Arquivo de março 2021
¶ 31 de Março de 2021
Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.
Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.
Fernando Assis Pacheco
¶ 31 de Março de 2021

¶ 31 de Março de 2021
No Outono, juntei todas as minhas tristezas e enterrei-as no jardim.
Quando abril voltou e a primavera veio para casar com a terra, no meu jardim cresceram lindas flores diferentes de quaisquer outras.
Os meus vizinhos vieram contemplá-las e todos me disseram:
"Quando o outono vier outra vez, na altura de semear, não nos darás umas sementes dessas flores, para que possamos tê-las nos nossos jardins?"
Kahlil Gibran, trad. Alcinda Marinho
¶ 30 de Março de 2021

¶ 30 de Março de 2021
Há uns vinte e três séculos que esta rapariga
concentra toda a vida que o mármore consente
no acto de dançar e de vencer assim
a condição mortal que intimamente a atinge
o peso que lhe pesa nesses pés com os quais pisa
a terra positiva e ciumenta como mãe
inimiga do voo de quem no acto de voar pode encontrar
maneira de evitar aquela gravidade que o sobrecarrega
Prepara a dança rapariga grega
tu nunca dançarás mas dançarás melhor
que se houvesses dançado alguma vez
No gesto com que apertas o sapato
nesse dobrar da perna até no risco do cabelo
no próprio olhar que pões em ver passar os dias
tu danças toda a dança que se tem dançado
em teatros jardins boîtes em adros de aldeias
ao longo destes séculos separando na aparência
dois seres que na verdade aqui hoje convivem
um breve instante neste corredor nesta passagem
com uma intensidade inacessível a contemporâneos
Prepara-te mulher para dançar
e por nunca dançar hás-de dançar em toda a parte
todas as danças que se têm sucedido
sobre esta terra grave e oscilante entre o dia e a noite
firme no solo inconstante no mar
através deste tempo que separa e une
e tanto mais nos une quanto mais separa
Não sei o que pensavas tu dançar
mas eu vi-te dançar ballet e música yé-yé
vi-te dançar giselle e vi-te até dançar
um único momento ao som de música moderna
há pouco tempo ainda na estalagem de saler
És toda a gente que na dança afinal tem procurado
deter o tempo eternizar o instante
Prepara a dança e põe em prepará-la
todo o cuidado de que és capaz
Só por ti não passaram vinte e tantos séculos
só tu não suportaste o dia-a-dia
não sofreste com guerras não tiveste fome
nem morreste sequer como cada pessoa
que teve nesta terra a vida e que pagou por tê-la
Prepara-te mulher e permanece e petrifica
assim serás feliz por nem teres começado
uma coisa que como uma das nossas muitas coisas
já mesmo ao começar havia terminado
Ruy Belo
¶ 30 de Março de 2021
Escrevo sobre coisas mortas
por mais vivas que estejam
ardente que seja a sorte, o amor
por desmedido
o pedaço de céu
sobre a asa de um rosto
João Miguel Fernandes Jorge
¶ 29 de Março de 2021

¶ 29 de Março de 2021
Levanto-me e olho o céu
numa tarde de primavera sob o vôo das galinholas.
Estranho! A estrela maior
é uma coisa minúscula, pequenina
que a folha do vidoeiro pode cobrir.
Distância, é a distância
que torna o que é eterno suportável
Ainda bem que lança tão grande sombra,
a pequena coisa que está próxima...
Hans Børli
¶ 29 de Março de 2021
Construo minha casa com a argamassa
dos dias cinzentos e coloridos. Inicio
pelo detalhe de viver e ter a certeza
da necessidade da construção.
Cerco o terreno em flores e crio
frutos proibidos: minha alimentação
enquanto a obra avança ao teto.
Obro portas e janelas oxigenadas
ao interior dos ranços trazidos.
Refaço os móveis na quantidade
dos dias em que morarei na casa
acerto na macieza do assento a saliência
do colchão e na tepidez da pedra o correr
da água na escuridão do quarto.
Completo a mudança
e me retiro: toda casa prende
os corpos em martírio.
Pedro Du Bois
¶ 29 de Março de 2021

¶ 29 de Março de 2021
A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus; com ela não podem ser igualados os tesouros que trancam a terra nem que o mar encobre: pela liberdade, bem como pela honra, pode-se e deve-se aventurar a vida; e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode vir aos homens.
Miguel de Cervantes Saavedra
¶ 28 de Março de 2021
Temor das palavras -
eis algo que aprendi.
Versos que escrevi
versos que queimei.
Da dúvida no meu coração
sussurros cruéis começam:
"Fraco, escreves
com uma arte emprestada.
A folha é adorável
quando é branca.
Poupa o espaço para a palavra
que não podes escrever".
Hans Børli
¶ 28 de Março de 2021

¶ 28 de Março de 2021
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
Herberto Hélder
¶ 28 de Março de 2021
Penso que atravessamos uma fase muito estranha da nossa história, que estão a acontecer coisas que ninguém conseguiu prever. E dirigimo-nos para um lugar novo, ainda desconhecido. Portanto, a imaginação não é inútil. Precisamos de imaginar para onde estamos a ir e que tipo de sociedade devemos construir. A cultura e a imaginação são agora muito importantes -- e 'cultura' não no sentido de produção artística, mas de elemento modelador e estruturante das sociedades. O papel do escritor hoje prende-se com dois requisitos: primeiro, ser-se lúcido, ver as coisas como elas são, sem tentar mascará-las; segundo, não propagar o desespero e procurar soluções, não necessariamente afirmando que as há. Não devemos mentir.
Amin Malouf
¶ 28 de Março de 2021

