Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de dezembro 2022


31 de Dezembro de 2022

Paul Klee



31 de Dezembro de 2022

Todo o esplendor termina

Todo o esplendor termina, as grandes vozes emudecem,
o verde-mar das pradarias seca,
mas aquilo que mais profundo e íntimo foi
perdurará na memória inapelável,
ali de onde o poema impreciso vigia
esperando que regressem os deuses do desterro.

Pois também a memória tem suas avenidas
de luzes silenciosas e esquinas recolhidas,
sua margem passando pelo fio do sonho.
O esquecimento cansa-se de chamar à sua porta.

O saguão é quem vela enquanto a casa dorme.
Houve um na infância, a recordação
colocou certa vez ali sua magnólia figo.
E na cancela eu desenhei uma tarde
o país da chuva e da distância.

Raúl González Tuñón


30 de Dezembro de 2022

Eu sei que tudo muda

Eu sei que tudo muda,
que nada permanece,
nem uma árvore permanece
e até a pedra é viajante.

A solidão não existe,
o mundo é companhia.
Nem a morte está só.

Tudo quanto é, é luta.
Sou imortal, pois passo.
Apenas a estátua fica.
E até ela se move.

Em vão vos empenhais
em deter a história.
Sei que chegará o dia.
Também o sol o sabe.

Raúl González Tuñón


29 de Dezembro de 2022

Espero-te

Espero-te nos vagares do tempo, indiferente às estações que recolhem desabrochando num sentido ignoto das coisas -, no balouçar trémulo das esfinges do espaço redimo consciências de outrora, ondulando ao sabor do vento o nu perdido das árvores. Avanço um pouco mais para me deter à tua espera e na distância contada sujeito-me ao brilho do teu olhar. Vejo-te caminhar abrindo à oferta dos Deuses a singular passagem do teu ser. Como vens radiante no córrego do nosso amor! - lançando teu próprio rastro para abrir novo sulco a meu lado (...).

Ruben A.


28 de Dezembro de 2022

Darren Thompson



28 de Dezembro de 2022

Paz

E por vezes lamento que quando a erva
Cresce sobre as pedras em vales tranquilos
E o panasco se inclina ao longo dos sulcos da carroça
Eu não seja a voz dos camaradas do campo
Que estão agora de pé nalgum promontório a falar
Sobre nabos e batatas ou milho novo
Ou rampas de relva debulhadas para a vitória.
Aqui a Paz ainda vende pelas ruas
Os seus pentes coloridos e cachecóis e contas de corno.

No alto de um promontório junto a uma sebe chorosa
Uma lebre senta-se a observar um regaço de folhas lavradas,
Há uma velha charrua num cume coberto de ervas daninhas
E alguém carrega aos ombros para casa a sela do arado.
Fora desta terra da infância quem são os loucos que sobem
Para lutar com os tiranos Amor e Vida e Tempo?


Patrick Kavanagh


27 de Dezembro de 2022

Em busca de um ideal

Novembro está a chegar e eu ainda espero por ti
Ó lesta ninfa que me escapaste quando
Te avistei entre alguns homens tolos
E com a força do meu desejo te ataquei.
Precipitadamente o fiz, gerei uma morte apaixonada,
Muito fácil, demasiado fácil, chorei então,
Não merecias uma gota pela minha caneta derramada.
Ó flor da luz comum, a emoção
Das coisas vulgares elevada à angélica condição
Saltou das tuas sedutoras pernas, segui-te
De Abril a Maio e de Junho até Setembro,
E tu mantiveste o comando até o alimento da paixão
Ficar bolorento dentro do meu alforge. Agora galanteio
As pegadas por ti deixadas através de Novembro.

Patrick Kavanagh


26 de Dezembro de 2022

José Pancetti



26 de Dezembro de 2022

o delírio do verbo

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros


25 de Dezembro de 2022

Seremos prudentes

Crescerão campainhas sob as grandes árvores
E tu e eu estaremos lá em Maio;
Por algum motivo ambos teremos de adiar
A noite em Dunshaughlin –para agradar
Uma qualquer imaginária relação,
E então ambos iremos caminhar naquela plantação.

Estaremos interessados na erva,
Num velho balde de nora, na hera que tece
Uma incongruente verdura entre folhas mortas,
Deixaremos em espanto as carroças que passarem –
Olhando por vezes de soslaio as campainhas na plantação
Evitando assustá-las com bravia exclamação.

