Arquivo de abril 2021
¶ 30 de Abril de 2021
Sabe como é a morte? A pessoa deita fora o último suspiro, é o espírito que abandona o corpo. O corpo morre completamente, é lixo, mas o espírito sai da boca e mistura-se com o espírito universal. É como os rios, que perdem o seu carácter quando chegam ao mar. Mas fazem parte dele, e ele é igual em toda a parte.
Manoel de Oliveira, citado por Luís Miguel Cintra
¶ 30 de Abril de 2021

¶ 30 de Abril de 2021
Sim eu sei que as manhãs corriam depressa
E as tardes corriam depressa,
Sei que as noites passavam devagarinhas, quase sossegadas.
Havia medos, sim, havia ladrões debaixo da cama
e os lençóis faziam demasiado barulho.
Mas havia o pressentimento de ter pais ou avós por perto
a salvar.
Depois disso há toda uma série de resumos que
(a não ter cuidado)
me fazem velho,
na forma de não querer ser.
Esforço-me por ver morangos a nascer
todas as manhãs do mundo
(mesmo preferindo as nêsperas).
Rui A.
¶ 29 de Abril de 2021
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,
um Poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.
Konstantínos Kaváfis, trad. Jorge de Sena
¶ 29 de Abril de 2021

¶ 29 de Abril de 2021
Correm um para o outro de braços abertos,
exclamam ridentes: Até que enfim! Enfim!
Ambos vestidos com agasalhos de inverno,
gorros de lã,
cachecóis,
luvas,
botas,
mas só para nós.
Porque um para o outro estão nus.
Wisława Szymborska, trad. Teresa Swiatkiewicz
¶ 29 de Abril de 2021

¶ 29 de Abril de 2021
You have had many and great sadnesses, which passed. And you say that even this passing was hard for you and put you out of sorts. But, please, consider whether these great sadnesses have not rather gone right through the center of yourself? Whether much in you has not altered, whether you have not somewhere, at some point of your being, undergone a change while you were sad? ... Were it possible for us to see further than our knowledge reaches, and yet a little way beyond the outworks of our divining, perhaps we would endure our sadnesses with greater confidence than our joys. For they are the moments when something new has entered into us, something unknown; our feelings grow mute in shy perplexity, everything in us withdraws, a stillness comes, and the new, which no one knows, stands in the midst of it and is silent.
Rainer Maria Rilke
¶ 29 de Abril de 2021
Almost all our sadnesses are moments of tension that we find paralyzing because we no longer hear our surprised feelings living. Because we are alone with the alien thing that has entered into our self; because everything intimate and accustomed is for an instant taken away; because we stand in the middle of a transition where we cannot remain standing. For this reason the sadness too passes: the new thing in us, the added thing, has entered into our heart, has gone into its inmost chamber and is not even there any more, -- is already in our blood. And we do not learn what it was. We could easily be made to believe that nothing has happened, and yet we have changed, as a house changes into which a guest has entered.
Rainer Maria Rilke
¶ 28 de Abril de 2021

¶ 28 de Abril de 2021
Eu - adolescente?
Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim,
saudá-la-ia como pessoa que me é próxima,
embora seja, para mim, estranha e distante?
Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa
pela simples razão de termos
a mesma data de nascimento?
Tão poucas semelhanças entre nós,
quiçá, apenas os ossos são os mesmos,
a caixa craniana, as órbitas.
Já que os olhos dela parecem maiores,
as pestanas mais compridas, ela mais alta
e todo o seu corpo revestido
com uma pele lisa, sem mácula.
Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos,
no mundo dela, porém, quase todos estão vivos,
enquanto no meu já não há quase ninguém
deste círculo que tínhamos comum.
Somos tão diferentes uma da outra,
pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes.
Ela pouco sabe -
mas com uma teimosia digna de melhores causas.
Eu sei muito mais -
mas sem nada saber ao certo.
Mostra-me uns poemas,
escritos com letra clara e cuidada,
como já há muito eu não escrevo.
Leio esses poemas e leio.
Bem, talvez este daqui,
se o reduzirmos
e corrigirmos aqui e ali.
O resto nada de bom augura.
A conversa está difícil.
No seu pobre relógio,
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, já é muito mais caro e preciso.
Na despedida nada, um breve sorriso
e nenhuma comoção.
Somente quando se afasta
e, apressada, se esquece do cachecol.
Um cachecol de pura lã,
às riscas coloridas
feito em croché para ela
pela nossa mãe.
Ainda hoje o tenho.
Wisława Szymborska, trad. Teresa Swiatkiewicz
¶ 27 de Abril de 2021
isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?
sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio
e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar
Mário Cesariny
¶ 26 de Abril de 2021

