Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de abril 2020


30 de Abril de 2020

Trezentos e Sessenta Graus

Vê-se que todas as mães caem de podres. A velhice começou pelo meio, algures, num sítio obscuro. No seu amor. Ou no pânico que acompanha esse amor. Quando as mães estão velhas, encontramo-nos absolutamente sós. Vou-me embora - declarei eu. Podemos então correr mundo. É-nos dado sofrer à vontade; ser alegres, violentos e loucos; fugir; amar todas as coisas como se estivéssemos perdidos para sempre.

Herberto Helder,  in Os Passos em Volta


30 de Abril de 2020

A. Venediktov

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30 de Abril de 2020

Omar Khayyam, ou o cálice do tempo

Para lá das coisas do vinho e de mulheres
(com que sempre falaste à altura do teu gosto),
mais que estar á altura eu quero dizer-te como:
Como me agrada, a forma como te diriges às pessoas;
Como acho fantástico, que bebas tão bem, numa religião que suponho ser tua;
Como me impressiona, o som das cores no recreio que me dás.
Dos teus netos não  conheço nada de relevante,
nem mesmo para os esquilos
(que estão sempre contentes, segundo o imaginário).
Aí, amigo, acho que falhaste.

Omar, Omar, Omar,
o meu cálice é o tempo do teu tempo

Rui A.


29 de Abril de 2020

Evgeni Gordiets

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29 de Abril de 2020

Um nome

O nome que tu transportas é o nome
onde és tudo. O nome: és
tu que o és. Em teu nome
tu és tu. É
um nome que te leva com
o seu número de letras a
certa altura maior do que um simples
nome em ti. Significa mais
significa: justiça
(dignifica-se a si mesmo) um tal nome
significa-te. Porque esse teu curto nome foi
um nome que cresceu
para continuares a ser nele
para seguir sendo
o teu.

João Luís Barreto Guimarães


29 de Abril de 2020

Evgeni Gordiets

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29 de Abril de 2020

Mas há a vida

    Mas há a vida
    que é para ser
    intensamente vivida, há o amor.

    Que tem que ser vivido
    até a última gota.
    Sem nenhum medo.
    Não mata.

    Clarice Lispector


28 de Abril de 2020

Passagem

Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?

Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?

Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?

Manuel António Pina


27 de Abril de 2020

Evgeni Gordiets

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27 de Abril de 2020

Portugal, 26 de Abril

Sou do tempo em que havia uma Direcção Geral
de Segurança.
E por mais que achasse graça a correrias,
aquelas dos cães traziam aflição aos olhos miúdos:
a competição não tinha qualquer espécie de decência,
correr assim não parecia estar bem.

(era mesmo aflição, o enfado veio com o correr dos anos)

Surgiram cravos lilases, dos quais ninguém falou:
embora houvesse notícias de manhã, à tarde e à noite,
muitas delas relevantes.

E todos os meus heróis tinham um posto meritório
e bela franja
(de general para cima, ainda mais a ser da marinha).

Enfim, era o lego perfeito,
na infância breve, breve, breve.

Rui A.


26 de Abril de 2020

Que estranha forma de vida

Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vives de forma perdida
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida
Coração independente
Coração que não comando
Vives perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente
E eu não te acompanho mais
Para deixa de bater
Se não sabes onde vais
Porque teimas em correr
Eu não te acompanho mais
Se não sabes onde vais
Para deixa de bater
Eu não te acompanho mais


26 de Abril de 2020

About Life

In Three Words, I Can Sum Up Everything I've Learned About Life.

It Goes On.

Robert Frost


26 de Abril de 2020

Joaquín Sorolla

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26 de Abril de 2020

Spring

To what purpose, April, do you return again?
Beauty is not enough.
You can no longer quiet me with the redness
Of little leaves opening stickily.
I know what I know.
The sun is hot on my neck as I observe
The spikes of crocus.
The smell of the earth is good.
It is apparent that there is no death.
But what does that signify?
Not only under ground are the brains of men
Eaten by maggots.
Life in itself
Is nothing,
An empty cup, a flight of uncarpeted stairs.
It is not enough that yearly, down this hill,
April
Comes like an idiot, babbling and strewing flowers.

