Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de dezembro 2010


31 de Dezembro de 2010

Argunov Ivan Petrovich

Argunov%20Ivan%20Petrovich.jpg retrato de uma bela camponesa russa, pintado no século XVIII


31 de Dezembro de 2010

Poema

Tu me deixas aqui ou partes comigo? Estou dentro de ti ou é que me chamas? Vives única em mim ou encontro o mundo em ti, contigo? A ordem das coisas em que te amo, onde começa ou acaba? Agora está o silêncio aposentado na rosa do ar e uma árvore perto trina entre os pássaros para sombrear teu sonho ou é meu sonho? É esta uma prisão ou acaso o vasto céu começa aqui onde teus pés tocam juntos a terra, ou é a lua? De pronto entro na luz que já habito e meus olhos se encontram com tua testa. Busco sair de ti e te levo dentro de mim, sem encontrar-te. Sem como, onde ou quando. Cego na luz com meu olhar aberto a tanta multidão de ti que ando extraviado na noite na metade do dia. Isaac Felipe Azofeifa


30 de Dezembro de 2010

Jan Sanders van Hemessen

Hemessen%2C_Jan_Sanders_van_-_Tarquin_et_Lucretia.jpg a bela e casta Lucrécia, à beira do suicídio, forçada por Tarquínio


30 de Dezembro de 2010

Encanto

(de uma Inês para outra, de lindos olhos verdes) Tu me fascinas e encantas como o fazem as sereias com navegantes intrépidos de incauta inocência incrédulos dos perigos. Me atraem teus mistérios e teu canto me seduz para mergulhar em teus domínios me esquecer do que sou, do que fui, para somente — ser — em ti. Inês Romano


29 de Dezembro de 2010

Jan Sanders van Hemessen

janSandersvanHermessen.jpg por uma vez, um olhar masculino marcante


29 de Dezembro de 2010

O Discurso e o Deserto

Com o acre mel do deserto De ouro veste-se o nome Pronunciado na guerra. O sol fecunda as espadas Retesa o arco certeiro E o sete nasce da pedra No silêncio alumioso Da noite mal-assombrada Mistura o grito viçoso Eis a palavra afiada Nos pastos da solidão Dentro do silêncio limpo Voz de toda precisão Janice Japiassu


28 de Dezembro de 2010

A um Mosquito

Invencível mosquito, Émulo do mais livre pensamento, Sem corpo, e de todo espírito, Que deste fim a um tão alto intento, Quando precipitado O céu de Délia acometeste ousado. As portas de diamante Cerradas ao clamor de tanta gente Abriste triunfante, Zombando da esperança impertinente, Que entre temor, e espanto Nunca acabou comigo esperar tanto. Cupido, que inquieta Délia sentiu ferida, Espera, que o sinta, A lança, que tiraste em sangue tinta, Que o peito endurecido É prova das setas de Cupido. Porém de nada disto Te mostres tão soberbo, e presumido, Que podes sem ser visto Passar a mais ferir, sem ser sentido, E para castigar-te, Não ocupas lugar nalguma parte. Foras de amor ferido, Se tivera o teu erro algum desconto, Ou se achara Cupido Aonde a ponta da seta pôr o ponto. Condolação bastante; Pois não picaste a Délia como amante. Buscaste a noite escura Por cometer a Délia mais oculto; Quem medo te afigura, Se não faz o teu corpo nenhum vulto, Pobre de ti tão pobre, Que a mesma luz do Sol te descobre. Hidrópico mosquito, Por beber sangue assim não te condeno, Nem cometes delito, Que com os olhos da alma tão pequeno, Quando apenas te vejo, Que desejas lugar para o desejo. Tanto o saber Divino Trabalhou no teu ser, tâo novo, e estranho, Que Ambrósio Calepino Não tem nome, que imprima o teu tamanho, Porque o diminutivo É mais em ti, que o teu superlativo. Por tradição antiga Deves graças a Deus humilde, e mudo; Pois não falta quem diga, Que de nada te fez, o que fez tudo: Sendo que bem pudera Fazer de ti nada, se quisera. Causas ao Mundo todo Admiração tão grande, que se espanta De ver por novo modo Em corpo tão pequeno traça tanta; Porque o entendimento Fábrica vê em ti sem fundamento. Oh de suprema ideia, Subtil debuxo, amostra primorosa! Porque em ti mais campeia, Que na máquina altiva, e majestosa: Que em fazer-te tão pobre Sua grandeza muito mais descobre. Somente, se se adverte, Dos vidraceiros és bem grande afronta; Pois não têm para ver-te Óculos nenhuns, que cheguem à conta; Pois para ver mosquitos É necessário ter graus infinitos. E vós, que antes do dia Das culpas castigais levando a palma, Por nova tirania, Que fizeste do corpo inferno da alma Se fizeste do corpo inferno da alma: Se por esta vitória Tendes glória, ou vanglória. Entre tantos rigores não durmais, Pois se as almas sem culpas castigais, Para desinquietar Vosso rigor severo, e infinito Basta só o sonida de um mosquito. Jacinto Freire de Andrade