¶ 26 de Abril de 2021
Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.
Há pássaros chilreando no arvoredo,
certamente. E, nas sombras mais densas
e frescas, namorados que se beijam
e se acariciam febrilmente. E crianças
rolando na relva e rindo tontamente.
Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.
O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.
Rui Knopfli
¶ 25 de Abril de 2021

¶ 25 de Abril de 2021
-Meu corpo, que mais receias?
-Receio quem não escolhi.
-Na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
Ao toque leve e ligeiro
O corpo torna-se inteiro,
Todos os outros ausentes.
Os olhos no vago
Das luzes brandas e alheias;
Joelhos, dentes e dedos
Se cravam por sobre os medos...
Meu corpo, que mais receias?
-Receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
De longe, os corpos que vi
Me lembram quantos perdi
Por este outro que terei.
Jorge de Sena
¶ 25 de Abril de 2021
Envelhecer é um comércio triste,
incurável e solitário
como a alopécia.
E o pior é que
nunca consegues dividir
o cordão umbilical esticado
que te liga à juventude.
De repente podes dar contigo
saltando descalço na relva
e pulando em saltos loucos
sobre as alegres nascentes da juventude,
embora realmente estejas sentado numa pedra
apoiando o queixo numa bengala curva
sentindo a osteoartrite rasgar a
marcha dos pés, velhos e pesados.
Hans Børli
¶ 24 de Abril de 2021

¶ 24 de Abril de 2021
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto.
Ruy Belo
¶ 24 de Abril de 2021

¶ 24 de Abril de 2021
Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.
E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.
Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 23 de Abril de 2021
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candeladro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
Mário Cesariny
¶ 23 de Abril de 2021

¶ 23 de Abril de 2021
Tive há pouco genial ideia
(entre várias outras, o que sucede em fases do esqueleto),
em forma de frase, palavras ligadas
a unir o mundo.
Infelizmente, caía uma inesperada chuva de Abril,
e é difícil estar à altura de Abril.
Esta ocorrência científica e demonstrável atrasou regresso a casa, contratempo que remete para
estação mais temperada, e ao nosso alcance, a comunicação de uma ideia que tenho ainda e nos
minutos mais cerca por conta de genial. As palavras escapam, tal como o desejo, as palavras são
pouco discutíveis gémeos pares e ímpares no mínimo do mapa. E sem palavras não há objecto, sem
lei não há dever. E há, sem sombra, ou coisa que se lhe assemelhe, personagens escanifobéticos em
todos os lugares do mundo.
Existe (dizem) quem culpe sem dúvida o esquecimento, e quem fale de matéria seca.
Há ainda os cépticos, essa maravilha da Democracia,
e há os merceeiros.
Prefiro o líquido, e o estado exaltado, por vezes meio-esquecido.
Mesmo se o mundo priva, confesso.
Verdade líquida essa, verdade essencial que pratico e não esqueço.
Condição necessária, mesmo se não bastante e tão bastas vezes adversa (o supracitado princípio da
verdade, entendido como postulado) há demonstração de um génio que o é de tal forma que
impossível será reproduzi-lo, ou fecundá-lo de igual modo. Seja por simplicidade, seja por
sofisticação, seja por outro palavrão digno de o ser.
Uma garrafa faz sempre falta
e os museus bem que podiam ser maiores.
Rui A.
¶ 22 de Abril de 2021
Escrevo-te de perto, como se a mão
te fosse objecto breve aflorado,
como se da rua te chegasse
a certeza pequena para a compra
dos minutos seguintes. De perto
como o sol, como a cigarra.
Como um silêncio cheio
que te viesse aos olhos de manhã
e amar-te fosse a roupa
escolhida ao começar o dia
Pedro Tamen
¶ 22 de Abril de 2021

