¶ 30 de Novembro de 2020
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de novembro 2020
¶ 30 de Novembro de 2020
Da memória
A mesma pessoa e o mesmo acontecimento são lembrados de maneiras diferentes por pessoas diferentes. E mesmo a nossa memória evolui com o tempo, estamos sempre a remontar as nossas memórias.
¶ 30 de Novembro de 2020
Da confusão
O enorme edifício intelectual está ligado ao edifício afectivo antigo, que continua a dar-nos apontadores. Às vezes, está errado: o afecto pode confundir-nos.
¶ 30 de Novembro de 2020
As pessoas cansam-me
Prefiro olhar para a lua
do que para as pessoas.
As pessoas
cansam-me de sobremaneira.
As súplicas, os rogos,
os risos, os desejos,
a ignorância,
a curiosidade em saber,
dizendo: 'amo-te',
ou pensando-o,
caminhando calçadas
ou de pés nus e calejados,
correndo de um lado para o outro,
as pessoas vestidas de jóias e de música.
Prefiro olhar para a lua
que é sempre a mesma:
indiferente,
fiel.
A lua não necessita de palavras
para dizer:
aqui estou
e amanhã também estarei.
Talvez uma nuvem a encubra,
talvez não me vejas por estares dentro de casa,
por estares a ouvir as tuas canções patetas
ou por teres os olhos nublados de lágrimas,
lágrimas motivadas por pensares que estás só,
mas não estás só,
porque eu estou aqui
e ontem também estive,
e amanhã também estarei.
Tjiske Jansen, trad. Maria Leonor Raven-Gomes
¶ 29 de Novembro de 2020
Adventus
O Advento (do latim Adventus: "chegada", do verbo Advenire: "chegar a")[é o primeiro tempo do Ano litúrgico, o qual antecede o Natal. Para os cristãos, é um tempo de preparação e alegria, de expectativa, onde os fiéis, esperando o Nascimento de Jesus Cristo , vivem o arrependimento e promovem a fraternidade e a Paz. No calendário religioso este tempo corresponde às quatro semanas que antecedem o Natal.
¶ 29 de Novembro de 2020
Para os anos dele
Sei qual é cor em que prefere calçar-se.
Sei qual é a cor em que prefere vestir-se.
Porém, caminhar não é o mesmo que dormir
e usar não é o mesmo que acordar.
Portanto perguntei-lhe: qual é a tua cor preferida para dormir,
qual é a tua cor preferida para acordar?
A cor dos teus olhos, respondeu-me. A cor da tua pele.
Não fui à procura. Não necessito de andar à procura para saber que
não existe nenhuma loja que venda edredões nessas cores.
Não há outra solução a não ser dormir
com ele para sempre.
Tjiske Jansen, trad. Maria Leonor Raven-Gomes
¶ 28 de Novembro de 2020
Da incompreensão
Quando Angélica se suicidou, fê-lo sozinha, e a única responsável pela sua morte foi ela própria. Apraz-me pensar que, no fundo, foi um acto de coragem da sua parte, porque havia algo demasiado sombrio a operar no fundo desta coisa pulsante, assaz criminosa, a que chamamos vida. a vida mata a todas as horas, a todos os minutos. Sem explicação, leva uns e outros, deixando no seu lastro um longo trilho de incompreensão e de noites mal dormidas.
João Tordo, in Felicidade
¶ 28 de Novembro de 2020
Da impossibilidade
Nunca se pode saber a verdade, e a imaginação tende a substituir esta espécie de tirania.
João Tordo, in Felicidade
¶ 27 de Novembro de 2020
Anos e anos
Anos e anos cresceram as casas
à roda dos homens que foram nascendo
e depois morrendo na cidade
Nas casas os homens procriaram reinaram
Todos os dias se abriam uma a uma as janelas
de todas as casas que há na cidade
janelas fechadas todas elas à noite
As casas caíam mas logo as erguiam
A chuva descia sobre a cidade
e os homens pintavam as casas
Tanta gente de pé na cidade
tão sólidos tácteis tantos pés sobre a terra
pés tão mal acabados como os dos animais
(os olhos dos homens é que não se parecem
com todos os olhos dos demais animais
tenho passado a vida a olhá-los
e é realmente outra coisa)
À volta de toda a cidade há o cerco da terra
A terra invade as ruas as casas recebe
como tributo
tão belos monumentos de carne
Em todas as casas tem havido mortos
Os mortos estendem os pés e dão
uma nova dimensão à família
Os mortos partem com intervalos regulares:
assim ao menos terão todos lugar
na capa das principais revistas
Que bom! Sábado à tarde não morre
ninguém na cidade:
a agência funerária faz semana inglesa
Anda comigo meu irmão
podemos passear tranquilamente
Que suave desliza toda esta gente
Ruy Belo
¶ 27 de Novembro de 2020
E Eu, Saudosa, Saudosa
As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?