Edna St. Vincent Millay


25 de Abril de 2020

Grândola Vila Morena

    Grândola, vila morena
    Terra da fraternidade
    O povo é quem mais ordena
    Dentro de ti, ó cidade

    Dentro de ti, ó cidade
    O povo é quem mais ordena
    Terra da fraternidade
    Grândola, vila morena

    Em cada esquina um amigo
    Em cada rosto igualdade
    Grândola, vila morena
    Terra da fraternidade

    Terra da fraternidade
    Grândola, vila morena
    Em cada rosto igualdade
    O povo é quem mais ordena

    À sombra duma azinheira
    Que já não sabia a idade
    Jurei ter por companheira
    Grândola a tua vontade

    Zeca Afonso


25 de Abril de 2020

Joaquín Sorolla

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25 de Abril de 2020

Sempre

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen


24 de Abril de 2020

Joaquín Sorolla

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24 de Abril de 2020

não há mais metafísica no mundo senão chocolates

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

Fernando Pessoa


23 de Abril de 2020

Max Kurzweil

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23 de Abril de 2020

Último soneto

Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes - e vieste...
- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste -
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Mário de Sá-Carneiro


22 de Abril de 2020

Do tempo

Deixai que a vida sobre vós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela
senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,

a que é do tempo a ideada formosura,
a que se encontra se se não procura.

Jorge de Sena


20 de Abril de 2020

Mary Shelley

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20 de Abril de 2020

mais nada

Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de mais nada fazer.


Clarice Lispector


19 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

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19 de Abril de 2020

Eco

É mais fácil partir quando o silêncio
transpõe a tua voz.

Mais simples celebrar a tão efémera
certeza de estares vivo.

A música do ar esvai-se nas sombras,
tu sabes que é assim,
que os dias correm céleres, não tentes
perseguir o seu rasto - repara
como em abril as aves são felizes.

Sê como elas: não perguntes nada,
deixa que o sol responda à flor da tarde
e esquece-te do mundo.
        
Fernando Pinto do Amaral


18 de Abril de 2020

Homem do Leme

Sozinho na noite
Um barco ruma para onde vai.
Uma luz no escuro brilha a direito
Ofusca as demais.
E mais que uma onda, mais que uma maré...
Tentaram prendê-lo impor-lhe uma fé...
Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade,
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme...
E uma vontade de rir nasce do fundo do ser.
E uma vontade de ir, correr o mundo e partir,
A vida é sempre a perder...
No fundo do mar
Jazem os outros, os que lá ficaram.
Em dias cinzentos
Descanso eterno lá encontraram.
E mais que uma onda, mais que uma maré...
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé...
Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade,
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme...

E uma vontade de rir...


18 de Abril de 2020

Acordar

Acordar, ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.

Eugénio de Andrade


18 de Abril de 2020

Monet

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18 de Abril de 2020

Espelho

E eis que do tronco
rompem-se os brotos:
um verde mais novo da relva
que o coração acalma:
o tronco parecia já morto,
vergado no barranco.

E tudo me sabe a milagre;
e eu sou aquela água de nuvens
que hoje reflete nas poças
mais azul seu pedaço de céu,
aquele verde que se racha da casca
e que tampouco ontem à noite existia.

Salvatore Quasimodo


16 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

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16 de Abril de 2020

Lugar

No lugar delimitado
das escavações
reduz a pó
o nada
encontrado

sagrado lugar
desabitado
por milênios

faz a sua casa
e senta na varanda
ao entardecer

a paisagem
destrava as portas
e pela abertura
antevê o restante.

Pedro Du Bois


15 de Abril de 2020

Se uma gaivota viesse

Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse
Se um olhar de novo brilho
No meu olhar se enlaçasse

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem a despedida
O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro

Que perfeito coração
Morreria no meu peito
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração

Alexandre O'Neill


14 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

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14 de Abril de 2020

Carta a Arnaldo Antunes

Boa noite, fiel amigo
oxalá estejas bem,
alguma agitação em casa.

