¶ 31 de Março de 2022
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de março 2022
¶ 31 de Março de 2022
Natura et Ars
Uma floresta é um labirinto?
um deserto pode ser rocaille?
a vida é um romance?
o mundo é um palco?
um florete é uma flor?
uma serpentina é uma serpente?
Imagino o fim da Terra assim
todas as casas e todas as ruas
desaparecem
assim como todas as pessoas
graças a um cataclismo
sobrevivem apenas os telefones
as baratas e as listas dos telefones
marcianos nos dias a seguir
tentam interpretar a lista dos telefones
os marcianos não estabelecem uma relação
entre os telefones e a lista dos telefones
mas entre a lista dos telefones e as baratas
e essa relação é plenamente satisfatória
Adília Lopes
¶ 30 de Março de 2022
É a flecha
O tempo é um passo
Que em seu próprio espaço
Cabe.
Com ele partimos
E nele regressamos
Cumprindo o indirecto plano
Da reintegração:
É a flecha
Desferida do arco de toda a invenção.
Ana Hathertly
¶ 29 de Março de 2022
Lembrança da ria de Faro
Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia
Gastão Cruz
¶ 28 de Março de 2022
Fogo
Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio
Gastão Cruz
¶ 27 de Março de 2022
When I'm sixty-four
When I get older losing my hair
Many years from now
Will you still be sending me a Valentine
Birthday greetings bottle of wine
If I'd been out till quarter to three
Would you lock the door
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four
You'll be older too
And if you say the word
I could stay with you
I could be handy, mending a fuse
When your lights have gone
You can knit a sweater by the fireside
Sunday mornings go for a ride
Doing the garden, digging the weeds
Who could ask for more
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four
Every summer we can rent a cottage
In the Isle of Wight, if it's not too dear
We shall scrimp and save
Grandchildren on your knee
Vera, Chuck and Dave
Send me a postcard, drop me a line
Stating point of view
Indicate precisely what you mean to say
Yours sincerely, wasting away
Give me your answer, fill in a form
Mine for evermore
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four
¶ 26 de Março de 2022
Uma pequenina luz
Uma pequenina luz bruxuleante
Não na distância brilhando no extremo da estrada
Aqui no meio de nós e a multidão em volta
Une toute petite lumière
Just a little light
Una picolla, em todas as línguas do mundo
Uma pequena luz bruxuleante
Brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós
Entre o bafo quente da multidão
A ventania dos cerros e a brisa dos mares
E o sopro azedo dos que a não vêem
Só a adivinham e raivosamente assopram
Uma pequena luz, que vacila exacta
Que bruxuleia firme, que não ilumina, apenas brilha
Chamaram-lhe voz ouviram-na, e é muda
Muda como a exactidão, como a firmeza, como a justiça
Brilhando indeflectível
Silenciosa não crepita
Não consome não custa dinheiro
Não é ela que custa dinheiro
Não aquece também os que de frio se juntam
Não ilumina também os rostos que se curvam
Apenas brilha, bruxuleia ondeia
Indefectível, próxima dourada
Tudo é incerto, ou falso, ou violento: Brilha
Tudo é terror, vaidade, orgulho, teimosia: Brilha
Tudo é pensamento, realidade, sensação, saber: Brilha
Desde sempre, ou desde nunca, para sempre ou não: Brilha
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza, como a justiça
Apenas como elas
Mas brilha
Não na distância. Aqui
No meio de nós
Brilha
Jorge de Sena
¶ 26 de Março de 2022
Carta a Lucílio
Se hoje levei mais tempo antes de responder à tua carta não foi porque as minhas ocupações mo impedissem. Não temas vir a ouvir-me dar uma desculpa destas! Eu tenho todo o vagar que quero, e, aliás, só não tem vagar quem não quer. Os afazeres não andam atrás de alguém: os homens é que se agarram aos afazeres, entendendo as suas ocupações como sinónimo de felicidade.
