Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de julho 2022


31 de Julho de 2022

Wherever there is drama

In literature, when a storyline involves victim and a persecutor, we call it a drama. In life, most acts of aggression or complaint (which are two sides of the same coin: the emotional currency of existential malcontentment), most tantrums thrown by otherwise reasonable adults, most blamethirsty fingers pointed at some impartial reality, involve the self-victimization of drama. People prone to drama have not only cast themselves as victims of a perpetrator in a plot, but have tacitly conceded that there is a plot, which presupposes a playwright — some external entity scripting the story in which they feel done unto. Wherever there is drama, there is a deficiency of self-respect and too shallow a well of self-knowledge.

Maria Popova


30 de Julho de 2022

E agora cai a noite de Verão

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo.
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde… em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.
E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.

Rainer Maria Rilke, trad. Maria João Costa Pereira


30 de Julho de 2022

Leonard Campbell Taylor



30 de Julho de 2022

Eu gosto das palavras

Eu gosto das palavras e do canto
E dos ecos que trazem à lembrança,
Dessas canções de frança e aragança
Que são só sons que cobrem, como um manto,
O que têm que cobrir, porque, entretanto,
Já há, profissional, uma ordenança
A recolher em fichas, sem parança,
O tom, o cheiro, o muco, do seu pranto
Que cante, e dance, e viva, e morra, e vibre,
Que se desdobre em nervos e minutos,
E seja para sempre eterno e livre
O grito que se ergueu irresoluto
Desse sítio onde o corpo se coíbe
E súbito triunfa do seu luto.

Manuel Resende


30 de Julho de 2022

O futuro?

Sabes que não tens nenhum poder sobre o teu destino.
Porque te causa ansiedade a incerteza do amanhã?
Se és um sábio, goza o momento actual.
O futuro? Que te reservará?

Omar Khayyam


29 de Julho de 2022

Edmund Dulac



29 de Julho de 2022

Agora conta

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás se fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

Chico Buarque de Hollanda


29 de Julho de 2022

Mantendo as coisas inteiras

Num campo
eu sou a ausência
de campo.
É sempre
este o caso.
Onde quer
que vá
sou aquilo que falta.
Quando caminho
aparto o ar
e sempre
o ar move-se
de forma a preencher o espaço
onde o meu corpo esteve.
Todos temos motivos
para nos movermos.
Eu avanço
para manter as coisas inteiras

Mark Strand, trad. Bruno M. Silva


28 de Julho de 2022

Edmund Dulac



28 de Julho de 2022

Sonho de uma noite de verão

Há quem diga que todas as noites são de sonhos.
Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão.
No fundo, isto não tem muita importância.
O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos.
Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.

William Shakespeare


27 de Julho de 2022

Mas a noite existe

Sem dizer fogo – vou para ele.
Sem enunciar as pedras, sei que as piso
– duramente, são pedras e não são ervas.
O vento é fresco: sei que é vento,
mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento.
Tudo o que eu sei, já lá está,
mas não estão os meus passos e os meus braços.
Por isso caminho, caminho porque há um intervalo
entre tudo e eu, e nesse intervalo,
caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos
há um intervalo também:
então invento os meus passos
e o meu próprio caminho.
E com as palavras de vento e de pedra,
invento o vento e as pedras,
caminho um caminho de palavras.
Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim.
E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe.
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.

António Ramos Rosa


26 de Julho de 2022

Edmund Dulac



26 de Julho de 2022

sem resgate

Não assistir ao declínio da luz.
As imagens do mundo
perdem-se numa eternidade
sem resgate

Luís Quintais


25 de Julho de 2022

Suponhamos

Suponhamos que nada se sucede como esperavas.
Não te casas, não tens filhos,
o mistério não se acumula
e à tua volta cresce um dissimulado
vazio
a que te habituaste com os anos,
como água
que esfria em torno do teu corpo,
do corpo dos mortos, das flores de plástico.
Logicamente envelheces
e entendes necessário o ódio
para tamanha solidão.
No suceder das noites
os copos estalam sem ruído
por corredores que nunca atravessaste,
por cobardia ou conveniência,
mas que talvez ainda esperem,
como os rios esperam os suicidas,
os teus pés atravessando-os
despidos de súbito de todo o abandono.
E lanças a prece a um deus
que talvez permanecesse
desde a infância,
mas que sem saberes lá ficou
espiando altares derrubados
pela luz de uma certa clareza
que a esta hora te falta.
Os convidados
deixam também eles de aparecer.
A festa agora pertence-te,
e já te podes olhar dentro de todo este vazio –
já podes aclarar a voz com que dirás à morte
o teu nome.