Seremos prudentes, não deixaremos perceberem
Que estamos a observá-las ou farão uma pose
De mera fachada como rapazes
Apanhados na naturalidade da virtude.
Não vamos impor às campainhas na plantação
Muita da nossa desejosa adulação.

Teremos outros amores – ou isso irão pensar;
Os narcisos ou os fetos ou as sarças,
Ou mesmo os desmaiados arames enferrujados,
Ou as violetas no bronzeado talude de azedas-bravas.
Além de todos, só as campainhas na plantação
Terão significado para a nossa negra contemplação.

Aprenderemos o amor a pouco e pouco, olhar a olhar.
Ah, o barro debaixo destas raízes é tão castanho!
Roubaremos o Paraíso enquanto Deus estiver na cidade –
Apanhei um anjo a sorrir fortuitamente
À espreita através dos troncos das árvores na plantação
Enquanto tu e eu caminhávamos lentamente para a estação.

Patrick Kavanagh


24 de Dezembro de 2022

Joachim Patinir



22 de Dezembro de 2022

A cultura é sempre qualquer coisa que foi

Jamais será manhã, sempre noite,
Pôr-do-sol dourado, idade de ouro —
Quando Shakespeare, Marlowe e Jonson escreviam
O futuro da Inglaterra página a página
Uma vala de urtigas selvagens foi o palco da Irlanda.

Jamais será Primavera, sempre Outono
Após uma colheita sempre perdida,
Quando Drake conquistava mares para a Inglaterra
Nós navegávamos em charcos do passado
Perseguindo o fantasma do mastro de Brendan.

As sementes entre o pó foram menos que poeira,
Poeira procurámos, ruína,
O jovem rebento erguendo-se nela asfixiado,
Amaldiçoado por estar no caminho —
E o mesmo ainda hoje é verdade.

A cultura é sempre qualquer coisa que foi,
Qualquer coisa que os pedantes podem avaliar,
Caveira de vate, fémur de chefe,
Profundidade de um rio seco.
Teremos de ser assim para sempre?
Teremos de ser assim para sempre?

Patrick Kavanagh


21 de Dezembro de 2022

Solstício de inverno

Solstício de inverno é um fenómeno astronómico que acontece todos os anos no dia 21 ou 22 de dezembro. Este ano, ocorrerá no dia 21 de dezembro de 2022, às 21h48. Nesse momento, o inverno começa em Portugal e em todo o hemisfério norte, e o verão começa no hemisfério sul. É o dia mais curto do ano e, consequentemente, o que tem a noite mais longa. A partir desta data, a duração do dia começa a crescer. Na antiguidade, o solstício de inverno simbolizava a vitória da luz sobre a escuridão; a palavra solstício significa "sol parado", do latim solstitius, e é a junção de sol e sistere, que significa "ficar parado".
O solstício de inverno ocorre quando o Sol atinge a maior distância angular em relação ao plano que passa pela linha do Equador, ou seja, quando o Sol se encontra mais a sul. Assim, o hemisfério em que acontece o solstício de inverno recebe menor incidência de raios solares.


21 de Dezembro de 2022

Edward Hopper



20 de Dezembro de 2022

A realidade

A realidade, sim, a realidade,
esse relâmpago do invisível
que em nós revela a solidão de Deus.

É este céu que foge.
É este território adornado pelas borbulhas da morte.
É esta mesa larga à deriva
em que os comensais perduram ataviados pelo prestígio de não estar.
A cada qual seu copo
para medir o vinho que acaba onde começa a sede.
A cada qual seu prato
para acabar com a fome que se extingue sem que jamais seja saciada.
E a divisão do pão aos pares:
o milagre ao contrário, a comunhão somente no impossível.
E no meio do amor,
a queda entre um e outro corpo,
algo semelhante ao batimento sombrio de umas asas que voltam da eternidade,
ao pulso da despedida debaixo da terra.

A realidade, sim, a realidade:
anúncio de encerrado em todas as portas do desejo.

Olga Orozco


19 de Dezembro de 2022

O Mel, Canto IX

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.
Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.
Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

Tonino Guerra


19 de Dezembro de 2022

Um bom poema deve cheirar a chá

Tenho três poemas,
disse.
Pensar em contar poemas.
Emily lançou-os
numa caixa, não
consigo imaginá-la a contá-los,
apenas espalhou um pacote de chá
e escreveu um novo poema.
Parece-me correcto. Um bom poema
deve cheirar a chá.
Ou a terra crua e lenha acabada de rachar.
 
