Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de dezembro 2023


31 de Dezembro de 2023

sub rosa

Não somos os últimos, pois se
há coisa que o mundo sempre fez bem
foi acabar. De novo e sempre: acabar.
 
Mas já não trabalhamos com o ouro
e temos um certo pudor tardio
em falar de deus, do amor ou até do corpo.
 
As metáforas arrefecem, talvez contrariadas.
São casas devolutas, mães risonhas
ou sombrias cujo grito deixámos de escutar.
 
Do lixo, porém, temos um vasto
e inútil conhecimento. Possa
ele servir de rosa triste aos
que não cantam sequer, por delicadeza.

Manuel de Freitas


31 de Dezembro de 2023

John Singer Sargent



31 de Dezembro de 2023

Plano de evasão

Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite –

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.

Rui Pires Cabral


30 de Dezembro de 2023

Juan Gris



30 de Dezembro de 2023

Nesta vida

Nesta vida — é um facto — estamos sempre
a desaprender coisas novas. O mundo
vai guardando a luz nas suas bainhas negras
e temos a melindrosa companhia dos fantasmas
que nos procuraram: eles governam rudemente
os nossos pequenos reinos e há um ceptro novo

para cada coroação. De repente, com a volta
das estações, damos por nós muito mais velhos
nas fotografias. As razões que nos assistiam
empalidecem em paisagens cruelmente coagidas
pela luz. Fomos expulsos dos grandes palácios

da alegria? Onde estão os mapas que nos guiavam
lá dentro, exactos como o instinto? Não sabemos
responder: o caminho turva-se: são as incertezas
da maturidade. As palavras não nos iluminam
e o amor está condenado aos defeitos naturais
do coração, que ainda assim há-de voltar a arder

sem defesa nem socorro uma vez mais.

Rui Pires Cabral


29 de Dezembro de 2023

Jacopo Pontormo



29 de Dezembro de 2023

Nave de Alcobaça

Vazia, vertical, de pedra branca e fria,
longa de luz e linhas, do silêncio
a arcada sucessiva, madrugada
mortal da eternidade, vácuo puro
do espaço preenchido, pontiaguda
como se transparência cristalina
dos céus harmónicos, espessa, côncava
de rectas concreção, ar retirado
ao tremor último da carne viva,
pedra não-pedra que em pilar's se amarra
em feixes de brancura, geometria
do espírito provável, proporção
da essência tripartida, ideograma
da muda imensidão que se contrai
na perspectiva humana. Ambulatório
da expectação tranquila.
Nave e cetro,
e sepulcral resíduo, tempestade
suspensa e transferida. Rosa e tempo.
Escada horizontal. Cilindro curvo.
Exemplo e manifesto. Paz e forma
do abstracto e do concreto.
Hierarquia
de uma outra vida sobre a terra. Gesto
de pedra branca e fria, sem limites
por dentro dos limites. Esperança
vazia e vertical. Humanidade

Jorge de Sena


27 de Dezembro de 2023

Alegria demorada

Este poema tem um dia adormecido entre os braços.
Este dia torna-se poente a oeste do peito.
Este poente sente uma rua passar por suas veias.
Esta rua sobe ao céu em frente de uma casa.
Esta casa abre as asas quando chamo.
Estas asas amparam o sono de amêndoa de Jacqueline.
Jacqueline é o retrato de uma menina de onze anos.
Esta menina aproxima-me dez horizontes com os dedos.
Estes horizontes têm uma lua sentada nos joelhos.
Esta lua nasceu numa janela minha, que já não canta.
Esta janela recupera seu céu e eu regresso pelos olhos.
Estes olhos viram uma rapariga que sorri.
Esta rapariga reclina a voz num pássaro que passa.
Esta voz é o eco dos passos do entardecer.
Este eco descansa meus caminhos e enxuga minhas estrelas.
Estas estrelas, que são filhas de tua noite e minha fronte.
Esta fronte, onde um rei de fogo governa um país de neve.

Francisco Luis Bernárdez


25 de Dezembro de 2023

Giotto



25 de Dezembro de 2023

(Fecho as cortinas, e espero)

os dias vão indo
caídos no papel,
e rasgá-los não os lava
da hora que vem depois.
—————-
é tudo uma questão de senha.
a gente diz borboleta,
e o inimigo crucifica-a
nas paredes de cada manhã.
—————-
é tudo tão previsível.
e não há quem saia ileso
de um golpe de Lua cheia.
—————-
Emanuel Jorge Botelho


24 de Dezembro de 2023

Petrus Christus



24 de Dezembro de 2023

As palavras pesam

As palavras pesam.
Um texto nunca diz a dor das pequenas coisas,
Do quotidiano entrincheirado entre compromissos,
Das tramas afectivas, do exílio anunciado
No andar inquieto das mulheres.