25 de Julho de 2022

Goya



24 de Julho de 2022

Esqueci-me dos lábios que beijei

Esqueci-me dos lábios que beijei, e onde, e porquê,
Esqueci-me, e que braços pousaram sob
A minha cabeça até de manhã; mas a chuva
Está cheia de fantasmas esta noite, que batem e suspiram
Contra o vidro à espera de uma resposta,
E no meu coração agita-se uma dor muda
Pelos homens esquecidos que não voltarão
A lamentar-se à meia noite com um gemido.
Eu sou como a árvore que no inverno se sustenta,
E não sabe que pássaros a abandonaram um a um,
Mas sabe que os seus ramos estão mais silenciosos agora:
Não sei que amores vieram e se foram,
Apenas sei que o verão cantou em mim
um pouco, e que agora não canta mais.

Edna St. Vincent Millay, trad. Bruno M. Silva


23 de Julho de 2022

ninguém é

também não sou daqui
mas ninguém é
somos todos peregrinos
nem é isso o que mais interessa
às vezes percorro
inóspitos caminhos da alma
e da memória
para me encontrar contigo
e até hoje lá estás tu paciente
à minha espera

Manuel Afonso Costa


23 de Julho de 2022

Cartas a um jovem poeta

Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação.

Rainer Maria Rilke


22 de Julho de 2022

Leonard Campbell Taylor



22 de Julho de 2022

Chuva

Acordei esta manhã com
uma urgência terrível de ficar na cama
a ler. Tentei contrariar um pouco.
Depois olhei pela janela a chuva.
E desisti. E entreguei-me completamente
à manhã chuvosa.
Viveria eu de novo toda a minha vida?
Cometeria de novo os mesmos erros imperdoáveis?
Sim, se me dessem uma pequena oportunidade. Sim.

Raymond Carver, trad. Bruno M. Silva


21 de Julho de 2022

tanto faz

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

Al Berto


19 de Julho de 2022

Charles Gray



19 de Julho de 2022

Rubaiyat

Volte em minha voz a métrica do Persa
A lembrar que o tempo é a diversa
Trama de sonhos ávidos que somos
E que o secreto Sonhador dispersa.
Volte a afirmar que é a cinza, o fogo,
A carne, o pó, o rio, a fugidia
Imagem de tua vida e de minha vida
Que lentamente se nos vai de logo.
Volte a afirmar o árduo monumento
Que constrói a soberba é como o vento
Que passa, e que sob o olhar inconcebível
De Quem perdura, um século é momento.
Volte a advertir que o rouxinol de ouro
Canta só no sonoro
Ápice da noite e que os astros
Avaros não prodigam seu tesouro.
Volte a lua ao verso que a tua mão
Escreve como torna no temporão
Azul a teu jardim. A mesma lua
Desse jardim há de te procurar em vão.
Sejam sob a lua das ternas
Tardes teu humilde exemplo as cisternas,
Em cujo espelho de água se repetem
Umas poucas imagens eternas.
Que a lua do Persa e os incertos
Ouros dos crepúsculos desertos
Voltem. Hoje é ontem. És os outros
Cujo rosto é o pó. És os mortos.

Jorge Luís Borges


19 de Julho de 2022

Redundâncias

Aceito que os dias passem tão iguais,
no que não dão.
Com alguma moléstia de alma, que ainda guardo: aceito.

Aceito a falta de talento à altura dos que mais admiro
(de Cervantes a tantos outros seres dados à Ciência e ao oblíquo,
já sem falar de vários pais de filhos e de vários filhos de alguns pais).
Aceito não ter um metro e noventa e quatro ou a elegância de um póster.
Aceito (com indesmentível pesar) não constar dos recordes da sexualidade prática.
Aceito (chateado, mas não tanto) não ser imbatível nos matraquilhos
(nem sequer consegui ser o maior campeão do mundo de xadrez, no universo).

Aceito.

Aceito não ser o maior trabalhador de todos os tempos,
nem sequer o mais pontual.