¶ 28 de Março de 2021
Em cidades estranhas
nossos pensamentos vagueiam calmamente
como túmulos de artistas de circo esquecidos,
os cães ladram aos caixotes do lixo e aos flocos de neve
que sobre eles caem.
Em cidades estranhas passamos despercebidos
como um anjo de cristal fechado numa caixa de vidro sem ar,
como um segundo terramoto que meramente
rearranjasse o que já estivesse arruinado.
Nikola Madzirov
¶ 27 de Março de 2021

¶ 27 de Março de 2021
Perceber pode não servir, neste excessivo azul-luz,
no sol que continua a esburacar Fevereiro (olhos
sem olhar postos em negras andorinhas de Maio), coisas
por dizer que são caladas: um exausto meio-dia
num cenário de carnaval incerteza (está cheio
de beleza o vazio que no fundo da nossa procura
reaparece sempre) inundado pelo sol de uma graça
animal e mulher. Fico é aqui com os meus bibelôs.
As preces esperaram pelas palavras. A camisola
de lã suada, arrepios de febre, colada às costas.
E edificámos contentamentos por instinto
de conservação, o gesto e o saber viver. Morrer.
Depois reencontrarmo-nos por cima das coisas
perdidas quando os ventos não cessam, motes e esperas, no coração
da noite, um só é o vento quando nos pomos à escuta...
as cãibras, as insónias com geometrias de sombras
e luzes, mas também isto, acreditar por instinto de conservação,
também isto é
sublime e quotidiano.
Gabriel del Sarto
¶ 27 de Março de 2021
Pergunto pela recompensa
sou posto para fora
bicho enxotado
com a vassoura: varrido
do espaço na glória
imaginária
recompensa é recomeçar do nada
fechado em novas experiências
que a glória é o leme quebrado
durante a tempestade.
Pedro Du Bois
¶ 27 de Março de 2021

¶ 27 de Março de 2021
O tempo é um passo
Que em seu próprio espaço
Cabe.
Com ele partimos
E nele regressamos
Cumprindo o indirecto plano
Da reintegração:
É a flecha
Desferida do arco de toda a invenção.
Ana Hatherly
¶ 26 de Março de 2021

¶ 26 de Março de 2021
Um céu e nada mais -- que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul -- como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
leram os teus olhos, se tos mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais -- que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
Ana Luísa Amaral
¶ 25 de Março de 2021
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Eugénio de Andrade
¶ 25 de Março de 2021

¶ 25 de Março de 2021
Apenas do amor quero tão alto preço
do mais pouco ou quase nada peço
dias há em que o verso pede rima
como este a querer o que estima
e que não direi; pois que a vida
se se sente desordenada
ou em ardor que começa e finda
imprevisível em cada coisa e nada
ninguém assim o determina.
Apenas de quando em quando vestígios
por entre duas cidades, dois rios
um a norte, outro a sul que te imagina
ou balouça ou adormenta se o penso
querer dizer aqui o que não posso
Helga Moreira
¶ 24 de Março de 2021
A idade avança, também nós ausentes
dos nossos anos anteriores, hóspedes
do crescimento cruel.
À luz - fogo ou lua? - os rostos
esboçados, vizinhos, os gestos
descompostos
de quem conhecemos, de quem
fomos
- mas é pouco: no encontro desta noite,
com fácil cuidado, os mecanismos humanos
doces se desabituam.
Gabriel del Sarto, trad. Andrea Ragusa
¶ 24 de Março de 2021

¶ 24 de Março de 2021
Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!
Luís de Camões
¶ 24 de Março de 2021
Só mal tocando as cordas
Da memória
Consegue o coração ressuscitar
Porque era este lugar
que eu precisava agora
como em deserto até
ao infinito,
e de repente,
uma gravidez imensa,
um cacto verde e limpo
Porque os olhos conhecem
estes sons
de dar à luz o vento
e são-lhe amantes
de tangível luz
Só mal tangendo as cordas
da memória
como estas flores
se tingem de alegria
Porque era neste azul
que eu me queria
como a rocha transpira
e se resolve
em mar
Ana Luísa Amaral
¶ 23 de Março de 2021

¶ 23 de Março de 2021
verdadeiramente nada muda
na luz banal do dia
quando um grande poeta nos deixa
(...)
Contudo, quando nos despedirmos para muito tempo
ou para sempre de alguém que amamos,
sentiremos de repente que nos fazem falta as palavras
e que agora temos de falar por nós próprios,
já ninguém o fará por nós
porque um grande poeta nos deixou.
Adam Zagajewski, trad. Marco Bruno
¶ 23 de Março de 2021
Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.
Adam Zagajewski, trad. Marco Bruno
¶ 23 de Março de 2021