28 de Dezembro de 2010

Jacob Ferdinand Voet

Jacob_Ferdinand_Voet.jpg beleza seiscentista


28 de Dezembro de 2010

Sensatez

Se eu fosse sóbria e séria, se sensata, Do amor, tomava um trago a cada dia, Com calma, em paz, em cálida alegria, Se eu fosse sóbria, sim, Isso eu faria. Seu fosse sóbria e séria, se sensata, Do cultos a verdade aceitaria, Um bom pastor, não Deus pra ser meu guia, Se eu fosse sábia, sim, Eu buscaria. Seu fosse sóbria e séria, se sensata, Casada e gorda, comportada e fria. Um mundo bom, o amor de uma família, Se eu fosse séria, sim, Eu já teria. Mas a paixão não quer a sobriedade, Nem seriedade sabe o coração, E quem busca o calor da divindade Não se consola com religião. E não sou sóbria e séria e nem sensata, Eu meço a hipocrisia dos contentes E ao justo criador nada mais peço Que a luz do Sol, pra me afiar os dentes. Patrícia Clemente


27 de Dezembro de 2010

Dois amantes felizes

Dois amantes felizes não têm fim nem morte, nascem e morrem tanta vez enquanto vivem, são eternos como é a natureza. Pablo Neruda


27 de Dezembro de 2010

Jan Sanders van Hemessen

Jan_Sanders_van_Hemessen.jpg o peso do ouro na Flandres quinhentista


27 de Dezembro de 2010

Poema dos dons

(gentileza de Amélia Pais) Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite esta declaração da maestria. de Deus, que com magnífica ironia deu-me a um só tempo os livros e a noite. Da cidade de livros tornou donos estes olhos sem luz, que só concedem em ler entre as bibliotecas dos sonhos insensatos parágrafos que cedem as alvas a seu afã. Em vão o dia prodiga-lhes seus livros infinitos, árduos como os árduos manuscritos que pereceram em Alexandria. De fome e de sede (narra uma história grega) morre um rei entre fontes e jardins; eu fatigo sem rumo os confins dessa alta e funda biblioteca cega. Enciclopédias, atlas, o Oriente e o Ocidente, centúrias, dinastias, símbolos, cosmos e cosmogonias brindam as paredes, mas inutilmente. Em minha sombra, o oco breu com desvelo investigo, o báculo indeciso, eu, que me figurava o paraíso tendo uma biblioteca por modelo. Algo, que por certo não se vislumbra no termo acaso, rege estas coisas; outro já recebeu em outras nebulosas tardes os muitos livros e a penumbra. Ao errar pelas lentas galerias sinto às vezes com vago horror sagrado que sou o outro, o morto, habituado aos mesmos passos e aos mesmos dias. Qual de nós dois escreve este poema de uma só sombra e de um plural? O nome que assina é essencial, se é indiviso e uno este anátema? Groussac ou Borges, olho este querido mundo que se deforma e que se apaga numa empalidecida cinza vaga que se parece ao sonho e ao olvido Jorge LuisP Borges, trad. Josely Vianna Baptista