Aceito que a vida seja o que nunca foi e nunca será.
E aceito que não sou (no perto e no longe)
o mais tremendo dos injustiçados
(há uma certa nobreza em dizê-lo, e aceito que tem a mesma os seus limites).

Não me peçam, porém, sorrisos ou palavras contentes
(com três ou quatro sílabas, por exemplo).

A minha cara é a de um monstro
de olhos azuis.

Rui A.


17 de Julho de 2022

Leonard Campbell Taylor



17 de Julho de 2022

Acorda, alma

Acorda, alma.
Não sei onde estás,
onde te escondes,
mas acorda, por favor,
ainda estamos juntos,
o caminho ainda está à nossa frente,
uma tira luminosa de madrugada
será a nossa estrela.

Adam Zagajewski, trad. Bruno M. Silva


16 de Julho de 2022

Elogio da felicidade III

Em diversas ocasiões, tenho dito que o bem primário mais importante talvez seja o do respeito por si próprio.

John Rawls


16 de Julho de 2022

Sines



14 de Julho de 2022

Uma pena. Nós éramos uma invenção tão boa

Eles amputaram
As tuas coxas das minhas ancas.
A meu ver
São todos cirurgiões. Todos eles.
Eles desmantelaram-nos
Um do outro.
A meu ver
São todos engenheiros. Todos eles.
Uma pena. Nós éramos uma invenção
Tão boa e terna.
Um avião feito de homem e mulher.
Asas e tudo.
Pairávamos um pouco sobre a terra.
Nós até voávamos um pouco.

Yehuda Amichai, trad. Bruno M. Silva


14 de Julho de 2022

Leonard Campbell Taylor



14 de Julho de 2022

Elogio da Felicidade II

A certeza da impossibilidade de que o seu gosto e a sua paixão voltassem, que sei de sobra que não é o natural, levou o meu coração ao sentimento aprazível da amizade; e este sentimento, juntamente com a paixão pelo estudo, conseguiu fazer-me feliz.

Madame du Châtelet


14 de Julho de 2022

em modo suspenso

Me disse nos meus braços você parece
um menino eu disse nos seus braços
eu sou um menino eu podia ter dito
trago pela mão um girassol um livro
um violino eu devia ter dito eu não disse
sou um cesto tecido com seus cabelos
sou o peixe vermelho no aquário
de Matisse eu diria ainda mas
deixei que só a respiração dissesse
que eu era a presença longínqua da maresia
por entre os pinheiros de Curitiba
um menino sim um grão de mostarda
um sobrado em Braga branco e branco
eu despertava e Amsterdã sob a neve
parecia mais pequenina uma sílaba
à espera de uma sílaba que a tarde
trazia entre dentes miúdos tudo
sob o laço prestes a desatar e cair
à maneira de um copo que se parte
mas por ora nada tinha peso nada
era grave e o tempo sem as horas
nunca soube de nós ali onde o mundo
permaneceria daquele modo suspenso
perfeito.

Eucanaã Ferraz


13 de Julho de 2022

Leonard Campbell Taylor



13 de Julho de 2022

A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Stig Dagerman


13 de Julho de 2022

Lente

De tarde tudo começava
e lá fora a elipse do vento
desenhava a casa e circulava
um perímetro maior de desalento
Era como se a poesia me ofuscasse
e o corpo em suspensão se mantivesse
à espera da morte ou regressasse à vida
depois do amor que se fizesse
Era a lente de aumentar essa paisagem
quase familiar mas indiferente
de rostos junto ao teu
Mas a imagem diminui
agora o mundo lentamente

António Carlos Cortez


12 de Julho de 2022

Webb



12 de Julho de 2022

A cidade feliz

Não sei porque não falam disto.
Será porque falar ameaça no hálito tão ténue
a flor lindíssima que o menor sopro mata?
Falando todavia, tudo se suspende;
e que não existe para sempre mesmo depois das palavras?
Cidade ensolarada, fumegante a meus pés:
telhados, vozes, pombas, trepadeiras…
De longe se não vê que toda a gente luta, se
devora e desvairadamente contempla que a sua
flor, lindíssima, resista.
Como, poesia, quando suspenso o tempo,
se cadencia em passos de palavras,
quando a memória, a angústia, a esperança, a própria vida,
se ordenam em cortejo e vêm passando em frente
do olhar que as bebe, de um tremor, de um pranto,
como não dizes também da flor que defendemos?
Será que não é difícil, que não é esquiva,
uma flor que um gesto, o mesmo amor destrói?
Ah fidelidade, coisa humilde, coisa que não basta,
coisa que não vive, como te chamo flor? O Sol e o
ar sobre a cidade passam. Do alto as pombas na
cidade pousam. Como te chamo flor? Por que te
chamo flor? Como até nisto eu posso atraiçoar-te?