Olav H. Hauge


17 de Dezembro de 2022

Kandinsky



17 de Dezembro de 2022

Ansiedade

Os
últimos passos do dia pela casa
são os meus. Encerro a porta de entrada
na última ronda pela sala
deixo o
ruído da noite tomar a ruína
da alma. A manhã
que vai trazer? Será dia de perder?
Na arte da
grande roleta: o que irá tocar aos meus?
A trégua que agora me toma parece
querer demorar
mãe e filha já dormem dentro deste território
onde devo parecer norte
onde me
toca ser homem.

João Luís Barreto Guimarães



16 de Dezembro de 2022

Do cinzento

Num país a preto e branco
recomendaram-me o cinzento. Um recurso
extraordinário. Com a hipótese do cinzento poderia
ensaiar
soluções inusitadas
experimentar o morno (que não é frio nem
quente)
explorar o lusco-fusco (que
não é noite nem dia) praticar a omissão
(que não é mentira
nem verdade). Preto e branco misturados permitiam
finalmente
viver em conformidade
desocupar os extremos (tão alheios à virtude)
liquefazer-me na turba
no centro na
média
dourada. Com a paleta dos cinzentos poderia
aprimorar a arte da sobrevivência que
(como os mansos bem sabem) é
não estar vivo
nem morto.

João Luís Barreto Guimarães


16 de Dezembro de 2022

James Avati



15 de Dezembro de 2022

Aberto Todos os Dias

Alguém tem de amar
o banal. Alguém tem de tratar disso. Os
rostos que passam idênticos
como os pombos
de uma praça. A mala
que apenas fecha se alguém
se senta em cima. Insectos suicidando-se
contra o brilho dos faróis. O apetite
da ferrugem
nos portões da avenida. Alguém
tem de amar o vulgar (falar
do que é
ordinário). O cheiro a peixe frito que
sobe desde a cozinha. As luas que nascem dos
dedos quando
se roem as unhas. Alguém tem de amar
o que é feio
(trazê-lo para o poema). Só assim
por entre o impuro pode o
incêndio acontecer.

João Luís Barreto Guimarães


14 de Dezembro de 2022

the stories that shape our lives

Few things limit us more profoundly than our own beliefs about what we deserve, and few things liberate us more powerfully than daring to broaden our locus of possibility and self-permission for happiness. The stories we tell ourselves about what we are worthy or unworthy of — from the small luxuries of naps and watermelon to the grandest luxury of a passionate creative calling or a large and possible love — are the stories that shape our lives.

Maria Popova


13 de Dezembro de 2022

As raízes do voo

São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento – as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração
Apaixonar-me e outra vez,
e agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo – e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?
E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
– aprender a voar –
pelo desassossego de um dedo
preso à terra
Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,
de qualquer coisa
Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
– ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes –

Ana Luísa Amaral


13 de Dezembro de 2022

John Duncan Fergusson



13 de Dezembro de 2022

Chegar à janela

Chegar à janela e olhar o céu. Ver só o que cabe no rectângulo dela, limitado e instantâneo. E ficar perturbado por essa rápida aparição da beleza que se não sabe dizer. Há um azul intenso e profundo e a um dos lados o amontoado de uma nuvem branca, iluminada de sol. Como transmitir esta revelação? Quantas formas de a dizer e todas serem uma ficção do que lá está. Há uma outra coisa dessa coisa e tudo são formas fictícias de a dizer. É um céu azul e uma nuvem branca a um canto da janela. Mas o que isso foi no seu aparecer, para sempre se perdeu.

Vergílio Ferreira


11 de Dezembro de 2022

Clamor

tudo vem ao chamamento
noite após noite o que dissemos e
o que nunca diremos — a viagem
com uma giesta de algodão presa nos cabelos e
a sensação fresca de um sulco de aves na pele
tudo vem ao chamamento — os lobos
os anões as fadas as putas as bichas e
a redenção dos maus momentos — enquanto te barbeias
vês no espelho o homem
cuja solidão atravessou quase cinco décadas e
está agora ali a olhar-te — queixando-se da tosse
da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez
num deslize perto da asa do nariz
não sei quem é — sei porém que vai afogar-se
naquela superfície clara quando dela se afastar e
abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo
vem ao chamamento
por dentro do clamor da noite

Al Berto


11 de Dezembro de 2022

Leonard Cohen



11 de Dezembro de 2022

Estas rigorosas estrelas azuis

O que me terá levado a sair debaixo
deste carregado céu da manhã?
Estas rigorosas estrelas azuis,
que pretenderão elas?