26 de Dezembro de 2010

Lorenzo Monaco

800px-Lorenzo_Monaco_Egypt.jpg Lorenzo Monaco, aka Piero di Giovanni, foi pintor em Florença no início do século XV, influenciado pela Escola de Siena


26 de Dezembro de 2010

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte. Alexandre O'Neill


25 de Dezembro de 2010

Jacopo Bellini

412px-Madonna_with_child_EUR.jpg pintado em 1448, já no estilo renascentista, uma Madonna com o seu Filho


25 de Dezembro de 2010

O Céu

(gentileza de Amélia Pais) É o céu esta manjedoura, maior que o próprio céu. O céu é obra das mãos deste recém-nascido. Agatias Escolástico


24 de Dezembro de 2010

Mestre Francke

Master%20Francke%28ca.%201424-1436%29.jpg da vida do pintor pouco se sabe: Mestre Francke nasceu em Niederrhein para 1383 e faleceu em Hamburgo para 1436; este presépio gótico foi um dos trabalhos que (nos) deixou


23 de Dezembro de 2010

Matthias Grünewald

natividade_grunewald.jpg outra natividade, pintada por Mathis Gothart Niethart, conhecido como Matthias Grünewald, um pintor alemão do gótico tardio


23 de Dezembro de 2010

Livros e Flores

Teus olhos são meus livros. Que livro há aí melhor, Em que melhor se leia A página do amor? Flores me são teus lábios. Onde há mais bela flor, Em que melhor se beba O bálsamo do amor? Machado de Assis


22 de Dezembro de 2010

Mestre Esiguo

Esiguo%20El_jpg.jpg um pintor do século XIII de quem se sabe muito pouco


22 de Dezembro de 2010

Sem Título

Quando a tarde caía sobre nós enegrecendo o céu era como se a vida nos fosse tirada por momentos que a crueldade fazia eternos. Mas amanhecia sempre e tínhamos o sol o quintal recheado de cenouras e o balanço na goiabeira insistentes em nos fazer crer que sobrevivíamos. Idalina de Carvalho


21 de Dezembro de 2010

Dissertação

Tenho medo medo de flor do deserto que teme o olhar do jardineiro e ama os olhos do abutre. tenho amor amor de flor que "nasce" no asfalto; amor de peixe que "vive" em aquário; amor de pássaro que "morre" em gaiola; amor de gente que espera outrora. Valdir L. Queiroz


21 de Dezembro de 2010

Daret

Daret%20J-1_jpg.jpg a perspectiva de um flamengo, no dealbar do renascimento


21 de Dezembro de 2010

Solstício

Em 2010, o Solstício ocorre no dia 21 de Dezembro às 23h38m, instante que marca o início do Inverno no Hemisfério Norte. Esta estação prolonga-se por 88,99 dias - até ao próximo Equinócio, que ocorre no dia 20 de Março de 2011 às 23h21m.


20 de Dezembro de 2010

Conrad von Soest

<blockquote>Konrad%20van%20Soest</blockquote>_jpg.jpg um olhar gótico, dentro do estilo suave, no início do século XV


20 de Dezembro de 2010

Poema

Imprimo no poema as minhas letras tatuadas, letras vadias, andarilhas, ciganas sem baralhos. Imprimo a letra da poesia por dentro do ventre e dentro das gavetas, à chave. Do poema, apenas imploro um olhar cheio de desejo, que já sou lua ou nem sei quem sou. Pássaro colorido o poema que voa por sobre os céus da minha cabeça, por sobre o céu da minha boca. E lá vou eu, mastigando as letras, mastigando a palavra que nunca te disse, passando a língua molhada em cada verso de amor ou tristeza, engolindo cada sílaba como se sorve bebida, homem, flor ou criança. Bandida, a poesia que dorme e acorda morta de sono e não me deixa dormir e não me deixa viver e não me deixa. Vem o poema e aperta o gatilho e me fere no peito e me mata, e me deixa mais tonta, mais louca que sou. E te aceito assim, te quero assim, poema de todas as formas como bicho, vida, sol e chão. Valeria Braga