Séneca
¶ 24 de Março de 2022
optimism and despair
Hope -- and the wise, effective action that can spring from it -- is the counterweight to the heavy sense of our own fragility. It is a continual negotiation between optimism and despair, a continual negation of cynicism and naïveté. We hope precisely because we are aware that terrible outcomes are always possible and often probable, but that the choices we make can impact the outcomes.
Maria Popova
¶ 23 de Março de 2022
Barco
Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco
simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco
lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la
Gastão Cruz
¶ 22 de Março de 2022
Recomeçar a história do mundo
As palavras são legíveis numa face, ilegíveis noutra
nenhuma das nossas frases sozinha quer dizer alguma coisa
o aparecer do mundo não se dá na transmissão de um significado
que se altera mas no movimento desapropriador, na passagem
outras espécies ouvem outros sons, veem outras cores
semeiam com a semente uma chama
um nome ilimitado exposto ao risco da perda
e aos seus arranjos recíprocos
onde a mais alta força se combina com a fragilidade extrema
e essa é a língua matinal do pensamento
nós porém iludidos cremos ainda na redução
como se fosse a redução toda a ciência possível
Não se trata de saber o que é
cheio de passado para colorir o presente
o destino revela-se surpreendente ainda
devemos antes interrogar a inocência
a sua mão de dedos mutilados sobre a parede:
será uma folha intacta menos folha do que uma folha devorada?
não haverá outras hipóteses para o fotograma das formas
e mil modos inéditos de amotinar a vida?
se fizéssemos um registo integral, camada a camada,
se parássemos a escutar uma única e solitária voz humana
no seu esplendor secreto, na sua incandescência, no seu dilúvio mais recuado
recomeçaríamos a história do mundo
Só o ato de se desnudar cumpre a mutação
pois crê no prodígio
e procura-o
José Tolentino de Mendonça
¶ 21 de Março de 2022
Esse canto alterado
A cotovia é
um rouxinol ainda
Os ouvidos não ouvem essa
ave que divide
e a luz que conduz a mântua não canta
Esse canto alterado
como um simples acidente da boca
era um som diferente nos teus mudos
ouvidos
da tão ameaçada madrugada
A tua boca ouve
a noite nessa ave
porém é na manhã que se transforma noutro
o canto que escurece como a luz a dor pouco
antes entre outro canto fugitiva
Vejo-te contra a pele como se não pudesse
ocultar-te de todo o movimcnto
dum incêndio
e a cotovia exprime
impede a tua perda
Gastão Cruz
¶ 19 de Março de 2022
Equinócio da Primavera
Em 2022, o Equinócio da Primavera ocorre no dia 20 de março às 15:33 horas. Este instante marca o início da Primavera no Hemisfério Norte. A estação prolonga-se por 92,778 dias, até ao próximo Solstício, que ocorre no dia 21 de junho às 10:14 horas.
¶ 19 de Março de 2022
La Bohème
Sì. Mi chiamano Mimì
Ma il mio nome è Lucia
La storia mia è breve
A tela o a seta
Ricamo in casa e fuori
Son tranquilla e lieta
Ed è mio svago
Far gigli e rose
Mi piaccion quelle cose
Che han sì dolce malìa
Che parlano d'amor, di primavere
Di sogni e di chimere
Quelle cose che han nome poesia
Lei m'intende?
Mi chiamano Mimì
Il perché non so
Sola, mi fo
Il pranzo da me stessa
Non vado sempre a messa
Ma prego assai il Signore
Vivo sola, soletta
Là in una bianca cameretta
Guardo sui tetti e in cielo
Ma quando vien lo sgelo
Il primo sole è mio
Il primo bacio dell'aprile è mio!
Germoglia in un vaso una rosa
Foglia a foglia la spio!
Cosi gentile il profumo d'un fiore!
Ma i fior ch'io faccio
Ahimè! non hanno odore
Altro di me non le saprei narrare
Sono la sua vicina che la vien fuori d'ora a importunare
Luigi Illica e Giuseppe Giacosa
¶ 18 de Março de 2022
O gato
Um gato, em casa sozinho, sobe
à janela para que, da rua, o
vejam.