As colinas nada prometem – apenas
dão forma, deixando que o fiorde encha
e os rios se atropelem. As colinas
nada sentem debaixo da neve.

Mas as encostas arvoradas prostram-se,
mostrando a sua carência sob as estrelas.
É a minha própria dor, a minha ferida
ali estendida, preta como ferro e sangrando
e prometendo voltar a ser verde e cantar.
 
Olav H. Hauge


10 de Dezembro de 2022

Kiyoshi Saito



10 de Dezembro de 2022

Despertar

Despertar, e sentir
o teu coração afundar-se
pesado e escuro
e endurecido…

Lentamente o mar ergue as vagas,
devagar a floresta cora no desfiladeiro,
devagar as chamas consomem no inferno,
lentamente a verdade amanhece.

Olav H. Hauge


8 de Dezembro de 2022

o homem mais feliz do mundo

Eu sou o homem mais feliz do mundo
mentiria se dissesse que minto
quando declaro ser
o desgraçado mais feliz do mundo
nada tenho contra a parentela
nada tenho contra os meus inimigos
nada tenho contra os meus irmãos
resolvi os meus problemas pessoais
salvei-me por um triz mas salvei-me
repito-o para que não reste sombra de dúvida:
eu sou o homem mais feliz do mundo
dá-me vontade de soltar um uivo
e saltar de um sétimo andar
claro: sentir-me-ia mais feliz
se não fosse tão extraordinariamente feliz
se não fosse tão insolentemente feliz
se não fosse tão escandalosamente feliz

há que ter estômago de avestruz
para digerir tanta porcaria.

Nicanor Parra


7 de Dezembro de 2022

Stevan Dohanos



7 de Dezembro de 2022

Manual

Em todas as tarefas, examina-lhes os antecedentes e as consequências e, só então, avança. Caso contrário, à partida estarás cheio de ardor por não teres previsto nenhuma das consequências, e, mais tarde, quando determinadas dificuldades se revelarem, vergonhosamente desistirás.

Epicteto


6 de Dezembro de 2022

Olha-me de novo

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst


5 de Dezembro de 2022

Stevan Dohanos



5 de Dezembro de 2022

Sete trabalhos voluntários e um acto sedicioso

1
o poeta atira pedras à lagoa
círculos concêntricos propagam-se
2
o poeta senta-se numa cadeira
dando corda a um relógio de bolso
3
o poeta lírico ajoelha-se
diante de uma cerejeira em flor
e começa a rezar um pai-nosso
4
o poeta disfarça-se de homem rã
e esconde-se no lago do parque
5
o poeta lança-se no vazio
pendurado num guarda-chuva
desde o último andar da Torre Diego Portales
6
o poeta resguarda-se no Túmulo do Soldado Desconhecido
e daí dispara flechas envenenadas contra os transeuntes
7
o poeta maldito
entretém-se atirando pássaros às pedras

ACTO SEDICIOSO
o poeta corta as veias
em homenagem ao seu país natal

Nicanor Parra


4 de Dezembro de 2022

Porque tudo se escreve com a tua letra

Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não para.
Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco


3 de Dezembro de 2022

André Fougeron



3 de Dezembro de 2022

Canção

Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...

Cecília Meireles


3 de Dezembro de 2022

o fim de tudo

Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
Trazia no princípio o fim de tudo 

Ruy Belo


2 de Dezembro de 2022

José Pancetti



2 de Dezembro de 2022

O homem imaginário

O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
à beira de um rio imaginário

Das paredes que são imaginárias
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis fendas imaginárias
que representam feitos imaginários
ocorridos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários

Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e aparece na varanda imaginária
a olhar a paisagem imaginária
que consiste num vale imaginário
rodeado de colinas imaginárias

Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário

E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que lhe ofereceu seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário

Nicanor Parra


1 de Dezembro de 2022

Fui o que fui

Filho mais velho de um professor primário
E de uma costureira humilde;
Fraco de nascimento
Ainda que devoto da boa mesa;
De maçãs macilentas
E de mais abundantes orelhas;
Com um rosto quadrado
No qual apenas os olhos se abrem
E um nariz de pugilista mulato
Por cima da boca de ídolo asteca
− Isto tudo banhado
Por uma luz entre irónica e pérfida −,
Nem muito lesto nem tonto no remate
Fui o que fui: uma mescla
De vinagre e de azeite virgem
Um enchido de anjo e besta!

Nicanor Parra