¶ 21 de Abril de 2021
A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos
(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da provocação. É assim que te faço arder
triunfalmente onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)
Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher
E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços
Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento o silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos
Assobio às pequenas esperanças
Que vêm lamber-me os dedos
Perco-me no teu retrato
Horas seguidas
E ao trote do ciúme deito contas
Deito contas à vida.
Alexandre O' Neill
¶ 21 de Abril de 2021
Se te pertenço, separo-me de mim.
Perco meu passo nos caminhos de terra
E de Dionísio sigo a carne, a ebriedade.
Se te pertenço perco a luz e o nome
E a nitidez do olhar de todos os começos:
O que me parecia um desenho no eterno
Se te pertenço é um acorde ilusório no silêncio.
E por isso, por perder o mundo
Separo-me de mim. Pelo Absurdo.
Hilda Hilst
¶ 20 de Abril de 2021

¶ 20 de Abril de 2021
A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
pelo mundo,
por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
num jardim nocturno,
ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.
Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.
Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.
Não sei caminhos de cor.
Fernando Namora
¶ 19 de Abril de 2021

¶ 19 de Abril de 2021
Sylvia's mother says Sylvia's busy
Too busy to come to the phone
Sylvia's mother says Sylvia's trying
To start a new life of her own
Sylvia's mother says Sylvia's happy
So why don't you leave her alone?
And the operator says forty cents more
For the next three minutes
Please, Mrs. Avery, I just gotta talk to her
I'll only keep her awhile
Please, Mrs. Avery, I just want to tell her goodbye
Sylvia's mother says Sylvia's packing
She's gonna be leaving today
Sylvia's mother says Sylvia's marrying
A fella down Galveston way
Sylvia's mother says please don't say nothing
To make her start crying and stay
And the operator says forty cents more
For the next three minutes
Please, Mrs. Avery, I just gotta talk to her
I'll only keep her awhile
Please, Mrs. Avery, I just...
Sylvia's mother says Sylvia's hurrying
She's catching the nine o'clock train
Sylvia's mother says take your umbrella
'Cause, Sylvie, it's starting to rain
And Sylvia's mother says thank you for calling
And, sir, won't you call back again?
And the operator says forty cents more
For the next three minutes
Please, Mrs. Avery, I just gotta
¶ 19 de Abril de 2021
O corredor, a alcatifa, a mesa
da cozinha, a disposição dos
quartos, a cor dos azulejos,
o branco das paredes a vista
para o muro das traseiras.
As casas que habitámos
ainda nos habitam.
José Mário Silva
¶ 19 de Abril de 2021
Dou-te
um nome de água
para que cresças no silêncio.
Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.
Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)
Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.
Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.
Amor, eu sei que vives
num breve país.
Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.
Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.
Ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.
Ó vida perfumada
cantando devagar.
Enleio-me na clara
dança do teu andar.
Por uma água tão pura
vale a pena viver.
Um teu joelho diz-me
a indizível paz.
António Ramos Rosa
¶ 19 de Abril de 2021

¶ 19 de Abril de 2021
Uma coisa é necessária - aqui
neste nosso mundo díficil
de sem-abrigos e desterrados:
Fixares residência em ti.
Entra pela escuridão
e limpa a fuligem da lâmpada.
Para que as pessoas na estrada
possam entrever uma luz
em teus olhos habitados.
Hans Børli
¶ 18 de Abril de 2021
dou os meus prantos às procelas
para que cessem e me deixem
dou os meus sonhos às estrelas
para que os meus sonhos não se queixem
fico só como o lobisomem
na estrada sem forma e sem fundo
meus sonhos no ar dormem dormem
à espera da manhã do mundo
vê tu se nesta alegoria
descobres porque estou inteiro
e nunca terei agonia
sem fartar meus sonhos primeiro
Mário Cesariny
¶ 18 de Abril de 2021

¶ 17 de Abril de 2021
O esperado fim do mundo já partiu
do seu lugar de origem.
Ouço os remos fenderem a água. Um murmúrio.
Alguma coisa será destruída.
Virá um rosto à proa. Este silêncio
permite imaginar os seus contornos.
Sentar-se-á a meu lado. Será um espelho
onde
de toda a voragem cairão as pétalas.
Ouço os remos. Longe. Ainda há tempo
e um banco na margem.
Egito Gonçalves
¶ 16 de Abril de 2021
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti
até que a dor alegre recomece.
Maria Gabriela Llansol
¶ 16 de Abril de 2021

