Arquivo de setembro 2020
¶ 28 de Setembro de 2020
Se não a conhecesse tão bem certamente haveria de ler os livros dela. Mas, como a conhecia muito bem, receava ler o que ela escrevia. Talvez até pudesse encontrar-me a mim mesma, descrita nos seus livros de maneira incompreensível para mim. Ou os lugares que me são caros e que para ela podem ser uma coisa completamente diferente daquilo que são para mim. Em certo sentido, pessoas como ela, que usam a pena, podem ser perigosas. A primeira coisa que nos ocorre é a suspeita de falsidade - uma pessoa assim não é genuína, mas sim um olho em constante observação, e tudo aquilo que vê transforma em frases, e, desta maneira, priva a realidade daquilo que é a sua característica mais importante - o inexprimível.
Olga Tokarczuk, in Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos, trad. Teresa Fernandes Swiatkiewicz
¶ 27 de Setembro de 2020

¶ 27 de Setembro de 2020
Quando falo de cultura, refiro-me ao humanismo, à história e filosofia, à cultura verdadeira, ao debate, à razão, ao pensamento, à lógica, à ciência com razão. Para mim, tudo isso é cultura.
Arturo Pérez-Reverte
¶ 24 de Setembro de 2020
Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
esperavam de ti que as sentisses. Levantava-se
uma onda no passado e aproximava-se, ou,
ao passares pela janela aberta,
um violino entregava-se. Tudo isto era missão.
Mas cumpriste-a tu?
Rainer Maria Rilke
¶ 23 de Setembro de 2020

¶ 23 de Setembro de 2020
Ai, como eu gostava de ser jovem, ter umas horas menos que alguns anos.
Dizer como Tolstoi, em duas linhas:
Importa o amor, nada mais é que o resto.
Jogar xadrez, possivelmente bem.
Rui A.
¶ 22 de Setembro de 2020
A pedra tem a boca junto do ouvido
E para dentro de si mesma sem cessar se diz.
Se cair nos olhos
Quebrar-se-á em pranto.
Se rodar no dorso
Vergar-me-á.
Pesa-me no bolso
E na cabeça.
Não é um pensamento.
É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada
Pelo lado de dentro.
Daniel Faria
¶ 22 de Setembro de 2020

¶ 21 de Setembro de 2020

¶ 21 de Setembro de 2020
Onde existo que não existo em mim?
Corro em volta de mim sem me encontrar...
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
Para mim é sempre ontem
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem
Na minha dor quebram-se espadas de ânsia
Sou estrela ébria que perdeu os céus
Morro à míngua, de excesso
Heráldico de mim,
Transponho liturgias...
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
¶ 20 de Setembro de 2020
I go down to the shore in the morning
and depending on the hour the waves
are rolling in or moving out,
and I say, oh, I am miserable,
what shall --
what should I do? And the sea says
in its lovely voice:
Excuse me, I have work to do.
Mary Oliver
¶ 20 de Setembro de 2020

¶ 20 de Setembro de 2020
Dizem
de mim: pródigo
filho
retardatário
e me negam abrigo
e me negam afeto
e me negam o direito de ter ido
embora não tenha
feito sucesso
nem ficado
rico
retorno ao convívio
na hora aprazada
ao regresso
não me neguem o tempo
decorrido.
Pedro Du Bois
¶ 20 de Setembro de 2020
Em 2020 o Equinócio de Outono ocorre no dia 22 de Setembro às 14:31 horas. Este instante marca o início do Outono no Hemisfério Norte, estação que se prolonga por 89,813 dias, até ao próximo Solstício, que ocorrerá no dia 21 de Dezembro às 10:02 horas.
¶ 19 de Setembro de 2020

¶ 19 de Setembro de 2020
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
Clarice Lispector
¶ 18 de Setembro de 2020

¶ 18 de Setembro de 2020
Os laços entre uma pessoa e nós só existem no nosso pensamento. A memória, ao enfraquecer, afrouxa-os, e apesar da ilusão com que gostaríamos de ser enganados e com que, por amor, por amizade, por delicadeza, por respeito humano, por dever, enganamos os outros, é sozinhos que existimos. O homem é o ser que que não pode sair de si, que só em si conhece os outros e que quando diz o contrário mente. Eu teria tanto medo de que, se o pudessem fazer, me tirassem aquela necessidade dela, aquele amor por ela, que me persuadia de que este amor era precioso para a minha vida.
Marcel Proust, in Em busca do tempo perdido, vol. VI, A fugitiva, trad. de Pedro Tamen
¶ 17 de Setembro de 2020

¶ 17 de Setembro de 2020
The mountain skies were clear
except for the umlaut of a cloud
over the village.
The little girl wore yellow gloves.
She looked in the peephole and saw
a stack of unused marionettes.
Yet, she wondered.
Mary Ruefle
¶ 16 de Setembro de 2020

