acontece em 2016 a 21 de dezembro. A hora exata que marca o início do inverno em Portugal - e no hemisfério norte - em 2016 é 10h44.

O dia do solstício de inverno é na verdade o dia mais curto do ano e, consequentemente, o dia que tem a noite mais longa. A partir daí, a duração do dia começa a crescer.


16 de Dezembro de 2016

Tsuguharu Foujita

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16 de Dezembro de 2016

Um espaço no coração

Encontro-te nos felizes desembarcadouros,
consorte da noite,
hora desenterrada
quase tepidez de uma nova alegria,
graça amarga do viver sem estuário.

Virgens caminhos oscilam
frescos de rios adormecidos:

E sou ainda o pródigo que ouve
no silêncio o seu nome
quando chamam os mortos.

E é a morte
um espaço no coração.

Salvatore Quasimodo, trad. Vasco Gato


13 de Dezembro de 2016

Tsuguharu Foujita

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13 de Dezembro de 2016

À procura da maçã

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Hélder


12 de Dezembro de 2016

Ninguém

Ninguém pode dormir o sono alheio
e o encontro aqui-e-agora é demasiado fugaz
embora haja tempo e silêncio de sobra e céus estelíferos lá no alto,
as janelas escureceram já e nenhum vento altera o portão
Antes de adormecer há tempo para pensar
que as casas e os pensamentos têm morte mais fácil do que a dos seres humanos
É provável que ao acordarmos de manhã já não o compreendamos --
olhando em volta para aquilo que recordamos em contraluz e vendo
algo que nunca vimos e jamais voltaremos a ver

Jaan Kaplinski, versão de Vasco Gato


11 de Dezembro de 2016

Lou Dahua

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11 de Dezembro de 2016

a primeira palavra

Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera.
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
a superfície do tempo.

Ruy Belo


6 de Dezembro de 2016

Lluïsa Vidal

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6 de Dezembro de 2016

O que amamos

O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos - que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exacto jaz.

Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueira

com setas negras na escuridão.

Cecília Meireles