¶ 16 de Abril de 2021
Se a mulher foi, muitas vezes, comparada à água, é entre outros motivos porque é o espelho em que o Narciso se contempla; debruça-se sobre ela de boa ou de má fé. Mas o que, em todo caso, ele lhe pede é que seja fora dele tudo o que não pode apreender em si, pois a interioridade do existente não passa de nada e, para se atingir, precisa projectar-se num objecto. A mulher é para ele a suprema recompensa porque é sob uma forma exterior que pode possuir, na sua carne, a sua própria apoteose.
Simone de Beauvoir
¶ 15 de Abril de 2021
Já não será
já não
não viveremos juntos
não criarei o teu filho
não coserei a tua roupa
não te terei à noite
não te beijarei ao partir
nunca saberás quem fui
porque é que outros me amaram.
Nunca chegarei a saber
porquê nem como
nem se era a sério
o que disseste que era
nem quem foste
nem o que fui para ti
nem como teria sido
vivermos juntos
amarmo-nos
esperarmos um pelo outro
estarmos.
Já não sou mais do que eu
para sempre e tu
já
não serás para mim
mais do que tu. Já não estás
num dia futuro
não saberei onde vives
com quem
nem se te lembras.
Nunca me abraçarás
como naquela noite
nunca.
Não voltarei a tocar-te.
Não te verei morrer.
Idea Vilariño, trad. Vasco Gato
¶ 15 de Abril de 2021

¶ 15 de Abril de 2021
Quando se escreve, não se pode falar em vez de escrever. O que se passa quando se escreve, nunca se pode dizer. Eu consigo ler uma passagem, mas depressa fico assustada. Sou mais escritora do que vivente, que uma pessoa que vive. Naquilo que vivi, sou mais escritora do que alguém que vive. É assim que eu me vejo.
Marguerite Duras, in "Mundo Exterior"
¶ 15 de Abril de 2021
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis
¶ 14 de Abril de 2021

¶ 14 de Abril de 2021
Não restará na noite uma só estrela.
Não restará a noite.
Morrerei e comigo irá a suma
Do intolerável universo.
Apagarei medalhas e pirâmides,
Os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei da história pó, do pó o pó.
Estou a olhar o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.
Jorge Luís Borges
¶ 14 de Abril de 2021

¶ 14 de Abril de 2021
Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.
Jorge Luis Borges
¶ 13 de Abril de 2021

¶ 13 de Abril de 2021
Sozinho em casa procuro nos armários.
Encontro antigos mapas de estradas,
contratos que venceram, esferográficas
que não escreverão mais cartas, velhas calculadoras
sem pilhas, relógios que o tempo derrotou.
O passado aninha-se no fundo das gavetas
como um rato triste. Vazios, os vestidos pendem
como velhas personagens que nos interpretaram.
Mas de súbito encontro a tua lingerie,
da cor da noite, da areia; fina, com pequenos bordados.
Cuecas, soutiens e meias que desdobro
e que me fazem regressar ao brilhante, embora misterioso,
fundo de amor e sexo: é ele que, de facto,
dá vida às casas, como os faróis e as luzes
de barcos e cafés a um porto ignorado.
Joan Margarit, trad. Miguel Filipe Mochila
¶ 12 de Abril de 2021
Eu não resistirei à tentação,
não quero que de mim possas perder-te,
que só na fonte fria da razão
renasça a minha sede de beber-te.
Eu não resistirei à tentação
de quanto adivinhei nesta amargura:
um sim que só assalta quem diz não,
um corpo que entrevi na selva escura.
Resistirei a te chamar paixão,
a te perder nos versos, nas palavras:
mas não resistirei à tentação
de te dizer que o céu é o que rasa
a luz que nos teus olhos eu perdi
e que na terra toda não mais vi.
Luís Filipe Castro Mendes
¶ 12 de Abril de 2021
Não, a solidão não tem de ser melancólica e triste, de todo. Pode, pelo contrário, estar ligada a uma experiência de plenitude. Quando confrontados com a riqueza do mundo ficamos por vezes indefesos, apreendemos apenas fragmentos, restos. A mesma coisa acontece quando vemos um quadro num museu: temos de dar um passo atrás, para vermos o quadro inteiro. A solidão é exactamente esse passo atrás.
Adam Zagajewski
¶ 12 de Abril de 2021