De rosto em rosto, a caligrafia do amor
implorou a memória das palavras encantadas
e, como se houvesse uma linguagem
de atravessar o tempo, acenderam,
sobre os dias, constelações sonoras.
Mas eu, que não adiro aos calendários
nem acredito em vogais prometidas,
eu parti, de punhos febris,
enlaçando nos braços
um futuro marginal, a qualquer lógica.
A posse da noite, onde me quero lua em todas as fases,
leva-me a glosar os medos num novelo de rimas imperfeitas.
A cidade tem pombas que me perseguem sem eu dar por isso.
Tenho um aqueduto modelado nos olhos
e um dilúvio vermelho no desenho do peito.

Graça Pires


23 de Dezembro de 2023

Ferdinand Hodler



23 de Dezembro de 2023

A incidência da luz

Seguro um marcador lilás para desenhar um barco
que agarre a alvorada em seu instante breve.
Como ajustar aos dedos o rumo da proa
quando as mãos precárias
se entregam ao fascínio das vagas?
Há muito que partiram os caminhantes
em busca de  locais desconhecidos
deixando para trás a memória da cal sobre as casas.
Há muito que regressaram os barcos incertos
e os homens: aqueles que abrigavam no olhar
o lugar onde nasceram.
Agora todas as noites podemos ouvir
a respiração dos navios
que costeiam as casas recém-pintadas
como se um regozijo lhes roçasse os mastros.

Graça Pires


21 de Dezembro de 2023

Mário Pires



21 de Dezembro de 2023

Solstício de inverno

Solstício de inverno é um fenómeno astronómico que acontece todos os anos no dia 21 ou 22 de dezembro. Este ano, ocorrerá no dia 22 de dezembro de 2023, às 03h27. Nessa data, o inverno começa em Portugal e em todo o hemisfério norte, e o verão começa no hemisfério sul. É o dia mais curto do ano e, consequentemente, que tem a noite mais longa.
A partir desta data, a duração do dia começa a crescer. Por isso, na antiguidade, o solstício de inverno simbolizava a vitória da luz sobre a escuridão. O solstício de inverno ocorre quando o Sol atinge a maior distância angular em relação ao plano que passa pela linha do Equador, ou seja, quando o Sol se encontra mais a sul. Por isso, o hemisfério em que acontece o solstício de inverno recebe menor incidência de raios solares. A palavra solstício significa "sol parado", do latim solstitius, e é a junção de sol e sistere, que significa "ficar parado".


21 de Dezembro de 2023

Visão Perpétua

É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.
É tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço
e a ouvir música. Desfeito de cansaço
incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de
cansaço. Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano
de César Franck, e depois os 'Wesendonck Lieder')
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isolda
no que não aceitarei nunca,
'l amor che muove il sole e l'altre stelle'.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa, e de cuja
dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.
Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
'Qu'ai-je à faire de l'éternel? I live here.
Non abbiamo confusion'. E aqui é que
morrerei danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.

Jorge de Sena


20 de Dezembro de 2023

John Williams Waterhouse



19 de Dezembro de 2023

O que nos torna humanos

Atravessamos uma época de profunda amnésia. À semelhança da mítica merleta, em eterno voo sem ter onde pousar, movemo-nos hoje com tamanha pressa que a História não nos toca. E, contudo, que sucede a uma geração incapaz de vislumbrar o longo arco das epifanias e dos fracassos humanos? Nietzsche disse: “Removei os Gregos, juntamente com a filosofia e a arte, e que escadote vos resta pelo qual ascender à cultura?” Pois o que é a cultura senão um grande fio iluminador que liga os vivos ao laboratório antigo da experiência humana? Como havemos de suportar o vazio se apagarmos da memória colectiva a nossa herança moral, esse sonho ateniense de virtude e igualdade cívica, de par com os valores do Iluminismo que forjaram as democracias liberais que costumávamos acarinhar e defender? Uma vez eviscerada, a cultura corre o risco de redundar em pouco mais do que uma aglomeração artilhada de tropos e memes que unem uma tribo tão-só para excluir outras.