19 de Dezembro de 2010

Fra Filippo Lippi

384px-Fra_Filippo_Lippi_009.jpg uma Madonna em reflexão apreensiva pintada por Lippo Lippi, no século XV


19 de Dezembro de 2010

O Comboio

(gentileza de Amélia Pais) Digamos no final deste sábado que a novidade foi nada se ter passado, que tudo cada vez se volve mais eterno, profundamente chato e sem contornos, e que não é possível um pássaro de fogo entrar-me no escritório, vulgo biblioteca. Sei tão bem as cidades por onde caminhei que bocejo somente em pensar ir até ao aeroporto. Todas essas cidades se resumem à estrada que vai por aqui não me interessa aonde. Mesmo a rapariga que achei bela, a semana passada desfeou-se e as árvores, porque é Outono, perderam todo o brilho que tiveram, e nada disto é digno de citar-se. Portanto regressemos ao princípio. Nada sucede, e o meu coração lança a crédito outro dia que jamais poderei reaver. E quantos dias assim hão-de somar-se em anos idos? Oxalá não me ponha a fazer contas a esse tempo que vou perdendo nem escute o comboio em que, miúdo, pensei fugir de casa para sempre. Nuno Dempster


18 de Dezembro de 2010

Sylvia Nicolas

sylvianicolas.jpg uma bela imagem contemporânea, iniciando a semana que nos leva ao Natal


18 de Dezembro de 2010

Neste sol de sempre

Neste sol de sempre folhas se acastanham e chegam ao chão. Todo instante, toda estação. Eu não. Outono. J.Cardia


16 de Dezembro de 2010

Ferdinand Bol

bol-lady-fan.jpg senhora com leque, à espera de um verão


16 de Dezembro de 2010

Máquina de Fazer Gorjeio

Eu já te disse ele é um passarinho lento toda manhã em nossa janela, não lhe preste qualquer atenção, para não criar nenhuma dependência, pois um dia ele se acabará como tudo nesta cidade se consome, sobretudo, quando se sabe, não é um pássaro, mas um brinquedo de corda, proferindo-se a senha, um estranho gorjeio sai do mecanismo querendo comunicar-se, toda a vez que se vira a manivela. J.B. Sayeg


15 de Dezembro de 2010

Jacob Ferdinand Voet

HortenseManciniJacobFerdinandVoet1675.jpg em 1675, a mesma retratada, Hortense Mancini, mas outro pintor


15 de Dezembro de 2010

Presença

Sou dos que ainda estão presentes e bebem do amor a única ausência. Quantos pedaços de mentiras retenho na viscosidade do meu cuspo? Quantas verdades apaixonadas reclamam ansiosas o esperma das palavras? Nenhumas, talvez, nenhumas... escravizo o silêncio e faço dele o meu mensageiro. Estou presente em tudo ou mais e aí onde me procurarem será a minha próxima ausência. Hélder Muteia


14 de Dezembro de 2010

Sir Godfrey Kneller

Kneller_TheDuchessOfMazarin.jpg Hortense Mancini, a célebre Duquesa de Mazarin, retratada no século XVII


14 de Dezembro de 2010

Haicai

Na estrada deserta, um simples cair de folhas quebrou o silêncio. Aquelas lanternas ziguezagueando nos montes... Quantos vaga-lumes! Abel Pereira


13 de Dezembro de 2010

Albert Edelfelt

Albert%20Edelfelt-a.jpg serenidade fin de siècle


13 de Dezembro de 2010

Porto

(gentileza de Amélia Pais) Havia nos olhos postos o sentido de não vencerem distâncias. Calados, mudos, de lábios colados no silêncio os braços cruzados como quem deseja mas de braços cruzados. Os navios chegavam aos portos e partiam. Os carregadores falavam da gente do mar. A gente do mar dos que ficam em terra. As mercadorias seguiam. Os ventos, dispersos na alma do tempo, traziam as novas das terras longínquas. Segredavam-se em noites e dias a todos os homens em todos os mares e em todos os portos num destino comum. Os navios chegavam ao porto e partiam... Alexandre Dáskalos