¶ 23 de Março de 2021
Um domingo de manhã com sol, tão fácil
apaixonar-se, acordar mais tarde,
talvez em Abril
ou nas súbitas variações primaveris
do final de Fevereiro,
é fácil apaixonar-se
- apaixonei-me por ti muitas vezes no cais -
do azul, das conversas
dos amigos, sorrisos.
São estes céus insuperáveis, sempre demasiado breves
as horas para as pupilas,
a condicionar as nossas mentes,
as psicologias,
e já não sei viver
na esterilidade sem sentido de culpa.
O que poderia ser - as folhas
nesta avenida comprida, os papéis
nos grandes contentores da freguesia, de madeira - entre nós.
As dissonâncias.
A nossa fronteira são os Alpes
quase azuis, a neve de ontem à noite
faz-nos falar, sentia-se que estava para cair.
Se caísse sobre a cidade sobre a praia
como em oitenta e cinco, as escolas
fechadas, a irrealidade de tudo - outros desesperos.
Os chuviscos tardios nas avenidas que se alagam
facilmente nos lados
e à noite muitas vezes se encontra uma névoa amanteigada
como se estivéssemos no parmigiano. Seguem-se
mal-estares, olheiras, por factos
tão repentinos
e depois as danosas marulhadas, mas também estas
com a sua misteriosa violência, também estas
são qualquer coisa que deve existir.
Gabriel del Sarto, trad. Andrea Ragusa
¶ 22 de Março de 2021

¶ 22 de Março de 2021
Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.
Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.
Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.
Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.
Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.
Natália Correia
¶ 22 de Março de 2021
Quando se fala de um necessário trabalho interno com a figura paterna também é disto que se fala: a capacidade de aceitação dos limites, o reconhecimento de um dom absoluto mesmo que transmitido de forma débil, a experiência de perdão, o reencontro e a prevalência da gratidão.
Tolentino de Mendonça
¶ 22 de Março de 2021

¶ 22 de Março de 2021
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
Adília Lopes
¶ 21 de Março de 2021
O que tentam dizer as árvores
No seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,
o sentido que têm no lugar onde estão,
a reverência, a ressonância, a transparência,
e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea.
E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia
que entre a água e o espaço se tornou uma leve
integridade.
Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes.
Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus
ramos.
Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes.
Não estou, nunca estarei longe desta água pura
e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas.
Que pura serenidade da memória, que horizontes
em torno do poço silencioso! É um canto num sono
e o vento e a luz são o hálito de uma criança
que sobre um ramo de árvore abraça o mundo.
António Ramos Rosa
¶ 21 de Março de 2021

¶ 21 de Março de 2021
Sou como aquela folha - olha -
naquele ramo nu, que ainda um prodígio
mantém presa.
Nega-me, pois. De tal não entristeça
a bela idade que te dá essa cor ansiosa
e em mim só se demora num ímpeto infantil.
Dize-me tu adeus, se pela minha parte o não consigo.
Morrer é nada; perder-te é que é difícil.
Umberto Saba
¶ 21 de Março de 2021
Agora as aves voltam,
são nos ramos altos a matéria
mais próxima dos anjos
-ousarei eu tocar-lhes,
fazer delas o poema?
Eugénio de Andrade
¶ 20 de Março de 2021

¶ 20 de Março de 2021
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais variados!
As horas do dia e as quatro estações,
um tanto menos de sol ou mais de vento,
são o devaneio, o acompanhamento
sempre diverso para suas paixões,
sempre as mesmas; e o tempo que faz,
ao levantar-se, eis o grande acontecimento
do dia, sua alegria assim que desperta.
Nada como as luzes contrárias o alegra,
nada como os belos dias
movimentados,
e em longas histórias multidões imersas,
onde o azul e a tempestade duram pouco,
onde se alternam searas de infortúnio
e de vitória.
Com um rubro crepúsculo se entusiasma;
e com as nuvens muda de cor,
ainda que lhe não mude a alma.
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais abençoados!
Umberto Saba
¶ 20 de Março de 2021

¶ 19 de Março de 2021
Lívido alvorecer, eu estou sem deus.
Caras de sono andam pelas ruas
sepultadas por feixes de erva gelada.
Gritam no frio oco os vendedores.
Alvoradas mais densas de cores já vi
nos mares nos campos inutilmente.
Entrego-me ao amor daqueles rostos.
Sandro Penna, trad. Andrea Ragusa
¶ 19 de Março de 2021
Dantes, num tempo ainda recente, a televisão foi o meio ideal do analfabeto secundário - essa figura conceptualmente identificada e caracterizada pelo poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger, num discurso de 1985, intitulado Elogio do Analfabetismo. O objecto do elogio de Enzensberger foi o "analfabetismo primário", que é a origem de toda a literatura, na medida em que desenvolveu os recursos da transmissão oral. Neste sentido, a literatura é precisamente uma arte de analfabetos. Mas, a partir da época da industrialização e, com grande pujança, desde que triunfou a regra da massificação, surgiu na cena social a figura a que Enzensberger dá o nome de "analfabeto secundário", que não descende da linhagem do primeiro. Este novo tipo de analfabetismo não desenvolve nenhuma arte, nem tem potencialidades antropológicas: o analfabeto secundário desconhece-se a si mesmo enquanto tal e considera-se informado. Sabe muito bem decifrar os códigos escritos e as linguagens visuais com que o mundo moderno o interpela. Não sabe é que há muito mais mundo para além daquele que foi configurado à sua medida. E quando, por acaso ou acidente, se vê confrontado com o que não conhece reage como um filisteu, para o qual só existe a categoria da utilidade e o universo objectivo e enumerável dos bens. Ao serviço do analfabeto secundário está hoje uma grande parte do mundo impresso. Por isso, o destino mais comum das livrarias foi o de se renderem também aos bons ofícios dessa figura universal. Nelas, resplandece hoje este analfabetismo, que alimenta uma grossa fatia da indústria do livro.
António Guerreiro
¶ 19 de Março de 2021