Jonathan Simons


18 de Dezembro de 2023

Jacopo Pontormo



18 de Dezembro de 2023

Três poemas

Vazio como o céu
o meu coração
é névoa primaveril dissipando-se
desejoso
por deixar este mundo para trás
*
Efémeros
aqueles anos em que eu
pensava que viveria sempre
anos perdidos
num sonho passageiro
*
Como poderia eu atravessar a vida
sem saber aquilo que ela é -
um caminho
que inesperadamente leva
à morte?

Saigyō


17 de Dezembro de 2023

Este é o último livro

Este é o último livro, prometia
como alguém que tivesse esquecido
que assim sempre tinha sido — aquele
era o último e depois que alguém viesse
fechar a porta contra o som do mar.
— Pagava por jogar no escuro
e por aqueles ardis já gastos
com que pensava e não pensava
enganar a morte branca e vermelha.
— Ah e não esqueças: - deitar fora a chave
Canção como não morres
se é a morte que em ti sobe até à fonte
do sangue, até à flor do sal queimando
os dedos; até à boca que por te cantar
se acende negra; até à copa
das árvores que distribuem o sol
sobre o corpo morto do amor
amante e desamado?
Ou antes: de que morres, por que morres
tu, canção já sem voz, já
sem o canto,
— já sem outro assunto
de momento, me despeço de todos vós —
quem falou agora? - Que importa quem falou?
- Que importa? Nada e 'nonada'. E, sim, tudo
é tudo o que importa, para quem veio
mandado a que chamasse quem
tivesse chamado.
Canção, o teu sopro é quente
e têm sede os teus ventos, esses animais
do ar que por mil tubos sopram no corpo-músico
a verdade que calcinou os amantes que já o veneno
beijara até à flor do sangue.
depois, as palavras em que te perderas serão
cinzas sobre o mar e espuma suja
entre as rochas. Que atraso ou afecto
te prende ainda a esta margem
Por quem esperas tu
canção ainda
agora
que já por todo o céu
a terra nos esqueceu
Morresses, agora, canção
enquanto corres ainda pelo sangue
de quem escuta — e
morrerias no fulgor último
que ao fundo, no horizonte
da linguagem,
da própria linguagem
se afasta já, e abandonando vai
os seus bairros periféricos, despedindo-se
da tristeza dos migrantes derradeiros;
queimando página a
página
os últimos barcos.

Manuel Gusmão


17 de Dezembro de 2023

Jacopo Pontormo



16 de Dezembro de 2023

Com um só fósforo ilumino o infinito

Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.


15 de Dezembro de 2023

Uma claridade que cega

Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente me consinto
a áspera caligrafia do silêncio.

Graça Pires


15 de Dezembro de 2023

Richard Diebenkorn



12 de Dezembro de 2023

Casal

A noite chega
e depois da noite, escuridão
depois da escuridão
olhos
mãos
e respiração, respiração, respiração
e o som da água
que cai ping ping ping da torneira
depois dois
pontos vermelhos
de dois cigarros acesos
o bater do relógio
e dois corações
e duas solidões

Forugh Farrokhzad


12 de Dezembro de 2023

Quem muito viu

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena


11 de Dezembro de 2023

Mário Pires



11 de Dezembro de 2023

Melancolia de Jasão de Cleandro

O envelhecimento do meu corpo e do meu rosto
é ferida de faca horrível.
De nenhum modo consigo ser imperturbável.
A ti acudo, Arte da Poesia,
que sabes alguma coisa de remédios;
tentativas de entorpecer o padecimento, em Imaginação e em Verbo
É ferida de faca horrível. -
Os teus remédios traz, Arte da Poesia,
que fazem - por um pouco - que não se sinta a ferida.

Konstandinos Kavafis, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis


10 de Dezembro de 2023

Aquilo que amamos, devemo-lo saber de cor

Ninguém nos pode tirar nunca o que sabemos de cor.

George Steiner


9 de Dezembro de 2023

O Homem é fenómeno magistral

O Homem é fenómeno magistral

Dado num planeta.

Não se sabe porquê.

Possuído de instintos compulsivos

Como outros animais,

Acertou um desenvolvimento cerebral

Que lhe deu capacidade técnica.

O saber na ciência e na matemática,

O entendimento na arte,

A acuidade filosófica,

Fizeram o homem uma aventura.