12 de Dezembro de 2010

Gerbrand van den Eeckhout

Gerbrand%20van%20den%20Eeckhout%20%281621-1674%29%20Portrait%201670.jpg na idade de ouro da pintura flamenga


12 de Dezembro de 2010

Canto de Azul e de Verde

Canto de azul e de verde e de verde e de azul abertos ao deslumbre dos olhos, regaço ao deslize do corpo. Canto Leste, mais forte, Sudoeste, meiguice em salpico de ilhas e clareza de sol Canto Leste, no entanto, leva os ventos à fonte, da magia e mistério. Sudoeste, cercado de antigos tesouros, dorme paz de almadias caravelas saveiros, e desperta em tumulto; motores e máquinas gargalhando ao passado — Canto azul, verde azul, esteirado de branco, espumado em silêncio ao fermoso das quilhas. Ildásio Tavares


11 de Dezembro de 2010

Diante do mar

Oh, mar, enorme mar, coração feroz de ritmo desigual, coração mau, eu sou mais tenra que esse pobre pau que, prisioneiro, apodrece nas tuas vagas. Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda, eu passei a vida a perdoar, porque entendia, mar, eu me fui dando: "Piedade, piedade para o que mais ofenda". Vulgaridade, vulgaridade que me acossa. Ah, compraram-me a cidade e o homem. Faz-me ter a tua cólera sem nome: já me cansa esta missão de rosa. Vês o vulgar? Esse vulgar faz-me pena, falta-me o ar e onde falta fico. Quem me dera não compreender, mas não posso: é a vulgaridade que me envenena. Empobreci porque entender aflige, empobreci porque entender sufoca, abençoada seja a força da rocha! Eu tenho o coração como a espuma. Mar, eu sonhava ser como tu és, além nas tardes em que a minha vida sob as horas cálidas se abria... Ah, eu sonhava ser como tu és. Olha para mim, aqui, pequena, miserável, com toda a dor que me vence, com o sonho todos; mar, dá-me, dá-me o inefável empenho de tornar-me soberba, inacessível. Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade, Ar do mar!... Oh, tempestade! Oh, enfado! Pobre de mim, sou um recife E morro, mar, sucumbo na minha pobreza. E a minha alma é como o mar, é isso, ah, a cidade apodrece-a engana-a; pequena vida que dor provoca, quem me dera libertar-me do seu peso! Que voe o meu empenho, que voe a minha esperança... A minha vida deve ter sido horrível, deve ter sido uma artéria incontível e é apenas cicatriz que sempre dói. Alfonsina Storni


10 de Dezembro de 2010

Albert Edelfelt

Albert%20Edelfelt-Mascha_Djakoffsky.jpg retrato da bela Maria Hagelstam a.k.a. Marie von Heiroth a.k.a Marie 'Mascha' Sophie Djakoffsky / Diakovsky, pintado em 1899


10 de Dezembro de 2010

Gato

Que fazes por aqui, ó gato? Que ambiguidade vens explorar? Senhor de ti, avanças, cauto, meio agastado e sempre a disfarçar o que afinal não tens e eu te empresto, ó gato, pesadelo lento e lesto, fofo no pelo, frio no olhar! De que obscura força és a morada? Qual o crime de que foste testemunha? Que deus te deu a repentina unha que rubrica esta mão, aquela cara? Gato, cúmplice de um medo ainda sem palavras, sem enredos, quem somos nós, teus donos ou teus servos? Alexandre O'Neill


9 de Dezembro de 2010

Albert Edelfelt

Edelfelt_At_the_door_1901.jpg abrir uma porta é fechar uma janela?