¶ 12 de Abril de 2021
O mundo interior, reino absoluto da poesia, tem a característica de ser inexprimível. É como o ar, que atravessa correntes e tensões, que determina mudanças de temperatura e tempestades, mas cujo traço fundamental continua a ser a absoluta transparência. O que pode fazer então o mundo interior se, a despeito da sua inefabilidade, aspira a exprimir-se? Usa um estratagema. Finge interessar-se, e interessar-se muito, pela realidade externa.
Adam Zagajewski
¶ 11 de Abril de 2021

¶ 11 de Abril de 2021
Esta manhã que entra pela janela,
com o frio que sobrou da noite e o cinzento
que vai ficar para o dia, é fabricada com pedaços de tempo, restos
de cor, estilhaços de memória,
que vou colando na superfície branca
da alma.
Por vezes, um pássaro esquecido
do verão entra pela sala vazia, agita
o espaço abstracto com o seu voo
inquieto, acordando a música que
um tecto de nuvens sufoca - e
leva consigo a perfeição do instante
que as suas asas inventam.
Comparo o pássaro e a manhã,
sabendo que a tarde me irá cobrir
com a sua túnica
de sombra; e colo aos ombros
a luz que essa imagem me abre,
tão breve como um rosa
matinal que o outono
colhe no caule
do amor.
Nuno Júdice
¶ 10 de Abril de 2021
A mania de escrever parece constituir um sintoma de uma época sobrecarregada. Desde quando escrevemos tanto senão desde que nos encontramos em apuros? Desde quando os romanos o fizeram senão depois da sua ruína? Além do mais, tal como o apuramento dos espíritos, não há uma moderação organizacional; esta azáfama ociosa nasce do facto de que cada um se entrega indolentemente ao ofício da sua função, percorrendo-o. A corrupção dos nossos dias faz-se do contributo individual de cada um de nós: uns insuflam-lhe a traição, outros a injustiça, a irrelegião, a tirania, a avareza, a crueldade, conforme sejam mais poderosos; os mais frágeis, entre os quais me encontro, inculcam-lhe a estupidez, a vaidade, a ociosidade.
Michel de Montaigne
¶ 9 de Abril de 2021

¶ 9 de Abril de 2021
Por medo da insónia adio o sono
nas noites em que com um golpe frio
a memória levanta a onda morta
do irrecuperável: o que adio?
Estou deitado num tempo muito extenso
entre a luz e o escuro, estou perdido
entre o imaginado e a verdade
de um mundo sem imagens: o que adio
não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio
Gastão Cruz
¶ 8 de Abril de 2021

¶ 8 de Abril de 2021
Como no poema de Whitman um rapazito
aproximou-se e perguntou-me: O que é a erva?
Entre o seu olhar e o meu o ar doía.
À sombra de outras tardes eu falava-lhe
das abelhas e dos cardos rente à terra.
Eugénio de Andrade
¶ 7 de Abril de 2021
Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.
Não ser lido por quem lê. Somente
pelos que procuram qualquer coisa
rugosa e rápida a caminho de uma revista
onde fotografaram todo o ludíbrio da felicidade.
Que um poema meu lhes pudesse entregar.
ademais da morte,
um alívio igual ao de atirar os sapatos
que tanto apertam os pés desencaminhados.
Joaquim Manuel Magalhães
¶ 7 de Abril de 2021

¶ 7 de Abril de 2021
As palavras começam a ficar velhas: têm
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açucares mais lentos.
Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas -- por amor,
talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que
ainda esperam por mim. Não sei se volto.
Maria do Rosário Pedreira
¶ 6 de Abril de 2021
Tal como tu, não considero que a devoção ao passado seja uma forma de snobismo. É simplesmente uma das formas mais desastrosas de amor não correspondido.
Susan Sontag
¶ 6 de Abril de 2021