¶ 19 de Março de 2021
Segundo os dicionários de filosofia, absoluto será tudo aquilo que é ab solutus, livre de laços ou limites, algo que não depende do outro, que tem a sua própria razão, causa e explicação em si mesmo. Algo, portanto, muito semelhante a Deus, no sentido em que Ele se definia «eu sou aquele que é» (ego sum qui sum), em relação ao qual tudo o resto é contingente, isto é, não tem a própria causa em si mesmo e - ainda que existisse por acidente - poderia muito bem não existir, ou já não existir amanhã, como acontece ao Sistema Solar ou a cada um de nós. Sendo seres contingentes e, portanto, destinados a morrer, temos uma desesperada necessidade de pensar que nos podemos ancorar a algo imperecível, isto é, um absoluto.
Umberto Eco
¶ 18 de Março de 2021
Voltei a esse lugar
onde nunca tinha estado.
Do que não foi, nada mudado.
Sobre a mesa (de oleado
aos quadrados) meio vazio
encontrei o mesmo copo
nunca cheio. Tudo
permanece tal e qual
eu o não tinha deixado.
Giorgio Caproni
¶ 18 de Março de 2021

¶ 18 de Março de 2021
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Carlos Drummond de Andrade.
¶ 17 de Março de 2021
Meu amor, nos vapores dum café
ao amanhecer, meu amor que inverno
longo e que calafrio estar à tua espera! Cá
aonde o mármore do sangue é gelo, e sabe
a frescura até o olho, agora no ermo
ruído além da geada eu que elétrico
ouço, abrindo e fechando eternamente
as portas desertas?... Amor, está parado
o meu pulso: e se o copo no fragor
subtil tem um tremor nos dentes, talvez
seja o eco dessas rodas. Mas tu, amor,
não me digas que agora em vez de ti está o sol
brotando, não me digas que daquelas portas,
eu cá, com teus passos, já estou a aguardar pela morte.
Giorgio Caproni
¶ 17 de Março de 2021

¶ 17 de Março de 2021
Recuso os sonhos que te ignoram e os desejos que não possas despertar. Não quero fazer um gesto que não te louve, nem cuidar uma flor que não te enfeite; não quero saudar as aves que ignorem o caminho da tua janela, nem beber em ribeiros que não tenham acolhido o teu reflexo. Não quero visitar países que os teus sonhos não tenham percorrido como taumaturgos vindos de fora, nem habitar cabanas que não tenham abrigado o teu repouso. Nada quero saber de quem te precedeu em meus dias, nem dos seres que aí permanecem.
Rainer Maria Rilke, in "Correspondência Amorosa com Lou Andreas-Salomé"
¶ 16 de Março de 2021
A transformação é a oportunidade de fazer mais e melhor com o que já existe. A demolição é a decisão mais fácil a curto prazo. É um desperdício de muitas coisas - uma perda de energia, uma perda de material, uma perda de história. Além disso, tem um impacto social muito negativo. Para nós, é um acto de violência.
Jean-Philippe Vassal e Anne Lacaton, prémio Pritzer 2021
¶ 16 de Março de 2021

¶ 16 de Março de 2021
Poeta, dizem do apaixonado,
poeta, dizem de quem chora ao anoitecer
e de manhã se levanta em desespero.
Mas também se diz poeta quem alegra,
quem sabe falar bem, beber, comer,
e o que canta as mulheres, poeta ainda,
a juventude extasiada.
Mas os que matam nos outros a poesia
fechada à chave, e os afogam
no grande livro da vida... paciência!
Não são poetas, homens de bem não são.
São massa informe, e pronto, e assim seja.
Franco Loi
¶ 16 de Março de 2021
Bernardo de Chartres dizia que somos como anões aos ombros de gigantes, de modo que podemos ver mais longe do que eles, não em virtude da nossa estatura ou da acuidade da nossa visão, mas porque, estando aos seus ombros, estamos acima deles.
São Tomás de Aquino, citado por Umberto Eco
¶ 15 de Março de 2021

¶ 15 de Março de 2021
Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 15 de Março de 2021
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
¶ 15 de Março de 2021

¶ 15 de Março de 2021
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 14 de Março de 2021
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Somente num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Sons de passos ecoam na memória
Descem o caminho que nós não seguimos
Em direcção à porta por nós nunca aberta
Para o jardim de rosas. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas com que propósito
Perturbam o pó numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos seguir?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam, graves, invisíveis,
Moviam-se sem pressa, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, pelo ar vibrante,
E o pássaro chamou, em resposta
À inaudível música oculta nos arbustos,
E o invisível relance perpassou, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como convidadas nossas, acolhidas e acolhedoras.
Assim nós e elas avançámos, num padrão formal,
Pela alameda vazia, no círculo de buxo,
Para olhar para dentro do lago esvaziado.
O lago seco, cimento seco, de bordos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus, e subiu, devagar, devagar,
A superfície cintilou do coração da luz,
E ficaram por detrás de nós, reflexos no lago.
Passou então uma nuvem, e o lago ficou vazio.
Ide, disse o pássaro, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Em excitação escondidas, refreando o riso.
Ide, ide, ide, disse o pássaro: a espécie humana
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um só fim, sempre presente.
T. S. Eliot, trad. Gualter Cunha
¶ 14 de Março de 2021

