¶ 30 de Novembro de 2012
Lovis Corinth
em compasso de espera
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 30 de Novembro de 2012
A redundância cerca as palavras e as multiplica contra a vontade de quem as pronuncia: o som estende o lapso ao final da frase e o verbo – deslocado na ação – é entronizado em verdade. Contemplo o espectro e no desdouro das cores reparto o sim e o não na ubiquidade reportada ao desconsiderado. Retiro cada palavra dos cantos inseguros do discurso e desço a escadaria. Saio antes que acordem. Pedro Du Bois
¶ 29 de Novembro de 2012
Vi casas vi navios uns maiores que outros No pouco que discerni Achei que viajei alguma coisa E agora, agarrado às teclas Tento fazer disso dessa coisa mais ou menos incerta Alguma da certeza que sempre escapa - escapa, olá se escapa Aos dias Catrinos, ou raismepartam, Nem eu sei como gosto De dar pureza e pueril aos dias Nada como encontrar o verbo mais simples, o mais popular Neste caso penso que nas Beiras Mas bem que posso estar enganado Sei lá do que se passa no Algarve E assim dizendo tudo Digo o nada Já não é assim tão mau Haja paciência alguma Alguma livraria com muitos livros E a vontade de ler. Nem tudo será inútil Nem tudo será resumo ou alongamento E mesmo que o tudo não seja tudo ou não chegue Caramba Não há nada como uma boa biblioteca Embora, é mais que certo Uma boa de uma companhia Me faça, nos faça Esquecer De tudo o mais Tem isso algum mal? Tem isso algum mal? Melhor ficar por aqui Embora duvide Claro. Rui A.
¶ 28 de Novembro de 2012
não escondemos que aprendemos a capitalizar o amor, entregando amplamente os nossos melhores momentos às raparigas mais carentes. o amor, sabemos bem, é o caminho directo para a inutilidade, e nós procuramos as raparigas que mais rapidamente se inutilizem perante as coisas clássicas da vida. não nos queremos atarefar com a vulgaridade, e gostaríamos até de impregnar cada gesto com características alienígenas, mas o tempo escapa-se e o dinheiro também e, se só pensamos no amor, não temos como fazer de outro modo senão vendê-lo entusiasticamente, como fontes de trovões bonitos jorrando nas praças mais movimentadas das cidades. e as raparigas correm para nós urgentes e cheias de vida, férteis de tudo quanto o amor se abate sobre elas, uma alegria rica de se ver, e nós a balançar os braços para chamar a atenção de mais e mais e já nem sabemos como parar, como forças incontroladas, à semelhança de mecanismos ferozes da natureza, e só sairemos daqui quando desfalecermos de amor até pelas raparigas mais feias valter hugo mãe
¶ 27 de Novembro de 2012
Exceto pelos filmes Só três vezes na vida Vi um ser vivo Com um monóculo no olho, Um produtor de Hollywood, Um general alemão, E um orador do Grupo Anarquista de Londres. Kenneth Rexroth, trad. Reuben da Cunha Rocha
¶ 26 de Novembro de 2012
Naqueles dias Havia tanta energia dentro de mim e ao meu redor Que podia usá-la e depois guardá-la, como as roupas que alguém compra somente para uma viagem de ski Mas que acaba usando todos os dias Pois todos os dias são como uma viagem de ski – Acho que eu era assim aos vinte e três anos. Ver aquelas seis jovens no barco – estava em uma viagem de ski Elas disseram, Somos todas de Mineápolis. Foi em Estocolmo. A mistura de um visual feminino americano com sueco-americano [era uma viagem de ski Embora eu não tivesse nenhum motivo específico naquela [para colocar toda a minha energia naquilo Ainda assim ela estava ali, eu a tinha, era como [um gigante que detém a hegemonia de seus nervos No caso de precisar, ou como um pescador tem todas [as suas varas e anzóis e iscas, e um acadêmico todos os seus livros Ou como um aquecedor de água com seu gás Sendo ele usado ou não, eu tinha toda aquela energia. É sério, vocês são todas de Mineapolis? Eu disse, quase [explodindo com a pressão. Sim, uma