Este cheiro de além-vida
e de indizível tristeza,
do tempo morto, esquecido...
Tão desbotada e puída
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.
Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega à cama onde me estendo
num perfume de violeta.
Vejo as tuas jóias falsas
que usavas todos os dias,
do princípio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mãe, e as melodias
que cantavas ao piano.
Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.
Quantas voltas deu na vida
este álbum de retratos,
de veludo cor de tília?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Serão todos da família?
Ai, vou fechar na gaveta
a lembrança dolorosa
dos teus laços de cetim,
dos teus ramos de violeta,
do leque de seda rosa
com varetas de marfim.
As coisas falam comigo
numa linguagem secreta,
que é minha, de mais ninguém.
Quero esquecer, não consigo.
Vou guardar na mala preta
esta dor que me faz bem.
Fernanda de Castro
¶ 26 de Novembro de 2020
Gostos
Gosto de Ícaro que sabia que a cera se iria derreter e no entanto voou em direcção ao sol.
Gosto daquela rapariga que reparou como era azul a barba do Barba Azul - era exactamente esse o motivo. Gosto da Bela Adormecida que afinal fazia de conta que dormia.
Gosto da Branca de Neve que achava os anões um bando de neuróticos.
'Quem é que se sentou na minha cadeira? Quem é que comeu do meu prato?'
E do anão, que não simpatizava lá muito com a Branca de Neve:
'Quando ela não morava aqui, éramos só sete. E agora? É ver-nos.'
Do gigante que estava arreliado porque toda a gente chamava botas aos seus sapatos.
Não gosto de quem se acomoda no conto. Mas sobretudo
gosto de Ícaro que sabia que a cera se iria derreter e no entanto voou em direcção ao sol.
Tjiske Jansen, trad. Maria Leonor Raven-Gomes
¶ 25 de Novembro de 2020
Círculo
Habito o abismo no primeiro círculo
: concêntrico hábito onde me repito
na constante libertação da alma
receio a espiral inconstante
na segurança inibidora dos sentidos
em concêntricos hábitos de repulsa.
Rasgo a máscara e me exponho
no centro do reflexo: revejo o tempo
estático na concentração de estrelas
consumidoras em círculos
no abismo tenho o eco da voz
pertinente em que me projeto.
Pedro Du Bois
¶ 24 de Novembro de 2020
Do erro
(...) os erros de cada homem são os erros da Humanidade. Regresso à antiguidade para me explicar melhor. A etimologia de «erro» leva-nos a oris, latim para boca - o lugar de onde oramos, a fonte de onde surgem as palavras que conduzem ao engano, porque as palavras são o princípio de todas as decepções.
João Tordo, in Felicidade
¶ 24 de Novembro de 2020
Com o motor desligado
Ao atravessar a fronteira
entre
beleza e banalidade
sobressai um homem
cansado de inventar poemas.
Não tem nada a declarar
com a excepção de alguma
trivialidade inútil.
Daniel Hevier
¶ 23 de Novembro de 2020
Oxalá
Estamos a transformar as nossas sociedades em lugares doentios, contraditórios e sem horizonte. A imaginação política não parece ir além do seleccionar de forma instrumental o passado. Quanto ao presente e futuro, parecem ter sido apropriados pelo neoliberalismo, que promete maravilhas, a maior parte artificiais, desde que exista capital para as adquirir, claro está. Para uma outra perspectiva, seria preciso que, em vez de sonhar revoluções que nunca acontecerão, nos fôssemos religando com o mundo e as muitas possibilidades que nele existem. Oxalá.
¶ 23 de Novembro de 2020
Do auto-engano
Antes de fazer o que fiz - porque não aguentava mais; porque, se não fizesse alguma coisa, jamais deixaria de pensar naquilo -, lembrei-me inúmeras vezes de Creso, o último rei da Lídia, cuja história eu lera n' O Grande Livro dos Mitos Gregos, que o meu pai me oferecera. Perante a ameaça dos Persas, Creso consultou o Oráculo de Delfos, que lhe respondeu que, se decidisse atacar, um grande império seria destruído. Confiante no oráculo, o rei ordenou o ataque, destruindo o seu próprio império. Era o exemplo do auto-engano; Creso iludira-se acreditando que avançava contra um inimigo exterior, quando, na verdade, avançava contra si próprio.