Jorge de Sena


11 de Julho de 2022

Tomás Sánchez



11 de Julho de 2022

Som e fúria

Tomorrow and tomorrow and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life's but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

William Shakespeare


11 de Julho de 2022

Elogio da Felicidade I

Limitarmos as nossas preocupações ao que podemos mudar, reconheçamo-lo, não é uma tarefa fácil, mas é a única coisa que nos torna os donos e artífices das nossas vidas. Só desta forma, finalmente, somos o que queremos e escolhemos ser. O que é inevitável é aceite como tal, porque não podemos forçar a natureza das coisas, mas em relação ao que é transformável adaptamo-nos ao que melhor nos convém.

Victoria Camps


11 de Julho de 2022

Leonard Campbell Taylor



11 de Julho de 2022

Que estranho amor

A mais antiga e demorada
frase fala do mar logo de início,
no desejo de habitar
os flancos lentos da sua ondulação.
A narrativa torna-se depois
confusa: entre mastros e muros,
além do vento, corria o medo.
Que estranho amor levou
a fazer da casa um barco?
A cal e a pedra guardam o segredo.

Eugénio de Andrade


10 de Julho de 2022

Lembro-me da música

Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para esse reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo
Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite
Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo

José Tolentino Mendonça


9 de Julho de 2022

Edward Hopper



9 de Julho de 2022

sin ti

Si tienes un hondo penar, piensa en mí
Si tienes ganas de llorar, piensa en mí
Ya ves que venero tu imagen divina
Tu párvula boca que siendo tan niña
Me enseñó a pecar
Piensa en mí cuando sufras, cuando llores
También piensa en mí, cuando quieras
Quitarme la vida, no la quiero para nada
Para nada me sirve sin ti

Luz Casal


8 de Julho de 2022

Eu sei

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão


8 de Julho de 2022

Da autonomia

Que um homem não se deixe corromper ou dominar por coisas externas e apenas se admire a si próprio, confie na sua coragem e esteja preparado para qualquer destino, que seja arquiteto da sua própria vida.

Séneca


8 de Julho de 2022

Marc Chagall



7 de Julho de 2022

a tentação do labirinto

É doce
a tentação do labirinto
assim que o sono chega e se propaga
ao contorno das coisas. Mal as sinto
quando confundo a onda sempre vaga

deste falso cansaço que regressa
ao som da minha estranha e dócil fala
cada vez mais submersa como essa
pequena luz da rua que resvala

plo interior da noite. É quase um sonho
A respirar lá fora enquanto o quarto
se dilui na fronteira que transponho
e afoga a consciência de onde parto

agora sem direito nem avesso
no incerto momento em que adormeço

Fernando Pinto do Amaral


5 de Julho de 2022

Tomás Sánchez



5 de Julho de 2022

Perguntas a ti próprio outra vez

Perguntas a ti próprio outra vez
até quando resiste
a planta venenosa a que ainda chamas
coração__Por quem dobram
os seus últimos sinos? Ainda sabes
morrer todos os dias
para de cada vez ressuscitar
um pouco menos tu? Conseguirás
ser de novo um fantoche
marioneta__boneco articulado
fazendo ressoar aos quatro ventos
essa voz de ventríloquo?
Perguntas a ti próprio se ainda tens
coração__Aprendeste
como pode ser falsa essa ingénua
metáfora__O que existe
é um músculo__O resto
são impulsos eléctricos__fenómenos
da física__Até isso
que dizem ser a alma é hoje apenas
química
laboratório vivo
chama-se por exemplo dopamina
serotonina
moléculas assim__mal doseadas
em ti__nessa mulher__em tantos outros
erros
um albatroz à toa num convés
misfits no deserto do Nevada
gente sempre tão gauche__criaturas
erráticas__errantes__organismos
mutantes__humanóides
que riem choram gritam
fora do tempo cada vez que os seus
corações
batem descompassados sempre um pouco
fora do tom__fora do ritmo__quando
ouves a tua__as suas vozes__esses
sustenidos__bemóis
com um meio-tom a mais__um meio-tom
a menos neste mundo