9 de Dezembro de 2010

Hora Tardia

Não falta a cadência dos sentidos ignotos perscrutando as incontáveis horas mortas sobre o véu insondável do tempo esquecido. Não resta a peripécia da mente excitada gozando a possível resposta à esfinge famigerada. Não importam os piscares vítreos dissimulando os afagos, dando corda às batidas no peito. Não há traços da saliva que silenciara os poemas, mortos antes do parto. Não mais o sentido dos corpos, a ilusão do desejo incontido, das mortes pequenas. Não! Findou a vida e transpus o portal da morte, perguntando: por que não aprendi a amar? Alexandre S. Santos


9 de Dezembro de 2010

Bruno Epple

BrunoEppleLaNoviaFeliz4.jpg porque às vezes corre bem...


9 de Dezembro de 2010

chuva acesa no centro do abismo

água, tua música de pele e cheiro fluindo de florações impalpáveis, chuva acesa no centro do abismo, onde flutuam manhãs terra, teus passos tua voz teus ruídos de amor e um gozo além das cordilheiras do sonho tecendo galáxias, vertiginosa raiz ar, teu gesto marinho, olhos feitos do arremesso do mar e a centelha invisível a mover os labirintos do vento, cósmica serpente fogo, teu corpo de medusas e feridas vivas, vulcões, planeta todo luz, talvez paixão, pássaro tatuado nas estrelas, coração Afonso Henriques Neto


8 de Dezembro de 2010

Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza que nem sei de onde me vem, não comia, nem bebia, nem falava com ninguém. Acocorava-me a um canto, no mais escuro que houvesse, punha os joelhos à boca e viesse o que viesse. Não fossem os olhos grandes do ingénuo adolescente, a chuva das penas brancas a cair impertinente, aquele incógnito rosto, pintado em tons de aguarela, que sonha no frio encosto da vidraça da janela, não fosse a imensa piedade dos homens que não cresceram, que ouviram, viram, ouviram, viram, e não perceberam, essas máscaras selectas, antologia do espanto, flores sem caule, flutuando no pranto do desencanto, se não fosse a fome e a sede dessa humanidade exangue, roía as unhas e os dedos até os fazer em sangue. António Gedeão


8 de Dezembro de 2010

Ferdinand Bol

Bol-Young%20Woman%20at%20a%20Window.jpg outra janela, outro rosto à espera, no longínquo século XVII


8 de Dezembro de 2010

Recordação

Eu bem sei Que rodo em muitas esferas E não sei Por onde me levas, poesia. Quando vou, E não encontro ninguém, Tenho medo do que sei: Um filho de sua mãe E seu pai, Ou algum longínquo avó, A quem um poeta sai. Será também o Deus da infância E a árvore sagrada De frutos proibidos, Na fragrância Com que rasguei meus vestidos E não retirei os ninhos... Enchi de rosas a terra E levo nas mãos espinhos. Afonso Duarte


7 de Dezembro de 2010

Albert Edelfelt

edelfelt_450.jpg revendo papeladas, gravuras, esquissos, escritos.


7 de Dezembro de 2010

Transformar

Sobre o despovoado: tapera (rancho espalhado ao mar, barco encalhado em areias límpidas, peixe saciado em vontades) sobre a beleza paira: Itapema (rancho desconsiderado em altos prédios, carro congestionando ruas, peixe desesperado em águas impuras). Pedro Du Bois


6 de Dezembro de 2010

Dante Gabriel Rossetti

Portrait_of_Aflaia_Coronio%28Rossetti%29.jpg perfil de Aflaia Coronio (née Ionides)


6 de Dezembro de 2010

Teu corpo seja brasa

teu corpo seja brasa e o meu a casa que se consome no fogo um incêndio basta pra consumar esse jogo uma fogueira chega pra eu brincar de novo Alice Ruiz


5 de Dezembro de 2010

Elisabetta Sirani

elisabetta%20sirani.jpg bela alegoria


5 de Dezembro de 2010

Final do Dia

No final do dia aproximado ao cansaço trazido dos ofícios não estou presente. Ausentado ao tempo não traduzido, esmaecido nos alvoreceres da noite amanhecido em finais de tardes recompostas minha ausência despercebida em minúcias: a estrada bloqueando a entrada. Pedro Du Bois