O sol bate nos vidros e
aquece o gato que, imóvel,
parece um objecto.
Fica assim para que o
invejem -- indiferente
mesmo que o chamem.
Por não sei que privilégio,
os gatos conhecem
a eternidade.
Nuno Júdice
¶ 17 de Março de 2022
Flores
Alguns homens nem nisso chegam a pensar.
Tu pensaste. E ao chegar
Disseste que me querias comprar flores
Mas não chegaste a comprar.
A florista estava fechada. Ou hesitaste -
Hesitações que estão sempre a povoar
Cabeças como as nossas. Pensaste
Que eu até poderia não gostar.
Fizeste-me sorrir. E abracei-te então.
Agora só posso sorrir.
Mas olha, as flores que quase me compraste
Continuam a florir.
Wendy Cope
¶ 16 de Março de 2022
The Road to Unfreedom
I think time is a really essential component of politics. But it has the feature, like many important ideas, that it seems self-evident or natural to the point of invisibility. So time is a kind of parameter for everything else. The way we think about time just becomes as natural as breathing. But actually the way we think about time is an idea.
¶ 15 de Março de 2022
Se guardo algum tesouro
Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar
Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto
António Ramos Rosa
¶ 14 de Março de 2022
A secreta abundância
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 14 de Março de 2022
Repenso o mundo
Repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente,
aos cães botas.
Eis um capítulo:
A Fala dos Bichos e das Plantas,
com um glossário próprio
para cada espécie.
Mesmo um simples bom-dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.
Essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
Essa épica das corujas!
Esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!
O tempo (capítulo dois)
tem direito de se meter
em tudo, coisa boa ou má.
Porém -- ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está
presente na órbita das estrelas,
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado.
A velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
Ah, então todos são jovens!
O sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
A morte
chega com o sono.
E vais sonhar
que nem é preciso respirar,
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.
Morrer, só assim. Dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão.
O mundo, só assim. Só assim
viver. E morrer só esse tanto.
E todo o resto -- é como Bach
tocado por um instante
num serrote.
Wislava Szymborska
¶ 13 de Março de 2022
Até ao Fim
Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.
Nuno Júdice
¶ 12 de Março de 2022
e uma vez acordou
foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos
estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição
os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida
e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração
Al Berto
¶ 11 de Março de 2022
Marriage
Marriage is not
a house or even a tent
it is before that, and colder:
the edge of the forest, the edge
of the desert
the unpainted stairs
at the back where we squat
outside, eating popcorn
the edge of the receding glacier
where painfully and with wonder
at having survived even
this far
we are learning to make fire
Margaret Atwood
¶ 11 de Março de 2022
A lucidez perigosa
Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.
Clarice Lispector
¶ 9 de Março de 2022
Do Desejo
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
Hilda Hilst
¶ 8 de Março de 2022
Comparar é colidir
Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.
Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.
As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real se esquiva a designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal.
Margarida Vale de Gato
¶ 7 de Março de 2022
Fumar Mata
Não sei falar. Nunca soube. Fico exausta quando
falo. Todos vocês devem ficar a saber disto.
Nunca chego a dizer exactamente aquilo que
pretendo - fica sempre do outro lado do vidro.
Daí a poluição que me envolve. Um pranto.
Derivo das várias posições no mundo. Da
ignorância, de todos os poemas que comi, de
todos os livros, todos os ídolos (geralmente
esquisitos), todos os palcos e cinemas, balcões,
da família, de todos os amigos. Raros no mundo.
Valiosíssimos. Eu sou eles todos e as viagens que
nunca fiz. Sou tudo isso. Não há mais ou menos
importância em nada, especificamente - tudo isto
é o meu sangue no papel.
Tenho várias salivas. Vários géneros. Acumulei
rostos e corpos. E o teu, o teu, o teu, o teu e
ainda o teu, continuam guardados, para sempre,
em todos os meus lugares. Eu sou tudo o que
vocês fizeram de mim. E tu, meu amor, tu dormes
ainda na minha cama. Planetas nos olhos.
