As sociedades democráticas são frágeis precisamente porque estão expostas ao confronto de opiniões e de usos, e isso não é uma crítica, mas algo muito importante. Fragilidade e fraqueza não são a mesma coisa. As democracias são frágeis, mas é isso que as torna grandes. Num sistema democrático as coisas nunca são resolvidas de uma vez por todas; os valores e as normas estão constantemente sujeitos a discussão e a confronto — é isso que dá à democracia a sua vitalidade, que lhe dá a sua capacidade de invenção. Mas é uma faca de dois gumes, vive na ambivalência. Há questões que há 50 anos não eram questões políticas e que se tornaram questões políticas na democracia. A questão das mulheres, a questão da homossexualidade, a questão das formas de resistência ou de reivindicações que não são estritamente institucionais e toda a questão do direito à liberdade de expressão. E isto significa que há temas que não eram questões políticas, mas que agora fazem parte do perímetro dos assuntos públicos, e isso é a invenção da democracia. É muito importante. Claro que há pessoas que são fundamentalmente hostis a este tipo de invenção e que dizem que estes temas são do foro privado, ou que são individuais. Mas eu não penso assim. Penso que são questões fundamentais, que não são apenas questões de organização institucional, mas de democracia enquanto uma forma de sociedade ou como forma de convivência.
A servidão voluntária é terrível e é o problema fundamental da política. O problema não é o facto de haver pessoas que querem mandar. O problema é haver pessoas que querem obedecer.
É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.
Virgílio não nos diz que os aqueus aproveitaram os intervalos de escuridão para entrar em Troia; fala dos amistosos silêncios da Lua. Não escreve que Troia foi destruída; diz “Troia foi”. Não escreve que um destino foi infeliz; escreve: “De outra maneira o entenderam os deuses”. Para expressar aquilo que agora se chama panteísmo deixa-nos estas palavras: “Todas as coisas estão cheias de Júpiter”. Virgílio não condena a loucura bélica dos homens; diz “o amor do ferro”. Não nos conta que Eneias e Sibila erravam solitários sob a escura noite; escreve: “Ibant obscuri sola sub nocte per umbram!
Não se trata, certamente, de uma mera figura de retórica, do hipérbato: solitários e escura não mudaram o seu lugar na frase; as duas formas, a habitual e a virgiliana, correspondem com igual precisão à cena que representam.
Jorges Luis Borges, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra
O que é a indiferença? Etimologicamente, a palavra quer dizer ‘sem diferença’. Um estado estranho e antinatural em que se esbatem as linhas entre a luz e a escuridão, crepúsculo e alba, crime e castigo, crueldade e compaixão, bom e mau.
Todos estes assuntos absorviam o seu pensamento, atraíam o mundo para o interior, para aquele grande espaço caótico que todo o ser humano carrega em si como uma bagagem invisível que se arrasta com ele durante toda a vida, sem saber para quê. O próprio eu.
A esperança nada mais é do que uma alegria inconstante que emerge da imagem de qualquer coisa futura ou passada, sobre cujo resultado temos alguma dúvida.
Traça a reta e a curva, a quebrada e a sinuosa Tudo é preciso. De tudo viverás.
Cuida com exatidão da perpendicular e das paralelas perfeitas. Com apurado rigor. Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo, traçarás perspectivas, projetarás estruturas. Número, ritmo, distância, dimensão. Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.
Construirás os labirintos impermanentes que sucessivamente habitarás.
Todos os dias estarás refazendo o teu desenho. Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida. E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.
Somos sempre um pouco menos do que pensávamos. Raramente, um pouco mais.