¶ 6 de Abril de 2021
Abril é o mais cruel dos meses, gerando
lilases na terra morta, misturando
a memória e o desejo, atiçando
raízes inertes com a chuva da primavera.
O inverno manteve-nos quentes, cobrindo
a terra com a neve do esquecimento, alimentando
um pouco de vida com tubérculos secos.
O verão surpreendeu-nos, ao passarmos por Starnbergersee,
com um aguaceiro; parámos na colunata
e seguimos já com sol, para Hofgarten,
e tomámos café, e conversámos uma hora.
Bin gar keine Russin, stamm'aus Litauen, echt deutsch.
E quando éramos pequenos e estávamos em casa do arquiduque,
meu primo, ele levou-me num trenó,
e eu assustei-me. Ele disse, Marie,
Marie, segura-te bem. E fomos por ali abaixo.
Nas montanhas, aí sentimo-nos livres.
Eu leio quase toda a noite e vou para o sul no inverno.
Quais são as raízes que estão presas, que ramos crescem
neste amontoado de pedras? Filho do homem,
tu não sabes dizer nem supor, pois apenas conheces
um monte de imagens quebradas, onde o sol bate,
e a árvore morta não oferece abrigo, nem o grilo trégua,
nem a pedra seca o som da água. Só
há sombra debaixo desta rocha vermelha
(vem para a sombra desta rocha vermelha),
e mostrar-te-ei algo diferente quer da
tua sombra da manhã, dando largos passos atrás de ti,
ou da tua sombra ao cair da tarde, levantando-se para te tocar;
mostrar-te-ei medo num punhado de poeira.
Frisch weht der Wind
der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
wo weilest du?
«Deste-me jacintos pela primeira vez há um ano;
«Chamavam-me a rapariga dos jacintos.»
- Porém, quando voltámos, tarde, do Jardim dos Jacintos,
os teus braços cheios e o cabelo molhado, eu não podia
falar, e os meus olhos velaram-se, eu não estava
vivo nem morto, e não sabia nada,
espreitava o coração da luz, o silêncio.
Oed' und leer das Meer.
T.S. Eliot, trad. Maria Amélia Neto
¶ 6 de Abril de 2021

¶ 6 de Abril de 2021
Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária.
Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.
Abre-se a porta e o próprio ar nos fala.
As cortinas de rede, exactamente aquelas,
a cadeira onde a memória está sentada,
a mesa, o copo, a chávena, o relógio,
o móvel onde alguém permanece encostado
sem volume e sem tempo,
nós próprios, quando os olhos indignados
nas pálpebras se encobrem.
Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro
Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, entende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.
Se fosse o amor dos homens
quando se abrisse a mão já lá não estava.
António Gedeão
¶ 5 de Abril de 2021
É tempo de ser concreto honesto bizarro:
Dizer as coisas como elas são, por exemplo
Este canteiro de nada merece ser entendido nas suas propriedades
várias
e Augustas.
(Nota: do próprio ao impróprio, do vário ao constante, fica para um pós-doutoramento; da Augusta e
suas primas, nunca desta boca ouvireis nada próximo do que aconteceu.)
Esta vereda encarnada merece ser olhada
para lá do invisível, para lá do que dizem
(as vozes)
ser
POSSÍVEL.
É tempo de ser exacto
(Mas como governar o mundo, quando a Poesia ganhar o lugar que merece?
Que será de nós, que não nos acostumamos
ao presente?):
É tempo de imaginar uma ou duas escadas
verdes.
Rui A.
¶ 4 de Abril de 2021

¶ 4 de Abril de 2021
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim
E fora de mim
Ainda a mim se prende.
Ana Hatherly
¶ 4 de Abril de 2021
A beleza não tem causa. É.
Quando a perseguimos apaga-se. Quando
paramos - permanece
Emily Dickinson
¶ 4 de Abril de 2021

¶ 4 de Abril de 2021
Escrever com o dia claro soa a estranho e contrário
a quase todas as estatísticas que conheço
(sendo isto o mínimo que me soe dizer).
Mas a escrita e as ciências sociais não são exactamente
A mesma coisa.
Escrever com o sol radiante é um direito inalienável e difícil,
tal como o é a recusa de toda e qualquer transparência.
Mas o poeta não se conforma, sequer com o bom tempo
(sendo esse um mistério que de bom grado troco
por um prato de mar e caracóis).
Escrever sem exaltações toleradas ou proibidas
é algo que escapa à maior parte dos poetas não profissionais
(sendo esse detalhe resolúvel, com maior ou menor dificuldade,
para qualquer especialista em bebidas ou afins).
É certo que é mais fácil escrever nos dias complicados
(isto, não sendo trovador ou criança mágica),
e há quem os tenha nos vários pianos do mundo.
Penso que compreendo, e até aceito.
Mas escreve-me, porra!
nem que seja para falares de ti.
Rui A.
¶ 3 de Abril de 2021