¶ 14 de Março de 2021
E se as voltas de fechadura
não acabassem nunca?
e se tivesse de ficar toda a vida
aqui fora, a dar voltas à chave?
Faço a cópia das minhas chaves
faço a cópia das minhas cópias
o que gasto para as multiplicar
serve para tirar a cada uma o seu valor
o meu Valério. No perfil dos versos
reproduzo o recorte
dentado das chaves.
Valerio Magrelli
¶ 13 de Março de 2021
Quando lembro os deuses, os que inspiraram as guerras, o amor e as viagens, os que inspiraram os gregos, os romanos, outros deuses os antigos, quando lembro os deuses, os seus rostos, a sua força, a agitação dos mares, os seus segredos, e tempestades, a sua justiça, as suas mentiras, quando lembro os deuses, o seu poder, a sua inveja, e ganância, quando lembro os deuses, que se assemelham aos homens, quando se tornaram homens, e mulheres, os deuses profanos, quando lembro os deuses, a sua verdade, os seus rostos de pedra, que se fizeram carne e sangue, música, poesia, filosofias, presságios, destinos, acasos, quando lembro os deuses, o seu amor, o que os unia e separava, pergunto onde estão agora, onde estamos nós, além da música, dos livros onde os guardaram, da pedra, do sol, da chuva e natureza, onde estão agora os deuses e a sua beleza?
Rui Esteves
¶ 13 de Março de 2021

¶ 13 de Março de 2021
Sou uma janela onde se debruçam
todas as coisas da vida.
Não sobre mim: sobre a vida
que passa pelo meu ser
E tudo é longe
e aqui.
Ser poeta é não pertencer
nem a si.
Alberto de Lacerda
¶ 13 de Março de 2021
Eles silenciaram-me em Prosa -
Como quando era Menina
Eles encerraram-me no Armário -
Porque eles gostavam de mim "ainda" -
Ainda! Eles mesmos poderiam ter espreitado -
E vi o meu cérebro - às voltas -
Eles poderiam ter alojado um Pássaro
Por Traição - no Curral -
Ele mesmo deve desejar apenas
E fácil quanto uma Estrela
Olhar para baixo sobre o Cativeiro -
E rir - eu nada mais tenho -
Emily Dickinson, trad. Luísa Vinuesa
¶ 12 de Março de 2021

¶ 12 de Março de 2021
Eu moro na Possibilidade -
Uma casa mais justa do que a Prosa -
Com maior número de Janelas -
Superior - em Portas -
De Quartos como os Cedros -
Impregnáveis de olhos -
E para um Telhado eterno
As Arestas do Céu -
De Visitantes - o mais justo -
Para Ocupação - Esse -
A acrescer as minhas exíguas Mãos
Para acolher o Paraíso -
Emily Dickinson, trad. Luísa Vinuesa
¶ 12 de Março de 2021
Imaginei muitas vezes que os olhares
sobrevivem ao acto de ver
como se fossem hastes,
trajectos medidos, lanças
numa batalha.
Penso então que dentro de uma sala
há pouco abandonada
esses traços devem ficar
por algum tempo suspensos e cruzados
no equilíbrio do seu desenho
intactos e sobrepostos como os paus
de mikado.
Valerio Magrelli
¶ 12 de Março de 2021
O equinócio de primavera sinaliza o primeiro dia desta estação, o que ocorre todos os anos entre os dias 20 e 21 de março. Este ano, acontece no dia 20 de março às 09h37.
Equinócio é uma palavra em latim que aglutina dois termos com significados diferentes. Aequus significa "igual" e nox, "noite". O termo quer dizer literalmente "noites iguais", isto porque nessa altura a noite e o dia têm sensivelmente a mesma duração.
¶ 12 de Março de 2021

¶ 12 de Março de 2021
O inverno da cidade desperto
não traz consigo desfolhamento. Amarela
a luz nas janelas. Um vento viaja
pela rua Dizengoff,
junto a uma rapariga que caminha
com amor entre as pernas, faz duas horas
com amor entre as pernas. Sua mãe
dizia: levei-te nove meses sob o coração.
Assim há já duas horas. Também do outro lado da via caminha
gente bela, praticando belas accções. Por exemplo,
Meir Wieseltier arranca um versículo da cabeça e ensina-o aos viandantes
o odor de meu filho é como o odor do campo, The smell of my son is like
the smell of the field
de uma língua a outra passa o forte aroma.
Meir Wieseltier
¶ 11 de Março de 2021

¶ 11 de Março de 2021
O medo está no inverno.
O medo
bate nos olhos com as suas ferramentas negras e
depois anuncia a morte.
No inverno
penso na terra, no silêncio da terra e dos astros e
das rosas,
no teu grande silêncio, pai.
No inverno
volto-me para baixo, para os alicerces
do mundo.
No inverno
dizes de muito longe que não voltarás aqui.
José Agostinho Baptista
¶ 10 de Março de 2021
O passado tem de provar constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar. Há muita realidade a passear-se por aí, frágil, transportada apenas por uma única pessoa. Se esse indivíduo desaparecer, toda essa realidade desaparece sem apelo, não existe meio de recuperá-la, é como se não tivesse existido.
José Luís Peixoto
¶ 10 de Março de 2021
Não sou completa, não. Completa lembra realizada. Realizada é acabada. Acabada é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo. Eu vivo me completando... mas falta um bocado.
Clarice Lispector
¶ 10 de Março de 2021

¶ 10 de Março de 2021
Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;
Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;
Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.
William Butler Yeats, trad. José Agostinho Baptista
¶ 9 de Março de 2021

¶ 9 de Março de 2021
Vida prévia: a sensação
de plenitude nos movimentos
repetidos: o som
do líquido contra
a parede: o contato
físico desconhece
a existência de barreiras
a vida em filas
diárias de nascimentos
o ponto separa o corpo
do corpo: isola os seres
e faz se reencontrarem
em separações
repetidas: de dentro para fora
do corpo
da casa
da vida.
Pedro Du Bois
¶ 9 de Março de 2021

¶ 9 de Março de 2021
Pedes-me um poema.
Ofereço-te uma folha de erva.
Dizes que não chega.
Pedes-me um poema.
Eu digo que esta folha de erva basta.
Vestiu-se de orvalho.
É mais imediata
Do que alguma imagem minha.
Dizes que não é um poema.
É uma simples folha de erva e a erva
Não é suficientemente boa.
Ofereço-te uma folha de erva.
Estás indignada.
Dizes que é fácil oferecer uma folha de erva.
Que é absurdo.
Qualquer um pode oferecer uma folha de erva.
Pedes-me um poema.
E então escrevo uma tragédia àcerca
De como uma folha de erva
Se torna cada vez mais difícil de oferecer
E de como quanto mais envelheces
Uma folha de erva
Se torna mais difícil de aceitar.
Brian Patten, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 8 de Março de 2021
Nenhuma pessoa é uma ilha, isolada em si mesma; toda a pessoa é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos, ou a tua própria casa; a morte de qualquer pessoa diminui-me, porque sou parte da humanidade; e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.
John Donne
¶ 8 de Março de 2021

¶ 8 de Março de 2021
Uma grande avenida com árvores
com um grande Café ao sol
com um café preto e forte em chávenas pequeninas
Alguém não necessariamente muito bonito
homem ou mulher, que te ama
Um belo dia
Lawrence Ferlinghetti
¶ 8 de Março de 2021
Ao aproximar-me do estado de pura euforia
reparo que preciso de uma grande mala de máquina de escrever
para carregar lá dentro a minha roupa interior e as cicatrizes na minha consciência
Lawrence Ferlinghetti
¶ 7 de Março de 2021
Quando amanhece, perguntamo-nos
'onde encontrar luz nesta interminável sombra?'
A perda que carregamos, um mar para vadear.
Enfrentámos a barriga da besta.
Aprendemos que sossego nem sempre é paz,
e as normas e noções do "justo" nem sempre são justiça.
Porém, a aurora é nossa antes de sabermos.
De alguma forma a fazemos.
De alguma forma resistimos e testemunhamos
uma nação que não está falida, mas simplesmente interrompida.
Nós, os herdeiros de um país e de um tempo, onde uma miúda negra magricela descendente
de escravizados e criada por uma mãe solteira pode sonhar em tornar-se presidente, e logo
ver-se a declamar para um.
E sim, estamos longe da polidez, longe da limpidez,
mas isso não significa que lutamos por uma união perfeita.
Nós lutamos para forjar a nossa união com propósito.
Compor um país comprometido com todas as culturas, cores, feitios e condições humanas.
E assim não erguemos o nosso olhar para o que está entre nós,
mas para o que está diante de nós.
Fechamos o fosso porque colocar o nosso futuro em frente,
implica antes colocar as nossas diferenças de lado.
Baixarmos as armas para nos abraçarmos mutuamente.
Não queremos magoar ninguém, mas harmonia para toda a gente.
Deixemos o globo, se nada mais, dizer que isto é verdade:
Que mesmo enquanto sofríamos, crescíamos.
Que mesmo enquanto doía, tínhamos esperança.
Que mesmo durante o cansaço, tentávamos.
Que permaneceremos para sempre em união e vitória.
Não porque nunca mais vamos conhecer a aniquilação,
mas porque nunca mais vamos semear a divisão.
As escrituras sugerem que imaginemos que cada pessoa se poderá sentar
debaixo da sua própria vinha e figueira e ninguém a conseguirá assustar.
Se quisermos viver à altura do nosso tempo,
então a vitória não residirá na lâmina,
mas em todas as pontes que construímos.
Essa é a promessa-clareira, a colina a subir, se assim ousarmos.
Porque ser da América é mais do que um orgulho que herdamos.
É o passado em que entramos e a forma como o reparamos.
Nós vimos uma força que fragmentaria a nossa nação em vez de a compartilhar.
Que destruiria o nosso país se isso significasse a democracia adiar.
Esse esforço foi quase bem-sucedido.
Mas se a democracia pode, periodicamente, ser adiada,
ela nunca pode ser permanentemente derrotada.
É nesta verdade e nesta fé que confiamos,
porque enquanto olhamos para o futuro, a História está de olho em nós.
Esta é a era da justa redenção.
Temíamos isso desde a iniciação.
Não tínhamos ainda a preparação para herdar tão aterradora hora,
mas no seu seio, descobrimos o poder para escrever um novo capítulo,
e para oferecer, a nós próprios, confiança e sorrisos.
Assim, enquanto outrora perguntávamos 'como é possível vencermos a catástrofe?',
agora anunciamos: 'Como será possível a catástrofe vencer sobre nós?'
Não vamos marchar de regresso ao que foi, mas avançar para o que deve ser:
Um país que está ferido, mas inteiro,
benevolente, mas audaz,
feroz e livre. Nós não vamos recuar ou ser interrompidos por intimidação,
sabemos que a inação e inércia seriam o legado da próxima geração.
As nossas falhas tornam-se os seus fardos.
Mas uma coisa é certa:
Se fundirmos bondade com força, e força com razão,
então o amor torna-se a nossa herança
e a mudança, um direito à nascença da criança.
Então deixemos para trás um país melhor do que aquele que nos deixaram.
Com cada sopro do meu peito socado a bronze,
nós elevaremos este mundo ferido a um mundo maravilhoso.
Nós nos levantaremos das colinas douradas do Oeste.
Nós nos levantaremos do nordeste varrido pelo vento,
onde os nossos antepassados fizeram a primeira revolução.
Nós nos levantaremos das cidades à beira dos lagos de Midwest.
Nós nos levantaremos do Sul escaldado pelo sol.
Nós vamos reconstruir, reconciliar e recuperar.
Cada recanto conhecido da nossa nação, cada esquina a que chamamos país,
o nosso povo, diverso e belo, irá emergir, flagelado e belo.
Quando amanhece, nós saímos da sombra, ardentes e sem medo.
Uma nova aurora floresce enquanto a libertamos.
Porque há sempre luz,
se tivermos coragem suficiente para a ver,
se tivermos coragem suficiente para a ser.
Amanda Gorman, trad. Raquel Lima
¶ 7 de Março de 2021
Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 7 de Março de 2021

¶ 7 de Março de 2021
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
Al Berto
¶ 6 de Março de 2021

¶ 6 de Março de 2021
Amo os primeiros momentos da manhã
aqueles momentos que ainda ninguém usou
tão limpos
que deves lavar os pés antes de os habitares
aqueles momentos que cheiram como pétalas de rosa e erva cortada
e encharcam a tua roupa com orvalho
Irás chocar com segredos
descobrir milagres cobertos habitualmente pelo fumo dos autocarros
escutarás puros ecos sussurros e corridas precipitadas
Amo os primeiros momentos da manhã
quando o sol tem um só olho aberto
e o dia é como uma camisa lavada
sem vincos e pronta a usar
aqueles momentos que prendem a tua atenção
por serem tão sossegados
Coral Rumble, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 5 de Março de 2021

¶ 5 de Março de 2021
De manhã há sentido, à noite há sentimento.
Gertrud Stein
¶ 5 de Março de 2021

¶ 5 de Março de 2021
Os espinhos são a minha linguagem.
Anuncio a minha existência
com um toque de sangue.
Estes espinhos já foram flores.
Odeio os amantes que se traem.
Os poetas abandonaram os desertos
e regressaram aos jardins.
Só os camelos permanecem aqui e os comerciantes
que transformam as minhas flores em pó.
Um espinho por cada rara gota de água.
Não sou uma tentação para as borboletas.
Nenhum pássaro canta em meu louvor.
Não sou responsável por nenhuma seca.
Crio outra beleza,
para além do luar,
deste lado dos sonhos,
uma afiada e penetrante
linguagem paralela.
K. Satchidanandan, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 4 de Março de 2021
Um homem carrega uma porta
pela rua fora.
Procura a sua casa.
Ele sonhou
com a mulher, filhos e amigos,
a entrarem através daquela porta.
Agora vê o mundo todo,
a entrar através da porta
da sua casa ainda por construir:
homens, veículos, árvores,
animais, pássaros, tudo.
E a porta, o seu sonho
erguendo-se acima da terra,
anseia ser a porta dourada do paraíso.
Imagina nuvens, arco-íris,
demónios, fadas e santos
passando através dela.
Mas é o senhor do inferno
quem guarda a porta.
E agora deseja apenas ser uma árvore
cheia de folhas,
ondulando na brisa,
para providenciar alguma sombra,
ao seu carregador sem abrigo.
Um homem carrega uma porta
ao longo da rua.
Um homem e uma estrela.
K. Satchidanandan, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 4 de Março de 2021

¶ 4 de Março de 2021
Alguém que explique a diferença,
em palavras azuis.
Dona Rosa, essa santa senhora das migrações
(que limpava os quartos e acomodava geometrias)
nem sequer pestanejou.
A coragem é um verbo distante.
Um pouco mais tarde
(sei que era tarde),
Parti os relógios que encontrei
(e os morangos serão sempre um mistério absoluto, ou talvez não)
A solidão tem os seus contras.
E é mais fácil falar de dona Eulália, que além disso
teve um funeral bastante normal,
como o de quase todos nós.
Rui A.
¶ 3 de Março de 2021