3 de Dezembro de 2010

Moebius

moebius-03.gif registo de uma tarde bem passada


3 de Dezembro de 2010

Azuliante

Este poema começa com um homem de tronco nu à sua mesa de trabalho e hiante a esta hora em que de oriente a ocidente se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos e ver no meio do deserto o único o magnífico devorador de rosas a comer um pão enquanto do Oceano resta apenas o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul com raiva azul como a urina violenta dos amantes com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte Choverá muito eu sei choverá muito e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo sobre o tremor de terra em que tu danças na tua roda de cigarros cada vez mais depressa cada vez mais depressa e lento o peixe de plumas de águia letra a letra dá a volta ao mundo dos teus olhos enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo de oriente a ocidente Certas palavras muito duras quando a noite cai não devem ter outra origem sabem tão bem quanto eu porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo são as rosas com que o poeta fala à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante de costas para a luz contra o grande uivo: de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado os segredos de estado as razões de estado a segurança do estado o terrorismo de estado os crimes contra o estado e o equilíbrio do terror de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente Digo nãoEu digo não digo o teu nome que diz não No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore à espera que tu chegues ou passes simplesmente estão os grandes do império com o chapéu na mão para cumprimentar-te Então passas tu com a lua no peito dividindo distribuindo os alimentos passas tu devagar atirando as moedas que os dias não aceitam e gastamos depressa noite mil e uma noites de quem espera Meu amor países pátrias têm todos um nome de letras imundas que não é para escrever Se ainda podes ouvir o búzio da infância ouvirás com certeza o sinal de partir No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis que há mil anos dá a volta ao mundo sou eu o homem que viaja nu porque eu sou o arco-íris e a rosa no trapézio e tu toda a paisagem que atravesso como se fosse de bicicleta como se fosse sílaba a sílaba a primeira frase da terra tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão com a tua máscara de olhar a aurora boreal de me olhares para sempre nua eu a tempestade de coração a coração Roda sórdida da razão cínica e canto de galos depenados vivos que cantam nos intervalos da morte no meu livro de horas deste século está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento sob a forma de um cometa de cauda fascinante que arrastará os amorosos até ao centro do mundo donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal António José Forte


2 de Dezembro de 2010

Notre Dame

catedral_de_notre_dame_gr.jpg alegria maior: passar o testemunho a quem de direito


2 de Dezembro de 2010

Em Paris, de novo

Tombe la neige Tu ne viendras pas ce soir Tombe la neige Et mon coeur s'habille de noir Ce soyeux cortege Tout en larmes blanches L'oiseau sur la branche Pleure le sortilege Tu ne viendras pas ce soir Me crie mon désespoir Mais tombe la neige Impassible manege Tombe la neige Tu ne viendras pas ce soir Tombe la neige Tout est blanc de désespoir Triste certitude Le froid et l'absence Cet odieux silence Blanche solitude Tu ne viendras pas ce soir Me crie mon désespoir Mais tombe la neige Impassible manege Salvatore Adamo, ainda nos idos de 60 do século passado


1 de Dezembro de 2010

Goya

Dona_Isabel_Cobos%28Goya%29.jpg Dona Isabel Cobos De Porcel, pintada no início do século XIX


1 de Dezembro de 2010

Se por acaso...

se por acaso a gente se cruzasse ia ser um caso sério você ia rir até amanhecer eu ia ir até acontecer de dia um improviso de noite uma farra a gente ia viver com garra eu ia tirar de ouvido todos os sentidos ia ser tão divertido tocar um solo em dueto ia ser um riso ia ser um gozo ia ser todo dia a mesma folia até deixar de ser poesia e virar tédio e nem o meu melhor vestido era remédio daí vá ficando por aí eu vou ficando por aqui evitando desviando sempre pensando se por acaso a gente se cruzasse... Alice Ruiz