¶ 3 de Abril de 2021
Do amor não quero nada além do início, nas praças da minha Granada
as pombas remendam as vestes do dia.
As jarras estão cheias de vinho para a festa depois da nossa partida.
Sobram muitas janelas nas canções para explodir a flor de granada
Deixo o jasmim no vaso, deixo o meu coração pequeno
no armário da minha mãe, deixo o meu sonho rindo na água,
deixo a aurora no mel do figo, deixo o meu dia e anoiteço
na senda até a Praça da Laranja onde as pombas revoam.
Teria sido eu quem desceu até os seus pés para erguer a fala?
Lua branca no leite das suas noites... bate o vento
e eu vejo a rua azul da flauta... bate a tarde
e eu vejo como adoece entre nós o mármore.
As janelas abandonaram os pomares do seu xale. Em outro
tempo eu sabia muito sobre você, colhia gardênias
dos seus dedos. Em outro tempo obtinha pérolas
torneando o seu colo, e um nome num anel por onde iluminava o escuro.
Do amor não quero nada além do início, as pombas voaram
acima da última esfera do céu, as pombas voaram, revoaram.
Restará muito vinho nas jarras, depois da nossa partida,
basta bem pouca terra para nos encontrar e se dar a paz.
Mahmoud Darwich
¶ 2 de Abril de 2021

¶ 2 de Abril de 2021
Numa amizade perfeita [...] os dois amigos aceitam completamente ser dois e não um, respeitam a distância que entre eles põe o facto de serem duas criaturas distintas.
A amizade é o milagre pelo qual um ser humano aceita olhar à distância, e sem se aproximar, o próprio ser que lhe é necessário como um alimento. É a força de espírito que Eva não teve; e, contudo, ela não tinha necessidade do fruto. Se ela tivesse tido fome no momento em que olhava o fruto, e se, apesar disso, tivesse permanecido indefinidamente a olhá-lo, sem dar um passo na sua direcção, teria realizado um milagre igual ao da perfeita amizade.
Simone Weil, trad. Manuel Maria Barreiros
¶ 2 de Abril de 2021

¶ 2 de Abril de 2021
Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.
Octavio Paz, trad. Luis Pignatelli
¶ 1 de Abril de 2021
O corpo me é dado - e com que fim,
Meu corpo único, tão de mim?
Pela alegria chã de respirar,
Silenciosa, a quem devo louvar?
Sou jardineiro e sou flor - cativo
Na prisão do mundo sozinho não vivo.
E já nos vidros da eternidade
Cai meu calor, meu sopro respirado.
Nela se grava um desenho para sempre,
Irreconhecível de tão recente.
Escorra do momento a água turva -
O desenho amado não esbate à chuva.
Ossip Mandelstam
¶ 1 de Abril de 2021
Aí tudo o que a natureza encubra,
Quando assim quiser, de nós.
Aí sem amparo alguém chora
Num qualquer momento destinado.
Anna Akhmatova
¶ 1 de Abril de 2021

¶ 1 de Abril de 2021

¶ 1 de Abril de 2021
Se tu és a égua de âmbar
eu sou o caminho de sangue
Se tu és o primeiro nevão
eu sou quem acende a fogueira da madrugada
Se tu és a torre da noite
eu sou o cravo ardendo em tua fronte
Se tu és a maré matutina
eu sou o grito do primeiro pássaro
Se tu és a cesta de laranjas
eu sou o punhal de sol
Se tu és o altar de pedra
eu sou a mão sacrílega
Se tu és a terra deitada
eu sou a cana verde
Se tu és o salto do vento
eu sou o fogo oculto
Se tu és a boca da água
eu sou a boca do musgo
Se tu és o bosque das nuvens
eu sou o machado que as corta
Se tu és a cidade profunda
eu sou a chuva da consagração
Se tu és a montanha amarela
eu sou os braços vermelhos do líquen
Se tu és o sol que se levanta
eu sou o caminho de sangue
Octavio Paz, trad. Luis Pignatelli