¶ 16 de Setembro de 2020
Outro se faz em ventos
redemoinhos e calmas brisas
alisam a terra em que a poeira
deixa rastros: outro altera
a direção e o percurso
aplaude o percorrido em ofertas
de bons dias: outro se faz ingênua
loucura e espantalhos falam
de ouvidos anteriores: antes havia
o tempo disponível ao encontro
das línguas atravessadas em beijos.
Outro desfaz os nós e desenrola
a corda amarrada ao cadáver.
Após o tempo a hora se perpetua.
Outro retribui o gesto acondicionando
láureas vencidas no ódio estremecido
ao ganhador do ócio: outro esquece.
Pedro Du Bois
¶ 15 de Setembro de 2020

¶ 15 de Setembro de 2020
Quem esquece o amor, e o dissipa, saberá
que sentimento corrompe, ou apenas se o coração
se encontra no vazio da memória? O vento
não percorre a tarde com o seu canto alucinado,
que só os loucos pressentem, para que tu
o ignores; nem a sabedoria melancólica das árvores
te oferece uma sombra para que lhe
fujas com um riso ágil de quem crê
na superfície da vida. Esses são alguns limites
que a natureza põe a quem resiste à convicção
da noite. O caminho está aberto, porém,
para quem se decida a reconhecê-los; e os própnos
passos encontram a direcção fácil nos sulcos
que o poema abriu na erva gasta da linguagem. Então,
entra nesse campo; não receies o horizonte
que a tempestade habita, à tarde, nem o vulto inquieto
cujos braços te chamam. Apropria-te do calor
seco dos vestíbulos. Bebe o licor
das conchas residuais do sexo. Assim, os teus lábios
imprimem nos meus uma marca de sangue, manchando
o verso. Ambos cedemos à promiscuidade do poente,
ignorando as nuvens e os astros. O amor
é esse contacto sem espaço,
o quarto fechado das sensações,
a respiração que a terra ouve
pelos ouvidos da treva.
Nuno Júdice
¶ 13 de Setembro de 2020
Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 12 de Setembro de 2020

¶ 12 de Setembro de 2020
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
¶ 11 de Setembro de 2020

¶ 11 de Setembro de 2020
Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho.
Jorge Luis Borges
¶ 10 de Setembro de 2020

¶ 10 de Setembro de 2020
Think not you can direct the course of love, for love, if it finds you worthy, directs your course.
Love has no other desire but to fulfill itself.
But if you love and must needs have desires, let these be your desires:
To melt and be like a running brook that sings its melody to the night.
To know the pain of too much tenderness.
To be wounded by your own understanding of love;
And to bleed willingly and joyfully.
To wake at dawn with a winged heart and give thanks for another day of loving;
To rest at the noon hour and meditate love's ecstasy;
To return home at eventide with gratitude;
And then to sleep with a prayer for the beloved in your heart and a song of praise upon your lips.
Kahlil Gibran
¶ 9 de Setembro de 2020

¶ 9 de Setembro de 2020
Ser a alimentação
na leveza da crueldade
implícita no gesto
de arrependimento
(a palavra evocada
em agradecimento)
o corpo consumido
no anseio da inverdade
as verdades oferecidas
em objeção e reprimenda
o antepasto sucedido
pelos acontecimentos.
Pedro Du Bois
¶ 8 de Setembro de 2020
Tudo -
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais
do que um farrapo de caos.
Wisława Szymborska
¶ 7 de Setembro de 2020
Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.
Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo.
De só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra.
Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.
Luiza Neto Jorge
¶ 6 de Setembro de 2020

¶ 6 de Setembro de 2020
Do que me é dado: do contrato a cláusula
do distrato a causa das razões a lei da dor
a sensação de fazer além do exigido do saber
reler as instruções do amor retornar no pranto
o lenço seco da paixão: do viver aqui estar
enfrento o dia de amanhã e permaneço
presente em minhas situações
rasgo a incerteza do passado
e me apresento na repulsa
com que os olhos enxergam
os poucos conhecidos.
Almoço na hora certa e na descoberta
me faço desconhecido: não acrescento
ao contato o sentido da pele ressecada
do nascimento a morte
do instante a distância
no outono a retirada
Do que sou retirado sobra
a marca tatuada da verdade.
Pedro Du Bois
¶ 5 de Setembro de 2020
De dia correm nuvens, flutuantes!
De noite vivem estrelas, cintilantes!
Se ousares subir tocando em cordas puras,
entoarás a eterna música das esferas.
Goethe
¶ 4 de Setembro de 2020

¶ 4 de Setembro de 2020
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
José Luís Peixoto
¶ 2 de Setembro de 2020
Toma, este é o meu corpo, o que sobe as escadas
em direcção à tua escuridão, deixando-me,
ou a alguma coisa menos tangível,
no seu lugar.
Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras estrangeiras.
Manuel António Pina
¶ 1 de Setembro de 2020

¶ 1 de Setembro de 2020
Não tenhas pressa,
disse no fim do verão,
porque setembro, com o seu delicado ouro,
converte os dias,
e junto à sebe de descuidados arbustos
encontrarás o meu cão
e num vaso de estranho anil as dolorosas
plantas queimadas.
Deixa que os cachos amadureçam,
emoldurados pelas suas esferas rubras.
Na euforia dos lagares,
dança com os teus pés de sangue escuro.
Vislumbra,
na estação do mosto, o primeiro enigma das
mãos desoladas.
José Agostinho Baptista