Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de abril 2024


30 de Abril de 2024

Uma Noite

O quarto era pobre e sórdido,
escondido por cima da taberna suspeita.
Da janela via-se a travessa,
suja e apertada. De baixo
vinham as vozes de alguns operários
que jogavam às cartas e faziam uma farra.
E aí na cama modesta, para o povo
tive o corpo do amor, tive os deleitáveis
lábios corados da embriaguez -
corados de uma embriaguez tal, que mesmo agora
que escrevo, depois de tantos anos!,
na minha casa sozinha, de novo me embriago.

Konstandinos Kavafis, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis


29 de Abril de 2024

Pierre Bonnard



29 de Abril de 2024

As democracias são frágeis, mas é isso que as torna grandes

As sociedades democráticas são frágeis precisamente porque estão expostas ao confronto de opiniões e de usos, e isso não é uma crítica, mas algo muito importante. Fragilidade e fraqueza não são a mesma coisa. As democracias são frágeis, mas é isso que as torna grandes. Num sistema democrático as coisas nunca são resolvidas de uma vez por todas; os valores e as normas estão constantemente sujeitos a discussão e a confronto — é isso que dá à democracia a sua vitalidade, que lhe dá a sua capacidade de invenção. Mas é uma faca de dois gumes, vive na ambivalência. Há questões que há 50 anos não eram questões políticas e que se tornaram questões políticas na democracia. A questão das mulheres, a questão da homossexualidade, a questão das formas de resistência ou de reivindicações que não são estritamente institucionais e toda a questão do direito à liberdade de expressão. E isto significa que há temas que não eram questões políticas, mas que agora fazem parte do perímetro dos assuntos públicos, e isso é a invenção da democracia. É muito importante. Claro que há pessoas que são fundamentalmente hostis a este tipo de invenção e que dizem que estes temas são do foro privado, ou que são individuais. Mas eu não penso assim. Penso que são questões fundamentais, que não são apenas questões de organização institucional, mas de democracia enquanto uma forma de sociedade ou como forma de convivência.

Myriam Revault D’Allonnes


28 de Abril de 2024

Da servidão

A servidão voluntária é terrível e é o problema fundamental da política. O problema não é o facto de haver pessoas que querem mandar. O problema é haver pessoas que querem obedecer.

Myriam Revault D’Allonnes


28 de Abril de 2024

É preciso

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles


27 de Abril de 2024

Três poemas

Ouve, tu que não
pensas na tristeza das coisas –
escuta aquele pato selvagem
grasnando sobre um lago gelado
numa aldeia da montanha.
*
Nada restou
daquele vento tingido de flores
que encheu o meu jardim.
Aqueles que agora me visitarem
verão apenas neve caída.
*
Na praia de Matsuo
eu espero na escuridão entre os pinheiros
por alguém que nunca virá –
e como os montes de sal incandescentes,
também eu sou consumido pelo fogo.

Fujiwara no Teika


26 de Abril de 2024

Biblioteca Pessoal

Virgílio não nos diz que os aqueus aproveitaram os intervalos de escuridão para entrar em Troia; fala dos amistosos silêncios da Lua. Não escreve que Troia foi destruída; diz “Troia foi”. Não escreve que um destino foi infeliz; escreve: “De outra maneira o entenderam os deuses”. Para expressar aquilo que agora se chama panteísmo deixa-nos estas palavras: “Todas as coisas estão cheias de Júpiter”. Virgílio não condena a loucura bélica dos homens; diz “o amor do ferro”. Não nos conta que Eneias e Sibila erravam solitários sob a escura noite; escreve: “Ibant obscuri sola sub nocte per umbram!
Não se trata, certamente, de uma mera figura de retórica, do hipérbato: solitários e escura não mudaram o seu lugar na frase; as duas formas, a habitual e a virgiliana, correspondem com igual precisão à cena que representam.

Jorges Luis Borges, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra


26 de Abril de 2024

Joaquín Sorolla



26 de Abril de 2024

pode custar-te tudo

se eu fosse eloquente na tua língua
dir-te-ia
como é
quando alguma coisa difícil te ama,
como é
quando começas a amá-la de volta,
e como isto pode
custar-te tudo.

Lucille Clifton, trad. Bruno M. Silva


25 de Abril de 2024

Dez dias que abalaram Portugal

Exposição com materiais do Arquivo Ephemera


24 de Abril de 2024

Abstracto!

A poesia do abstracto?
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento.
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor!
Uma ideia,
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa,
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura.
Perde,
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia.
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
são propriamente poesia.
Poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.

Vitorino Nemésio


23 de Abril de 2024

Josefina Fernández



23 de Abril de 2024

Eu jogo, eu juro

- Era uma casa - como direi? - absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade

Herberto Helder


22 de Abril de 2024

Sozinha e feliz

Estou a tentar ficar melhor.
Não quero ir de viagem.
Pintei a sala de estar de branco
e tirei a maior parte das minhas coisas.
A sala nunca esteve tão vazia.
Ouço de repente o som de um trovão
e a chuva que subitamente cai lá fora.
Deixo a máquina de escrever e corro
ao exterior de vestido de noite e tiro
o lençol de algodão da corda.
É verão e eu estou a meio
da minha vida. Sozinha e feliz.