Fernando Lanhas



9 de Dezembro de 2023

Zachary Johnson



8 de Dezembro de 2023

Caminhos

Caminhos uma vez mais escrevo sobre caminhos
A melhor forma de fazer amor
E o gato vermelho no telhado

Bombas de gasolina pequenos pinhais
No único parque de campismo de Évora
A maravilha dentro da tua boca
 
O diabo e o sol a sombra
Da nossa solidão nas estradas
E o gato vermelho no telhado

Roberto Bolaño


8 de Dezembro de 2023

Quanta incerta esperança, quanto engano!

Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
no mesmo em que está seu próprio dano!
Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.
Não haja em aparências confianças;
entendei que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram para sempre com o amado.

Luís Vaz de Camões


8 de Dezembro de 2023

Mudança

O Inverno não dura sempre
Névoa da nossa desilusão
Desce à terra nuvem que vogas
Sobre a aridez da mentira
Mil metros acima do chão
Abre-te ao nosso desejo
Deixa florir tua água de mudança
Nesta cidade em que tudo está à venda
E se pisam os dedos do mais fraco
E a sua dor
Trago na ponta da língua a indignação
E na mala a tiracolo uma carta
Sem verdades seguras mas com esperança
Num outro Abril
Com plantas de luz
Para ficarem.

Urbano Tavares Rodrigues


7 de Dezembro de 2023

Mário Pires



6 de Dezembro de 2023

De encontro ao meu coração

De encontro ao meu coração um ar que mata
E que sopra dos velhos lugares:
Que colinas azuis são aquelas que recordo,
Que espirais, que quintas são aquelas além?
É a terra da felicidade perdida,
Vejo-a, pura, cintilar,
Aqueles felizes caminhos que outrora atravessei
E aonde não mais posso regressar.

A. E. Housman, trad. Bruno M. Silva


5 de Dezembro de 2023

Cornualha

Palavra /névoa, palavra /névoa: era assim comigo.
E, todavia, o meu silêncio nunca foi completo —
Como uma cortina a levantar-se sobre uma paisagem,
às vezes a névoa dissipava-se: hélas, o jogo acabava.
O jogo acabava e a palavra ficara
um pouco achatada pelos elementos,
achando-se agora a um tempo recuperada e inútil.
Eu alugava, na altura, uma casa de campo.
Os campos e as montanhas tinham ocupado o lugar dos prédios.
Os campos, as vacas, os ocasos sobre o prado húmido.
A noite e o dia diferenciados por chamamentos de aves em rotação,
os afadigados murmúrios e restolhos fundindo-se em
certa coisa parecida com o silêncio.
Sentava-me, passeava. Quando vinha a noite,
ia para dentro. Cozinhava para mim jantares singelos
à luz das velas.
Ao fim da tarde, quando podia escrevia no meu diário.
Lá muito ao longe ouvia badalos de vacas
cruzando o prado.
A noite calava-se a seu modo.
Pressentia as palavras desaparecidas
dormindo acompanhadas,
como fragmentos de uma biografia não assumida
[…]
Louise Glück, trad. Margarida Vale de Gato


5 de Dezembro de 2023

Felix Vallotton



3 de Dezembro de 2023

Eu chegava primeiro

Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?

Ruy Belo


3 de Dezembro de 2023

Da paz

Senhor dos Infernos, dos céus, de parte nenhuma,
não precisais de saber dos que precisam,
saber mais do que sabiam nossos pais.
Moisés tinha os dois, Moisés tinha os dois.
Sabeis muito bem o que houve depois.

Jorge de Sena.


2 de Dezembro de 2023

Egon Schiele



2 de Dezembro de 2023

O espectáculo do mundo

A noite vai alta e escura. A terra por debaixo da cidade emana um hausto fresco, os parques e os jardins abertos ao ar, húmidos como as narinas de um gato. Tudo está quieto, espesso sob a pelagem da noite sem estrelas, mas tão pouco velada. Ou velada lá tão alto que o que resulta é esta quietação da cidade numa treva, um escrínio. Não está frio. Pelas quatro da manhã fez um jorro de vento, um único. Uma pancada de ar marítimo que avançou sobre as ruas baixas e os espaços abertos, cidade acima. A roupa meio seca estalou nas cordas, enfunando corpos, as copas das árvores moveram-se. A maré ia vaza.

Maria Velho da Costa


1 de Dezembro de 2023

Lembro-me agora

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
foram pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice