¶ 30 de Abril de 2022
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de abril 2022
¶ 30 de Abril de 2022
Proximidade
Como saber a distância entre nós
medi-la em passos
em figuras que andam entre nós
quais almas vacilantes
Quanto levará minha carta
a te alcançar
enquanto respiramos
lado a lado
Por mais que se estenda a vizinhança
o eterno
é a distância
que mede todo amor
Espero tua palavra
e não sei de que lado
chegar-te ao coração
ou dar ao coração maior espaço
proteger-te do vento
ou abandonar-te ao vento
e fazer de sua rajada
a tua rajada
E o que fazer sob o sol –
como reter nossas sombras
que a noite mistura
em uma única sombra
qualquer que seja o alguém
ao nosso lado
Viatcheslav Kupriyanov, trad. Aurora Fornoni Bernardini
¶ 29 de Abril de 2022
O canto de Odisseu
Quando meu navio se atraca ao cais,
Comigo irá sair uma canção,
Que antes do mar ninguém ouviu,
E onde irá competir com o chamado das sereias.
Nela há somente aquosos sons vocálicos,
Que soam assim quando mal se transpõem
Da língua da errância à dos atraques:
Amo-te com o grito rouco das gaivotas,
Com o grito das águias voando ao cheiro figadal de Prometeu ,
Com o silêncio-mil-faces das tortugas,
E o silvante piar dos cachalotes, querendo se parecer com um rugido,
E a pantomima tentacular dos polvos,
Por quem todas as algas se arrepiam.
Amo-te com todo meu corpo saído do oceano,
Com seus rios que afluem ao Amazonas e ao Mississipi,
Com os desertos que se imaginam mares,
Ouves como sua areia se infiltra em minha garganta ressecada.
Amo-te com coração, pulmão, pupila,
Amo-te com a crosta terrestre e o céu estrelado,
A queda das cascatas e a conjugação dos verbos,
Amo-te com a invasão da Europa pelos hunos,
A Guerra dos Cem Anos e o jugo dos mongóis,
O levante de Espártaco e a Grande Migração dos povos,
Com a coluna de Alexandre e a Torre de Pisa,
E a corrente do golfo que aquece o Polo Norte.
Amo-te com o pé da letra da lei da gravidade,
E com a condenação à pena capital,
Pena de morte pela queda eterna
Em teu triângulo sem fundo das Bermudas.
Vyacheslav Glebovich Kupriyanov, trad. Aurora Fornoni Bernardini
¶ 29 de Abril de 2022
o seu voo
o seu voo não reside na anatomia
entre penas e ossos mais leves
pressentes um ponto onde o choupo
toca o céu que são andorinhas
um dia inteiro de verão na colina beg tal
o trigo inquieto no prado que floresce entre
os caules o teu lugar de vento audível
é dia eu guardo a noite dentro nunca
esqueceria mais do que hoje haverá
um dia em que este sussurro
das árvores falte ai! pássaro que na sua roda
escreveu enigmas levado pela terra
desconhecido assenta ante ti mais
algumas plantas e eu como limite sonho
que já não consigo distinguir
os prados.
Anja Kampmann
¶ 28 de Abril de 2022
campos, abertos a qualquer luz
como se estivessem a delinear os seus contornos
uma e outra vez
assegurando-se da sua posição, como se
nada mais houvesse do que a sua posição
a serenidade com a qual se juntam as cores
dentro de riscas, ângulos, quadrados inclinados
sem profundidade,
como uma coisa temporária
verniz, que arrancas com uma unha
a imagem que temos um do outro,
sem perceber porquê.
Anja Kampmann, trad. Carina Goulart
¶ 28 de Abril de 2022
nos dias a seguir
Ele foi-se embora no ano passado
nos dias a seguir
viste por vezes sombras nos ramos dos galhos
e o mar
trazia para terra ossos de baleia cujo centro secreto
ele procurava
Uma demolição constante como o negro enquanto parte
do asfalto claro tracejado ou
digamos pedras, dançarinos mais pequenos
impossíveis de desembaraçar
o mosaico do tempo ou
digamos padrões que um enxame de gralhas
forma no céu
ou digamos Novembro e uma luz mais fraca
ou digamos flocos de fôlego e recordação
um eterno recuo
como o chinês no parque de Paris
digamos a vinha junto às casas
os pardais, as suas penas, a anatomia de uma pena de voo
num dia em inícios de Outono o centro
de cada ruído
que nos atravessa.
Anja Kampmann, trad. Ângela Fernandes
¶ 27 de Abril de 2022
Poética
Fechar a tampa do abrigo
e respirar
com serena convulsão
lançando o grande dirigível da escrita
depois retesar o arpão
e espremer o choco polvo
seus tentáculos tensos
na placa marmórea
ou na balança
é um negócio violento,
a testa escreve-se, um mundo progride,
decanta-se a bolha do nível,
esgaça-se a gaze
depois da fenomenologia dos petroleiros
a refinaria,
o guarda-nocturno de olhos
na trovoada e solidão
no monitor.
Daniel Jonas
¶ 27 de Abril de 2022
O meu poema tem destas coisas
O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.
O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali distendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo
quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.
Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica a li a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.
Daniel Jonas
¶ 26 de Abril de 2022
Trabalho e trabalho
Trabalho e trabalho
para dar à luz um pai
na minha solidão de depauperado
arado que nada sulca
porque como um comboio a que faltaram carris
prévios ao meu arado são seus sulcos.
Sou um filho circular. Como um signo
zodiacal sou um filho circular, requer o que faço
aquilo em que me movo
que é aquilo em que me movo
o que faço e como fazê-lo
se não tenho já em que me mova? O que faço
é o que me fez.
Sou comboio e arado e um rodado
sem discos. Sem paralelo em círculos
rotunda tristeza propago
de vertiginosa incubação de vórtices
que ajudo a solidificar: outra vez a sólida
solidão: é fácil a primeira imagem do comboio:
insta à compaixão. E são pesados os bois
circulares que o meu arado
entontece, em vão o rodado
sem discos. Quanto pesarão
bois entontecidos? Como ser pai
quando se é filho?
Daniel Jonas
¶ 25 de Abril de 2022
Resistência à teoria
Eu ficarei à espera de que as uvas
das minhas videiras
amadureçam
à luminosidade da palavra
dia
Daniel Jonas
¶ 25 de Abril de 2022
Tudo é breve
Tudo é breve: um deus,
o plâncton, o ferro.
O meu poema é uma miséria
comparado com o teu nome
no edital.
a saída dos operários da fábrica,
a grande depressão
dos trinta anos:
Eu bebo
porque se não beber
não conduzo
este corpo a casa.
Daniel Jonas
¶ 24 de Abril de 2022
Esta manhã encontrei o teu nome
Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.
Maria do Rosário Pedreira
¶ 23 de Abril de 2022
O Esplendor
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!
Álvaro de Campos
¶ 22 de Abril de 2022
O coração do poema
¶ 21 de Abril de 2022
In those years
In those years, people will say, we lost track
of the meaning of we, of you
we found ourselves
reduced to I
and the whole thing became
silly, ironic, terrible:
we were trying to live a personal life
we could bear witness to
But the great dark birds of history screamed and plunged
into our personal weather
They were headed somewhere else but their beaks and pinions drove
along the shore, through the rags of fog
where we stood, saying I
Adrienne Rich
¶ 20 de Abril de 2022
A palavra é uma estátua submersa
¶ 19 de Abril de 2022
Do humor
Compreendi então que, para um homem como ele, um homem essencialmente melancólico, para quem o mundo era sobretudo uma fonte de angústias e desilusões, o humor era uma coisa não apenas bela como também necessária: contar uma boa piada podia proporcionar um momento — fugaz, mas maravilhoso — em que a vida ganhava sentido e deixava de aparecer arbitrária, caótica e impenetrável.
Jonathan Coe
¶ 19 de Abril de 2022
Se vai tentar
Se vai tentar
siga em frente.
Senão, nem comece!
Isso pode significar perder namoradas
esposas, família, trabalho…e talvez a cabeça.
Pode significar ficar sem comer por dias,
Pode significar congelar em um parque,
Pode significar cadeia,
Pode significar caçoadas, desolação…
A desolação é o presente
O resto é uma prova de sua paciência,
do quanto realmente quis fazer
E farei, apesar do menosprezo
E será melhor que qualquer coisa que possa imaginar.
Se vai tentar,
Vá em frente.
Não há outro sentimento como este
Ficará sozinho com os Deuses
E as noites serão quentes
Levará a vida com um sorriso perfeito
É a única coisa que vale a pena.
Charles Bukowski
¶ 18 de Abril de 2022
dizer o que é amor
saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;
e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;
tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,
e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.
Nuno Júdice
¶ 17 de Abril de 2022
Uma pergunta numa cabeça
A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não acabarem).
Esta certeza tive-a hoje ao entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar ao balcão;
eu perguntei: «Que fez algum poeta por este senhor?»
E a pergunta afligiu-me tanto
por dentro e por fora da cabeça
que tive que voltar a ler toda a poesia
desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça. -- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? --
Manuel António Pina
¶ 16 de Abril de 2022
Pouco não me serve
Sou composta por urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas.
Entupo-me de ausências,
Esvazio-me de excessos.
Eu não caibo no estreito,
eu só vivo nos extremos
Pouco não me serve,
médio não me satisfaz,
metades nunca foram meu forte!
Todos os grandes e pequenos momentos,
feitos com amor e com carinho,
são pra mim recordações eternas.
Palavras até me conquistam temporariamente...
Mas atitudes me perdem ou me ganham para sempre.
Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.
Clarice Lispector
¶ 15 de Abril de 2022
a única espécie de amor
Ao longo da minha vida não amei nenhum povo e nenhuma colectividade: nem o povo alemão, nem o povo americano, nem o povo francês, nem a classe operária (...). Amo unicamente os meus amigos e a única espécie de amor que conheço é o amor pelas pessoas.
Hannah Arendt
¶ 14 de Abril de 2022
Os primeiros encontros
cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.
Arsenii Tarkovskii
¶ 13 de Abril de 2022
a mesma canção
A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.
Albano Martins
¶ 13 de Abril de 2022
A memória
A memória é uma costureira e, não bastasse isso, das cheias de capricho. A memória conduz a sua agulha para fora e para dentro, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem em seguida nem o que virá depois. Assim, o ato mais corriqueiro do mundo pode agitar milhares de fragmentos discrepantes, desconectados, ora acesos, ora apagados, subindo e flutuando e descendo e oscilando...
Virginia Woolf
¶ 12 de Abril de 2022
Do brilho
Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.
Herberto Helder
¶ 11 de Abril de 2022
Sílabas
Sílabas.
O álcool de Dezembro é frio e rouco.
O cigarro amarga. É um cigarro clínico.
Sílabas.
Com sílabas se fazem versos.
O tampo da mesa é liso.
Uma colher é uma forma complexa
familiar e deliciosa.
Um copo é nítido
como um criado sem servilismo.
Uma mulher condensa-se
no olhar do poeta.
Um corpo. Duas sílabas.
O dinheiro à justa. A gola da gabardina
para tapar a nuca
e os ouvidos.
Sílabas.
António Ramos Rosa
¶ 10 de Abril de 2022
the more loving one
Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.
How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.
Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.
Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.
W.H. Auden
¶ 9 de Abril de 2022
O Amor nos Tempos de Cólera
Pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte.
Gabriel García Márquez
¶ 9 de Abril de 2022
Sempre
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
[...] Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
Fernando Pessoa
¶ 8 de Abril de 2022
Do poema de amor
En el bus ves por dónde vas E.M.T. De Madrid El poema de amor debe tener previsto el transcurso futuro de los astros pero también el vocabulario de la derrota y la gloria muy simple del minuto. Debe tener prevista la palabra Albertur sólo porque está escrita en el costado del autobús nocturno que te devuelve a casa. Debe decir la periferia urbana, aceptar lo que ve por donde va, y desde nuestros labios convertirse en oda a las ciudades encendidas. Debe tener previstos los fracasos, toda nuestra pobreza, el miedo a que se quiebre nuestro amor extramuros. El poema de amor debe saber que somos iguales, y por tanto debe incluir tu nombre y mi nombre, de la misma manera que mi nombre incluye el tuyo. Así no diré que Petrarca no nos sirve. Diré que no nos basta. Nuestro fuego sucede más acá de los límites del mundo. Si el ciprés y la lluvia tienen la misma forma, no quiero ser oscuro, ni pobre de aventura. Juan Antonio González Iglesias
¶ 8 de Abril de 2022
Do amor
El amor no quiere ser agradecido ni quiere ser compadecido. El amor quiere ser amado porque sí, y no por razón alguna, por noble que esta sea. Miguel de Unamuno
¶ 6 de Abril de 2022
Da liberdade
A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida. Miguel de Cervantes
¶ 5 de Abril de 2022
a tua ausência
Hão-de erguer-se entre o meu amor e eu
trezentas noites quais trezentos muros
e o mar será magia entre nós dois.
Apenas haverá recordações.
Oh tardes merecidas pela pena,
noites esperançadas ao olhar-te,
campos do meu caminho, firmamento
que vejo e vou perdendo...
Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes.
Jorge Luis Borges
¶ 5 de Abril de 2022
O mundo é grande
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade
¶ 4 de Abril de 2022
É verdade?
E tudo isto é verdade,
Meu querido amigo?
Que a luz do relâmpago nos meus olhos
Faz as nuvens do teu coração explodirem e arderem,
É verdade?
Que os meus doces lábios são vermelhos como uma jovem e
ruborizada noiva,
Meu querido amigo,
É verdade?
Que uma árvore do paraíso floresce dentro de mim,
Que os meus passos soam como vinas debaixo de mim,
É verdade?
Que a noite derrama gotas de orvalho quando me vê,
Que a alvorada me rodeia com a luz das delícias,
É verdade?
Que o toque da minha face quente intoxica a brisa,
Meu querido amigo,
É verdade?
Que a luz do dia se esconde na escuridão do meu cabelo,
Que os meus braços abrigam a vida e a morte no seu poder,
É verdade?
Que a terra pode ser embrulhada na extremidade do meu sari,
Que a minha voz faz o mundo calar-se para me ouvir,
É verdade?
Que o universo é apenas eu e aquilo que me ama,
Meu querido amigo,
É verdade?
Que só por mim o teu amor tem estado à espera
Ao longo de mundos e eras, desperto e errante,
É verdade?
Que a minha voz, olhos, lábios te trouxeram o consolo,
A dado momento, do ciclo da vida após a vida,
É verdade?
Que tu lês na minha suave fronte a infinita Verdade,
Meu querido amigo,
É verdade?
Rabindranath Tagore, trad. José Agostinho Baptista
¶ 3 de Abril de 2022
Que doce canção
Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua? Como hei-de
elevá-la acima de ti, até outras coisas?
Ah, como gostaria de levá-la
até um sítio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.
Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.
A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?
Que doce canção.
Rilke
¶ 3 de Abril de 2022
alguma solidão
Jamais te ofertes
entregadamente
aos outros:
abriga para ti
alguma solidão.
Albano Martins
¶ 2 de Abril de 2022
Perdoa
Perdoa, não sabia que cantavas
Em sossego, silenciosamente. Neste calor
é preciso beber água gelada; também convém
não adorar ídolos, por exemplo a imagem
que aí trazes de ti e te atormenta
(ou me atormenta a mim?).
Outros exemplos incluem jardins de babilónia,
Erupções do etna, o efeito
afrodisíaco do diamante,
as ciências da educação.
Vou-me sentar aqui, respirar até doer
as coisas possíveis nunca reais,
aprender, nó a nó, como te soltas;
Vamos cair num poço, sem
bússola e pára-quedas, vamos ser o primeiro
amor a dois no mundo.
António Franco Alexandre