Tecendo melodias. Trazendo gengibre na boca.
Para a minha boca. O teu tear.
Importante é dizer-vos que trago fruta para
todos. Flores. Paciência. Coração. Mesa. Uma
lareira. Delícias. Espaço. Muito espaço.
Jacarandás para ti, Mário! Jacarandás para
sempre. Também para ti, todo o Rossio em
Junho. Abraços com força e ombro. Manta.
A minha intenção é dar-vos uma coisa impossível
à partida. Uma invenção.
E estou longe. Estou muito longe para mim.
Passa por aqui, várias vezes por dia, um único
pardal. E nem ele, mais solitário que eu, me
cumprimenta.
Patrícia Baltazar
¶ 6 de Março de 2022
Anúncio de Antiquário
Aceito toda forma de dor
Guardo os cacos, os fracassos
Coleciono toda espécie de trapo
baús, lustres, quadros
bibelôs despedaçados
Até navios desaparecidos
guardo
Aceito cores de todos os retalhos
todas as roupas vividas
chapéus de gente antiga
relógios, violas, rádios
E os desejos perdidos
debaixo dos guarda-chuvas
risos que ficaram presos
dentro dos porta-retratos
Aceito o que foi pisado
mutilado, abandonado
Aceito, como um oceano,
toda forma de naufrágio
Iracema Macedo
¶ 6 de Março de 2022
estar só
Sem ti regressava, qual bêbedo,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
Estive milhares de vezes só
desde que estou vivo, e em milhares de noites iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os montes,
os campos, as nuvens.
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbedo,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.
Pier Paolo Pasolini
¶ 5 de Março de 2022
Poema encontrado no fundo do balde do lixo
Conheço todos os argumentos.
Conheço todos os contra-argumentos.
Conheço a futilidade da nossa vida.
Conheço a fome, a sede, a ânsia.
A alegria.
O amor? Também.
O desamor. A felicidade e a desgraça.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
No fim já não se sabe
se há pedra ou se tropeçamos
por hábito, por amor à arte,
porque não somos capazes de outra coisa.
Porque o homem é um animal que tropeça.
Porque não somos capazes de outra coisa.
Roger Wolfe
¶ 4 de Março de 2022
Relógio do Rosário
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,
que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.
Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?
O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 3 de Março de 2022
Água salobra
Falava-se da casa (a minha mãe
falava)
donde viéramos
porém pouco ficara do lugar colocado
à frente dos espelhos da infância
quando em penumbra a vida
se envolvia
Na casa nova a ria começava
logo depois do largo (a feira vinha
com a febre em outubro)
Havia no quintal um poço a corda ia
correndo na roldana e o balde
batia na água com um som vazio
era preciso
bater de novo até encher
subi-lo
com água que nem plantas poderiam
beber a ria vinha
até ali outrora
água salgada e doce misturara-se
ambígua no ar da casa sob os tectos
distantes
tal como a primavera
floria as malvas e aumentava os dias
e no inverno a noite começava
com a espera do meu pai que parecia
vir sempre tarde com
moedas novas reflectindo ainda
o dia findo
À mesa eu observava-lhe
a mão
a meu lado pousada e tacteava
na pele irregular as covas que no meio
os dedos estendendo-se formavam
No comprido canteiro do quintal
o pessegueiro dava flor mais tarde
que a branca amendoeira do quintal do lado
Durante o ano inteiro sobre o muro
os seus ramos tocavam-se
Gastão Cruz
¶ 2 de Março de 2022
Sou a respiração
Sou a respiração que segue os teus passos
no invisível passeio do amor. De um e outro lado
erguem-se canteiros de flores furtivas
como os teus olhos abertos na surpresa
de um instante. Então, acompanho
o movimento das tuas mãos no piano
do corpo, tocando a silenciosa música
que morre como a onda, e como a onda
renasce num gesto em que os cabelos
se soltam como ave inquieta.
Nuno Júdice
¶ 1 de Março de 2022
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Carlos Drummond de Andrade