João Tordo, in Felicidade
¶ 23 de Novembro de 2020
Como toda a gente sabe
Mas não é isso estar vivo?, perguntou ela, bebendo um gole de vinho, aquela sensação estranha de que tudo muda e nada muda? Sim, és capaz de ter razão, respondi.
***
E, como toda a gente sabe, pensar é duvidar, e duvidar é corroer a realidade, morder-lhe os contornos, dar-lhe arestas pontiagudas.
João Tordo, in Felicidade
¶ 21 de Novembro de 2020
Legado
Eu lego aos meus amigos:
Um azul cerúleo para voar alto.
Um azul cobalto para a felicidade.
Um azul ultramarino para estimular o espírito.
Um vermelhão para o sangue circular alegremente.
Um verde musgo para apaziguar os nervos.
Um amarelo ouro: riqueza.
Um violeta cobalto para o sonho.
Um garança para deixar ouvir o violoncelo.
Um amarelo barife: ficção científica e brilho; resplendor.
Um ocre amarelo para aceitar a terra.
Um verde veronese para a memória da primavera.
Um anil para poder afinar o espírito com a tempestade.
Um laranja para exercitar a visão de um limoeiro ao longe.
Um amarelo limão para o encanto.
Um branco puro: pureza.
Terra de Siena natural: a transmutação do ouro.
Um preto sumptuoso para ver Ticiano.
Um terra de sombra natural para aceitar melhor a melancolia negra.
Um terra de Siena queimada para o sentimento de duração.
Texto-Testamento encontrado nos papéis de Maria Helena Vieira da Silva
¶ 20 de Novembro de 2020
últimas palavras
As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras
Manuel António Pina
¶ 19 de Novembro de 2020
As Flores
Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.
Sophia de Mello Breyner Andresen, lembrada por Zeferino Moreira da Silva
¶ 19 de Novembro de 2020
E raramente
Deitada és uma ilha
E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha
Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias
David Mourão Ferreira
¶ 18 de Novembro de 2020
A meu favor
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Manuel António Pina
¶ 18 de Novembro de 2020
No voo silencioso do vento
Alcançarei o céu, ainda,
No voo silencioso do vento,
Que vagamente flutua
Entre o poente e o levante
Num beijo fundo e intenso.
O céu, afinal
Permanece incólume,
Indiferente aos tombos dos fugitivos,
Marinheiros solitários
Amantes das mil certezas,
Procurando cair noutros braços.
Daniel Costa-Lourenço
¶ 17 de Novembro de 2020
O Livro das Imagens
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
então, a solidão vai com os rios...
Rainer Maria Rilke
¶ 16 de Novembro de 2020
Última Ciência
Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.
Herberto Helder
¶ 15 de Novembro de 2020
Nasce um poema
Estou cansado, penso naquilo o que
não pode ser pensado - no silêncio que reina
nas florestas quando as aves dormem,
sobre o final próximo do verão.
Mantenho a cabeça entre as mãos
como se a protegesse da aniquilação.
Visto de fora, sem dúvida que
pareço imóvel, quase morto,
resignado, merecendo simpatia.
Mas não é assim - sou livre,
talvez mesmo feliz.
Sim, seguro a pesada cabeça
em minhas mãos,
mas dentro nasce um poema.
Adam Zagajewski
¶ 15 de Novembro de 2020
A Natureza Subjectiva do Tempo
O tempo, tal como o espaço, é uma forma pura da intuição ou percepção sensível. É a condição de toda a percepção activa imediata, e também de tudo o que é percepcionado, isto é, de toda a experiência e de tudo o que é experimentado. A natureza é feita de tempo e de espaço, e é um processo. Quando salientamos o seu aspecto espacial, estamos conscientes da sua natureza objectiva; quando salientamos o seu aspecto temporal, tornamo-nos conscientes da sua natureza subjectiva. Tal como a percepcionamos, a natureza é um processo de devir infindável e contínuo. As coisas chegam e partem no tempo, mas são também temporais - o tempo é o seu modo de existência.