Linda Gregg, trad. Bruno M. Silva


20 de Abril de 2024

Joaquín Sorolla



20 de Abril de 2024

Mistanásia ou a consequência de ser indiferente

O que é a indiferença? Etimologicamente, a palavra quer dizer ‘sem diferença’. Um estado estranho e antinatural em que se esbatem as linhas entre a luz e a escuridão, crepúsculo e alba, crime e castigo, crueldade e compaixão, bom e mau.

Elie Wiesel


19 de Abril de 2024

capitão pirata

Sei de um capitão pirata,
que é dono de um verde mar,
que tem seu barco de prata,
mas deixou de navegar.

Que se enamorou da terra,
que se entregou à prisão,
e entre quatro muros erra,
murmurando uma canção.

Cecília Meireles


17 de Abril de 2024

Sonhei que me guiavas

Sonhei que me guiavas
por uma branca vereda,
entre o campo verde,
em direcção ao azul das serras,
em direcção aos montes azuis,
numa manhã serena.
Senti a tua mão na minha,
a tua mão de companheira,
a tua voz de menina no meu ouvido
soando como um sino recente,
como um sino inaudito
na manhã de primavera.
Eram a tua voz, a tua mão,
em sonhos, tão reais!...
Vive, esperança. Quem sabe
o que devora a terra!

Antonio Machado, trad. Bruno M. Silva


16 de Abril de 2024

Joaquín Sorolla



16 de Abril de 2024

Soledades

Andei por tantos caminhos,
abri inúmeras veredas;
naveguei por cem mares,
e atraquei em cem margens.
Em toda a parte vi
caravanas de tristeza,
sombras negras de soberbos
e melancólicos bêbedos,
e pedantes embrulhados em robes
que olham, calam e pensam
que sabem mais, porque não bebem
o vinho miserável das tabernas.
Homens cruéis que caminham
e vão empestando a terra…
E em toda a parte vi
pessoas que dançam e brincam,
quando podem, e trabalham
a pouca terra que lhes coube.
Nunca, se chegam a um lugar,
perguntam onde chegaram.
Quando caminham, cavalgam
às costas de velhas mulas,
e não conhecem a urgência
nem em dias de festa.
Onde há vinho, bebem vinho;
onde não há, bebem água fresca.
São pessoas boas que vivem,
trabalham, passam e sonham,
e num dia como qualquer outro,
se deitam debaixo da terra.

Antonio Machado, trad. Bruno M. Silva


14 de Abril de 2024

Sem título

Ela habitava em lugares desconhecidos,
Junto às fontes de Dove,
Uma donzela que ninguém louvava
E poucos podiam amar:
Uma violeta sobre o musgo das pedras,
Velada do nosso olhar!
Bela como uma estrela solitária
Entre o céu nocturno.
Ela viveu ignorada, e poucos poderiam saber
A hora em que Lucy deixaria de existir;
Mas agora ela está na sua campa, e, oh,
A diferença que isto é para mim!

William Wordsworth, trad. Bruno M. Silva


14 de Abril de 2024

George Hendrik Breitner_3



14 de Abril de 2024

O próprio eu

Todos estes assuntos absorviam o seu pensamento, atraíam o mundo para o interior, para aquele grande espaço caótico que todo o ser humano carrega em si como uma bagagem invisível que se arrasta com ele durante toda a vida, sem saber para quê. O próprio eu.

Olga Tokarczuk


13 de Abril de 2024

Da esperança

A esperança nada mais é do que uma alegria inconstante que emerge da imagem de qualquer coisa futura ou passada, sobre cujo resultado temos alguma dúvida.

Baruch Spinoza


7 de Abril de 2024

George Hendrik Breitner



7 de Abril de 2024

Tudo é preciso

Traça a reta e a curva,
a quebrada e a sinuosa
Tudo é preciso.
De tudo viverás.

Cuida com exatidão da perpendicular
e das paralelas perfeitas.
Com apurado rigor.
Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo,
traçarás perspectivas, projetarás estruturas.
Número, ritmo, distância, dimensão.
Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.

Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitarás.

Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.

Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.

Cecília Meireles


5 de Abril de 2024

A Penosa Descoberta

“Poética”, disse ele, pousando o copo.
Posso não acreditar em nada, nem seguir
o barulho regular dos relógios, continuou
no mesmo tom de voz: a minha vida
aproxima-se do ideal poético superior.
Abriu a janela e recebeu na cara os ventos
do norte. Nada o impedia, agora,
do encontro com a solidão irremediável.
Pousou a bebida no parapeito, agarrou
com a mão direita um ramo de árvore e,
com a mão esquerda fechada no ar, disse
em voz alta: “Poética”, para que todos
ouvissem. No entanto, ao dar-se conta
de que estava só, em plena madrugada,
fechou a janela, fechou o livro que começara
a ler, na véspera, fechou a luz
– e à claridade baça e fria do inverno
sentou-se no chão de madeira, a pensar,
como se não houvesse mais ninguém
naquele mundo.

Nuno Júdice


2 de Abril de 2024

George Hendrik Breitner



2 de Abril de 2024

E todavia

E todavia,
as risadas do melro na gaiola
fazem-me rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto.
Porque eu sou como ele:
alguém me reduziu o tamanho do quintal
até o quintal ficar isto que se vê
– e eu a defendê-lo a golpes de riso.
Como o melro, tal e qual.

A. M. Pires Cabral