Fernando Pinto do Amaral


4 de Julho de 2022

Estação relativamente balnear

Alguns chamam-se Ema.
E quando a conversa se esgota
recorrem ao telefone
evitando o silêncio das cigarras
como uma igreja caiada
ao sol exterior
em defesa de uma beata
persignando-se
no negro.
Outros são barulhentos
mas dois minutos depois
arranjam um altercação familiar
e os quatro ou cinco irmãos neutralizaram-se
fraternal e conjugalmente
e o silêncio regressou
às cigarras.
Assim impassível a areia
apesar de pisada.
Num momento ou noutro
tudo será decidido.
E talvez esquecido esteja já.
No expoente da dor o equinócio
da rasura.
As estações sucedem-se
como as vagas.
Parecem repetir-se indefinidamente
mas já morderam o sopé das falésias,
deixaram pedras no lugar da areia,
investem sobre o teu mais velho
e na próxima estação,
se tudo correr bem,
já não o irás encontrar.
As tuas mãos em concha
não chocaram nenhuma Vénus,
tampouco o poderão preservar
e isso é tristeza em linha de montagem.
Qualquer dia é um bom dia para um suicídio.
A dissonância deixará a sua marca.
Uma concha fendida
que procuras desenterrar
das sisudas rochas
como se às conchas
avistasses
a tua mão desirmanada.

Daniel Jonas


4 de Julho de 2022

Bertha Wegmann



4 de Julho de 2022

É mais fácil

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.

Manoel de Barros


3 de Julho de 2022

Da impossível organização do infinito

Vivemos num mundo interdependente onde, por mais fronteiras que se fechem, é inevitável coexistir entre diferentes. O contacto com desconhecidos, de origens, credos, classes, corpos, opções e estilos de vida diversos, é inevitável. Entre e fora de fronteiras. Podem-se criar muros, encerrar portas, desligar TV ou até a Internet, mas ainda assim música, cultura, imigrantes, corpos não normativos ou a voz de negros ou mulheres não se calarão em nome da dignidade e igualdade. O que há a fazer é aprender a viver com diferenças, e a desfrutar delas, se tivermos estratégias para uma coabitação o menos desigual possível, onde nos possamos entregar à amplitude do existir e à riqueza que advém daí.

Encerrados em casulos, criando uma ilusão de protecção, existindo apenas na companhia de semelhantes, não nos esforçando por traduzir outras formas de estar, maior será a dificuldade em alcançar modelos de coexistência. Na sofreguidão de termos sempre a casa arrumada segundo uma lógica por nós muito bem definida, temos dificuldade em aceitar a desordem que o existir também comporta. Quando se olha para a imensidão das estrelas, numa noite de céu cintilado, sabemos que nunca conseguiremos aceder a uma explanação total do que vemos. Não vale a pena investir muito tempo na impossível organização do infinito. Mais vale estar quieto. Abrir porta e janelas e deixarmo-nos maravilhar.

Vítor Belanciano


2 de Julho de 2022

Bertha Wegmann



2 de Julho de 2022

Ler

A finalidade de ler não é guardar na memória. Eu esqueço-me do que leio mas encontro-me, ao cair da noite, com ele. O fundamento da minha leitura é a pergunta seguinte:
"Por quanto tempo lês um pequeno período extenso?". Por um segundo, um minuto, um ano, toda esta noite, ou toda esta vida? Ler estende-se pelo tempo e quer o espaço do dia-a-dia para projectar a sua sombra. Ler estende-se por vertentes desconhecidas, e eu leio pouco, mas infinitamente. Desses metais preciosos escolho um metal, e torno-o integralmente minha estrela.

Maria Gabriela Llansol


1 de Julho de 2022

Separação do Corpo III

Corpo, corpo, porque me abandonaste?
“Tomai, comei”, pois sim, mas quando
a química não chega para adormecermos,
a que divindades havemos de nos acolher
senão àquelas últimas do passado soterradas
sob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica,
tanta psicologia e tanta antropologia?
A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço,
e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez
e de amor. Agora podemos calar-nos
sem temer o silêncio nem a culpa
porque já não há tais palavras.

Manuel António Pina