¶ 3 de Março de 2021
Sagrei-os, aos meus filhos.
Fiz o que era esperado de mim,
mas a minha lembrança era do avesso,
para o futuro,
e estava toda nas rosas
que o tempo haveria de trazer,
em forma das guerras do meu país.
Dessas guerras me lembro,
mas nunca cheguei a ver a guerra
que a ambição e os sonhos lhes doaram.
Sagrei-os na minha mente,
antecipando o gesto de outra
que teria o meu nome.
Nesse dia, de manhã cedo,
era ainda escuro, e no quarto,
mesmo descerradas as cortinas,
quase não entrava a luz.
As aias ajudaram-me a vestir, e eu,
como sempre acontecia depois de acordar
e enquanto não chegavam as horas do dever,
lembrei-me do meu pai, do meu país,
dos seus campos muito verdes atravessados
por rebanhos, da chuva do meu país,
tão contínua como as minhas saudades.
Quando acabei as recordações
e o choro de silêncio,
chamei-os na minha mente.
A todos ofereci prendas.
Ao primeiro dei um ceptro
enfeitado de papel e de palavras,
ao segundo, uma espada
de aço brilhante,
ao terceiro, o gosto pelo mundo,
e ao último contei-lhe o caminho de
água verde e espuma alta
por onde eu tinha chegado;
mostrei-lhe o mar,
ao longo das muitas tardes
em que eu própria sonhava
com as margens que havia deixado
para trás.
Se pudesse sentar-me novamente
junto àquela janela,
a espada brilhante que dei a esse meu segundo filho
tê-la-ia transformado em arado,
ou em pequena lamparina,
porque, ao dar-lhe a espada,
dei-lhe também o resto de matar e de morrer.
Antes lhe tivesse dito vezes sem conta como é belo o mundo
e poder falar dentro dele.
Ou antes lhe tivesse mostrado só o mar,
como fiz com esse filho
junto de quem me cansava
das saudades da minha terra.
Uma prenda, porém, me é boa na memória:
a do papel e das palavras. Dispensaria o ceptro,
mas era ele que segurava palavras e papel.
Dessa prenda não me arrependo,
e quase me regozijo um pouco
por aquilo que fiz nessa manhã fria e escura
em que os chamei aos quatro
para junto da minha mente
e do meu coração.
Mas o que fizeram de mim,
naquele dia há tantos anos, quando, quase menina,
me ajudaram a subir para o bote
e depois para o navio
que me haveria de levar a uma terra que eu não conhecia,
a uma língua que não era a minha língua?
Onde ficaram as minhas tardes molhadas de chuva?
E a memória que de mim ficou,
porque não fala ela dos meus campos verdes
e das sombras dos rebanhos que os atravessavam?
Porque me nega essa memória
as rosas que, em futuro,
e ditas como guerra,
haveriam de dizimar tanta da minha gente?
Por que outra noite trocaram
o meu escuro?
Ana Luísa Amaral
¶ 3 de Março de 2021
Sem qualquer excepção, homens e mulheres de todas as idades, de todas as culturas, de todos os graus de instrução e de todos os níveis económicos têm emoções, estão atentos às emoções dos outros, cultivam passatempos que manipulam as suas próprias emoções, e governam as suas vidas, em grande parte, pela procura de uma emoção, a felicidade, e pelo evitar das emoções desagradáveis. À primeira vista, não existe nada de caracteristicamente humano nas emoções, uma vez que é bem claro que os animais também têm emoções. No entanto, há qualquer coisa de muito característico no modo como as emoções estão ligadas às ideias, aos valores, aos princípios e aos juízos complexos que só os seres humanos podem ter, sendo nessa ligação que reside a nossa ideia bem legítima de que a emoção humana é especial. A emoção humana não se reduz ao prazer sexual ou ao pavor de répteis. Tem a ver, igualmente, com o horror de testemunhar o sofrimento e com a satisfação de ver cumprida a justiça.
António Rosa Damásio
¶ 2 de Março de 2021

¶ 2 de Março de 2021
Na finitude dos sentimentos
a hora
é o travo: o desânimo
em razões submerge
a lágrima
entremeada ao olho
(a música cessa
a palavra cala)
o grito esteriliza
o gesto: assusta
o pássaro
(os olhos se fecham
em lembranças).
Pedro Du Bois
¶ 2 de Março de 2021

¶ 2 de Março de 2021
Mais que nunca, rezo pelos meus pecados colectivos:
oxalá resistam ao tempo e permaneça a vontade de os praticar
em conjunto.
Incluo no rol algumas mentiras piedosas, daquelas que
não fazem mal a ninguém mas supõem ouvintes:
como dizer a alguém que parece mais novo em cada dia que passa,
ou que está tudo bem, obrigado.
Ou aquilo de fazer o mais possível, coisa linda de dizer.
Rezo para que voltem depressa e não sejam breves.
Muitas mais belas coisas já antes escapavam,
e falta o interno aconchego de carregar
no excesso de apartamento.
Estão para lá do que espero recuperar pela Páscoa
ou meses por vir
(continuo, para já, um ser medianamente racional).
Rezo que as minhas mãos se toquem nas tuas,
mesmo se com alguma incrível inocência.
Rui A.
¶ 1 de Março de 2021

¶ 1 de Março de 2021
Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo, que se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens, depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua presunção e reconheceram a sua insignificância. (...) Quando perguntaram ao homem mais sábio que já existiu o que ele sabia, ele respondeu que a única coisa que sabia era que nada sabia. A sua resposta confirma o que se diz, ou seja, que a mais vasta parcela do que sabemos é menor que a mais diminuta parcela do que ignoramos. Em outras palavras, aquilo que pensamos saber é parte -- e parte ínfima -- da nossa ignorância.
Michel de Montaigne, in 'Ensaios'