Georg Hegel
¶ 14 de Novembro de 2020
Tu, Leitor
Pergunto-me como te vais sentir
quando descobrires
que fui eu que escrevi isto em vez de ti,
que fui eu que me levantei cedo
para me sentar na cozinha
e mencionar com uma caneta
as janelas ensopadas pela chuva,
o papel de parede com heras,
o peixe-dourado circulando no aquário.
Vá lá, dá a volta,
morde o lábio e arranca a página,
mas, escuta - era só uma questão de tempo
até que um de nós casualmente
reparasse nas velas apagadas
no relógio murmurando na parede.
Para além disso, nada ocorreu nessa manhã -
uma canção na rádio,
um carro assobiando na estrada lá fora -
e eu simplesmente pensando
no saleiro e no pimenteiro
colocados lado a lado num mantel individual.
Perguntei-me se se haviam feito amigos
depois de todos estes anos
ou se ainda eram estranhos um para o outro
como tu e eu
que conseguimos ser conhecidos e desconhecidos
um para o outro ao mesmo tempo -
eu a esta mesa com uma fruteira de pêras,
tu encostado algures na entrada de uma casa
junto a umas hortênsias azuis lendo isto.
Billy Collins
¶ 14 de Novembro de 2020
Três ou quatro vontades
Acordei hoje com um sobressalto pouco comum,
merecedor da tentativa de o falar:
O meu cão vai deixar de ser o meu cão, amanhã ou depois. Melhor dizendo, vai deixar de estar comigo. Soube-o três ou quatro dias atrás, nem sei bem, e desde então muita coisa se baralhou. Não há limites para a vida precária nem para a precariedade em aspectos da vida, mesmo na mais solidária vida ou sociedade que possa existir: dois seres são pelo menos três ou quatro vontades e mil e um desgostos.
E é claro que há causas mais merecedoras de atenção
e muita muita luta:
Há toda a humanidade, por assim dizer:
Ui, montes e montes de questões a debater.
Mas hoje perdi o meu cão, o meu dono, o meu amigo.
Vai para Barcelona, vai estar bem.
Dizei-me, ó gregos,
por onde ir.
Talvez vos ouça.
Rui A.
¶ 13 de Novembro de 2020
Desato
Às vezes invento
outras vezes desgraço
Desbravo os sentidos
castigo ou desato
Deponho o que sei
acrescento o que faço
Às vezes construo
outras vezes desfaço
Maria Teresa Horta
¶ 13 de Novembro de 2020
fogo do silêncio
A tua boca adormeceu
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.
Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.
E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.
As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.
Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.
Artur do Cruzeiro Seixas
¶ 12 de Novembro de 2020
Tão longe
Belas asas de rumor
perdidas delineadas a sépia
na mesa da memória.
Mancha negra ao anoitecer
sobre a toalha. Tão longe
o eco dos cristais.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 12 de Novembro de 2020
um poema de amor
Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer -- que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe. Ainda bem
que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno. Ainda bem
que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí -- ainda mais perdida do que
antes -- a olhar sem ver. Ainda bem
que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.
Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer -- mas é -- um poema de amor.
Maria do Rosário Pedreira
¶ 11 de Novembro de 2020
Discurso de noivado após o jantar
Este eu, um recipiente, que
desde que ninguém o abra,
parece compacto, liso
como um ovo Kinder,
quase apetitoso. Somente lá,
no interior, está escuro. Quem sabe
o que estará dentro, à tua espera.
Obsessões, sem dúvida,
hábitos enferrujados,
medos incompreensíveis,
truques em segunda mão,
desejos infantis.
Que tu a desejes ter,
a esta prenda embrulhada,
roça o milagre.
Hans Magnus Enzensberger, trad. João Luís Barreto Guimarães
¶ 11 de Novembro de 2020
Labirinto ou Alguns Lugares de Amor
O outono
por assim dizer
pois era verão
forrado de agulhas
a cal
rumorosa
do sol dos cardos
sem outras mãos que lentas barcas
vai-se aproximando a água
a nudez do vidro
a luz
a prumo dos mastros
os prados matinais
os pés
verdes quase
o brilho
das magnólias
apertado nos dentes
uma espécie de tumulto
as unhas
tão fatigadas dos dedos
o bosque abre-se beijo a beijo
e é branco
Eugénio de Andrade
¶ 10 de Novembro de 2020
Numa praia
Em cada corpo recomeça o mundo,
mas onde então acaba este começo?
Amor não sabe mais o que é profundo,
vem da pele e respira só no verso.
Passamos a toalha pelo corpo,
com o suor a enxugar a morte:
há gotas de água fria no teu rosto,
em ti meus dedos lêem sua sorte.