Faltando as palavras,
pareceu-me bem desdobrar em linhas várias
(para ocupar mais espaço),
a carta que te escrevo.

Parece de meio-velho, este relato postal
(seguramente estranho, reconheço,
em quem caminha ainda para cinquenta e seis)
mas não para ti.
Bem sabes como comigo tudo surgiu
depois do tempo comum:
do primeiro cigarro ao beijo na boca,
já nos catorze.

Mas era um dia vestido de azul claro, aquele:
quando descobri como,
para lá de palácios viáveis
e poder aquisitivo,
contacto com os célebres,
primeiras edições...
... valia outra espécie de coisas.

Acho que nunca te disse
daquele campeonato do mundo de carica que organizei
e fiz sozinho,
algures na Beira Baixa.
No mais belo local do mundo
(Nave Pequena, um pouco acima de Sobreira Formosa
- outro Oceano).

Com a selvagem tia Emília por perto,
nunca te falei dela
(e fica para outra).
Delícia.

Tirei apontamentos, e tinha na altura caracóis,
e era louro,
e conquistei todos os lugares do pódio.

Hoje bebo vinho.

Rui A.


13 de Abril de 2020

Joaquin Sorolla

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13 de Abril de 2020

O barulho das coisas ao cair

Parece-me agora incrível não ter compreendido que as nossas violências não são apenas as que nos calharam em vida, mas também as outras, as que vêm de antes, porque todas estão ligadas embora não sejam  visíveis os fios que as unem porque o tempo passado está contido no tempo presente, ou porque o passado é a nossa herança sem benefício de inventário e no final acabamos por receber tudo: a prudência e as desmesuras, os acertos e os erros, a inicência e os crimes.

Juan Gabriel Vásquez


13 de Abril de 2020

A forma das ruínas

Comecei a viver sem me aperceber, o que é sem dúvida uma das metáforas da felicidade.

Juan Gabriel Vásquez


12 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

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12 de Abril de 2020

Isto

Eu sabia da falta que fazias.
Nunca pensei
dizer-te isto

Rui A.


11 de Abril de 2020

Invictus

Out of the night that covers me,
      Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
      For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
      I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
      My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
      Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
      Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
      How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate,
      I am the captain of my soul.

William Ernest Henley


11 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

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11 de Abril de 2020

Antes isso

As ondas indo, as ondas vindo -- as ondas indo e vindo sem
parar um momento.
As horas atrás das horas, por mais iguais sempre outras.
E ter de subir a encosta para a poder descer.
E ter de vencer o vento.
E ter de lutar.
Um obstáculo para cada novo passo depois de cada passo.
As complicações, os atritos para as coisas mais simples.
E o fim sempre longe, mais longe, eternamente longe.

Ah mas antes isso!

Ainda bem que o mar não cessa de ir e vir constantemente.
Ainda bem que tudo é infinitamente difícil.
Ainda bem que temos de escalar montanhas e que elas vão
sendo cada vez mais altas. Ainda bem que o vento nos oferece resistência
e o fim é infinito.

Ainda bem.
Antes isso.
50 000 vezes isso à igualdade fútil da planície.

Mário Dionísio


10 de Abril de 2020

De como me envergonham as pessoas mais plácidas

A tristeza
convida a poesia.

Qualquer pessoa satisfeita
tem mais que fazer.

Rui A.


10 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

William mc Woman with Book by William McGregor Paxton, c. 1910, oil on.JPG


10 de Abril de 2020

O Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
       (assim assim)
escriturários
       (muitos)
intelectuais
       (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill


8 de Abril de 2020

Tempo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça


8 de Abril de 2020

Utagawa Kuniyoshi

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7 de Abril de 2020

Cotidiano

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão

Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão

Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Chico Buarque


7 de Abril de 2020

Das ondas

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7 de Abril de 2020

Sonhar o horizonte, hipótese N

José informou faz tempo
do peso das circunstâncias, no que somos,
de como fenómenos absolutamente indesejáveis
nos explicam sítios
e apeadeiros.

Da sua fraca figura, pouco dada às festas e aos problemas
(gozados com inegável mérito),
José quis explicar, no seu tom,
várias cantigas gregas, romanas e africanas.

Na Beira Baixa, entre fomes e courelas,
a observação não causou especial sobressalto:
Até o senhor padre cura sabia
que o vinho não se cultiva em Janeiro,
que nem todas as febres altas são obra
do Espírito Santo
(e em muitas coisas, os pobres sabem antes dos demais).

Na falta de remédio,
Cavar, cavar

Cavar.

Rui A.


5 de Abril de 2020

Alice Neel

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5 de Abril de 2020

antes e depois

Imaginamos lugares estritos
para o sublime que vem afinal
depositar-se à nossa soleira
trazido pelas folhas
antes e depois da passagem

Os dias são um prólogo se uma pessoa caminha
até que uma verdade lhe seja revelada

José Tolentino Mendonça


4 de Abril de 2020

Do romance

Há um desconhecimento acerca da essência do romance, que é a capacidade para penetrar em vidas que não são as nossas.

Juan Gabriel Vásquez


4 de Abril de 2020

Como Um Respirar

Nunca nada de novo começou. Sou um homem,
com a sua mulher um corpo,
criando os filhos
para um tempo sem medo.

Johannes Bobrowski, trad. João Barrento


3 de Abril de 2020

Evgeni Gordiets

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3 de Abril de 2020

Menina das sete saias

Havia muitos dias de luares bonitos,
fragas e muros que desculpavam;
Toda a sede se encomendava a cantares,
menina das sete saias.

Havia toques por nada,
Em jeito meio punk ou mais contido
"a solidão aberta nos lábios e nos dentes".
E o mundo era risível, fazer troça chegava.

Que não se acabem as pilhas, não acabe o som.

(com Onades, com o nem sempre simpático Lluís Llach,
com Cohen e tantos que vamos descobrir, fofa:)

Voltaremos.

Finalmente
iguais.

Rui A.


3 de Abril de 2020

Acordar Tarde

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de sal tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

Al Berto


2 de Abril de 2020

Utagawa Kuniyoshi

Utagawa Kuniyoshi.jpg


2 de Abril de 2020

Dokkōdō

There is nothing outside of yourself that can ever enable you to get better, stronger, richer, quicker, or smarter. Everything is within. Everything exists. Seek nothing outside of yourself.

Miyamoto Musashi


1 de Abril de 2020

William McGregor Paxton

William McGregor Paxton.jpg


1 de Abril de 2020

No canto dos pássaros

Lembro o tempo das cerejas de Abril:
de quando vencia piratas mais altos que eu
e dava centenas de toques na bola,
em habilidade extrema.

Lembro de como salvava mundos e fundos,
em estados gripais ou a convalescer
de alguma hemorragia dos dentes
(eram muitos, os mundos,
E os fundos altíssimos).

Eu não era propriamente o super-homem
(sabia já que estava no caminho, mais que qualquer um),
e desgostava-me um pouco
que tantos percebessem
a satisfação num arroz doce
(fraqueza antiga, quase rendição).

Achava que o mês seria magnífico, para mim,
e Maio ainda melhor;
um dia faria caravelas
das pontas de um cigarro qualquer.

Não pensava nas desgraças do interior
e as desigualdades em nada me afectavam
(voava, no mínimo, à altura de Eusébio,
os outros que se cuidassem).

O trabalho precário ainda não tinha sido inventado,
a fome era muito natural
e a violência doméstica bastante considerada.
O mundo de aqui era invejavelmente pacífico.

Assobiava melhor que qualquer pássaro.

Ai, Amélia,
Cansam-me os teus olhos tristes
(soubesses o que eu sei).

Vem deitar.

Rui A.