Um riso nos chamou,fulgor ou seta,
e o dia se refez sem mais promessa.
Nos meus dedos ficou a ferida aberta:
só no teu corpo o mundo recomeça.
Luís Filipe Castro Mendes
¶ 9 de Novembro de 2020
O Coração Disparado
Em certas manhãs desrezo:
a vida humana é muito miserável.
Um pequeno desencaixe nos ossinhos
faz minha espinha doer.
Sinto necessidade de bradar a Deus.
Ele está escondido, mas responde curto:
'brim coringa não encolhe'.
E eu entendo comprido
e comovente esforço da humanidade
que faz roupa nova para ir na festa,
o prato esmaltado onde ela ama comer,
um prato fundo verde imenso mar cheio de estórias.
A vida humana é muito miserável.
'Brim coringa não encolhe'?
Meu coração também não.
Quando em certas manhãs desrezo
é por esquecimento,
só por desatenção.
Adélia Prado
¶ 9 de Novembro de 2020
Sentir
Árido sentir: seco
ressecado
assustado do próximo
passo na aproximação
abro a porta e permito o ingresso
do desassossego
abro as janelas e consinto a entrada
da avalanche
solto as amarras e tenho o encontro
dos corpos.
Pedro Du Bois
¶ 8 de Novembro de 2020
Os Meus Livros
Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.
Jorge Luis Borges
¶ 8 de Novembro de 2020
o outono ronda lá fora
Os nossos corações estão em paz
na pequena sala de chá -
o outono ronda lá fora
Matsuo Bashô
¶ 7 de Novembro de 2020
Coisas de partir
Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo,
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.
Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?
E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?
Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
Ana Luísa Amaral
¶ 6 de Novembro de 2020
o tempo faz e desfaz a vida
Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 6 de Novembro de 2020
Estão Agora Floridas As Magnólias
Adeus é só
uma palavra. Em toda a despedida
há sempre um regresso.
Albano Martins
¶ 5 de Novembro de 2020
O Tempo Aprazado
Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.
Ingeborg Bachmann
¶ 5 de Novembro de 2020
De quando a noite importa
Há tempos de ser pequeno, meu querido:
A galinha espantada e inacreditável, a fugir pelas silvas,
pescoço desmantado.
As caricas, os patins de quatro rodas,
sonhos de feliz casamento aos seis anos,
com a noiva do Sandokan;
Conhecer as letras, saber o trabalho,
dormir.
E olhar as formigas, com curiosidade
(por vezes cruel),
ter medo dos sustos, muitos,
não mais que isso.
Brincar com vontade.
E há tempos de ser pequeno.
Desses não falo, que importam cento e dezassete letras de revolta?
Rui A.
¶ 4 de Novembro de 2020
Mefistófeles
(...) Agarra-te às costelas do velho rochedo,
Senão neste abismo te irás despenhar!
É noite, a névoa está a cerrar,
Escuta as florestas a estalar!
Fogem as corujas assustadas,
Ouves rachar as colunatas
Dos eternos palácios verdejantes?
Gemem e quebram ramos pendentes!
Ribombam troncos às vezes,
Rangem e bocejam raízes!
Em pavorosa queda vão
Desabando em estrondo e confusão,
E pelas gargantas atravancadas
Uivam os ventos em rajadas.
Ouves as vozes lá no alto?
Vindas de longe? Aqui bem perto?
Por todo o monte corre entretanto
Um furioso e mágico canto!
Goethe, trad. João Barrento
¶ 3 de Novembro de 2020
Novembro
A respiração de Novembro verde e fria
Incha os cedros azuis e as trepadeiras
E o vento inquieta com longínquos desastres
A folhagem cerrada das roseiras.
Sophia de Mello Breyer Andersen
¶ 2 de Novembro de 2020
Conheço o sal
Conheço o sal da tua pele seca
depois que o Estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
Jorge de Sena
¶ 2 de Novembro de 2020
É por Ti que Vivo
Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva
Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata
Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar
Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto
António Ramos Rosa
¶ 1 de Novembro de 2020
Lábios
Nos lábios o som uníssono
da dor teatral e o gesto
de defesa no grito expandido
em palavras sem salvação
nos lábios o prazer da voz
tempestuosa alardeia o sentido
no instante em que acredita
no que diz e se satisfaz
nos lábios a certeza da ideia feita
palavra e a corrente se apresenta
como verdade: espanto.
Pedro Du Bois