delas, a segunda mais bonita, respondeu. Estamos [aqui para passar alguns dias. Durante oito ou dez anos eu pensei nesse momento de tempos em tempos. Me pareceu que eu deveria ter [feito algo naquela época, Ter usado toda aquela energia. Fazer amor é uma maneira de usá-la [e escrever é outra. Talvez ambas sejam superestimadas, pois a relação é muito clara. Mas provavelmente este é o destino humano e não vou contra ele aqui. Às vezes as pessoas existem e a energia não, às vezes a energia existe [mas as pessoas não. Quando os deuses concedem os dois, um homem não pode reclamar. Kenneth Koch, trad. Marília Garcia
¶ 25 de Novembro de 2012
eu sou o selvagem sonetista, um palavricultor / casuísta, com rimas um tradicientista, em som signalizo, alarmista. eu sou um rígido sonetor, vocal e senso, compositor com coeur e flair, voyeur de fonema, signo, cheirador. eu sou o calmo sonetastro, envolvo-me / linguasmático, estrofe + estrofe de plástico. eu sou enfim o sonetante, com sílabas, eu-musicante empilho versos na estante. Karl Riha, trad. Ricardo Domeneck
¶ 24 de Novembro de 2012
Há alguns dias decidi lutar e só de pensar na luta me causou um cansaço tão infinito que até meus melhores amigos têm mantido uma distância respeitosa. Além do mais, como já passei ao lado dos rios mais famosos do mundo e não me suicidei em nenhum minha falta de amor pela humanidade está suficientemente demonstrada. Como sempre, falo dos outros, mas digo eu, todos podem dormir tranqüilos pensando que estas estórias malucas só podem ser minhas, que já sabemos que tipo de pessoa eu sou. Meus melhores amigos sofrem em diferentes partes do mundo e eu escrevo cartas cômicas sentada no meio do deserto sob o sol de janeiro, enquanto minhas vidas mortas insistem em voltar. Alguns dos meus melhores amigos não se enganam e me oferecem tardes calmas, retiram os objetos incômodos, criam espaço para o meu ruído. Como sou infinitamente preguiçosa acho que nunca tentarei lutar, por isso quase ninguém me cumprimenta, outros dizem coitadinha, e meus melhores amigos caçoam impiedosamente dos ingênuos e não me levam a sério. Juana Bignozzi, trad. Renato Rezende
¶ 23 de Novembro de 2012
Sim, as escamas do crepúsculo no fio, último?, de Novembro sobre o rio: ou o êxtase dos véus de Novembro fluindo até a noite, e mais além? ... incrível de ecos e de fugas e passagens de não se sabe já que despedida ou que chamado Sim, o fluido profundo, sobre ouro, que nimba o barranco e inscreve misticamente uma árvore alta, e irradia, até quando? umas vagas pétalas de íris... Sim, sim, o verde e o celeste, revelados, que tremem por volta das dez porque partem, e na meia tarde se desfazem ou se perdem em sua mesma água fragílima... Sim, sim, sim Mas veio a luz, estava só a luz detrás das persianas da manhã íntima: veio a criatura eterna, o sentimento das estrelas, a eucaristia dos mundos, a alma primeira antes, antes do prisma, com essa flauta branca, inefavelmente branca, sempre imposta sobre o caos... Veio a luz, veio a menina essencial, impossivelmente pura das folhas e de suas próprias asas, até um esquecimento cheio dela como do olhar, único, de uma estiagem nunca vista.... Juan L. Ortiz, trad. Idelber Avelar
¶ 22 de Novembro de 2012
O tempo chega sempre; mas há casos em que não chega a tempo. Camilo Castelo Branco
¶ 21 de Novembro de 2012
Aproximo-me da noite o silêncio abre os seus panos escuros e as coisas escorrem por óleo frio e espesso Esta deveria ser a hora em que me recolheria como um poente no bater do teu peito mas a solidão entra pelos meus vidros e nas suas enlutadas mãos solto o meu delírio É então que surges com teus passos de menina os teus sonhos arrumados como duas tranças nas tuas costas guiando-me por corredores infinitos e regressando aos espelhos onde a vida te encarou Mas os ruídos da noite trazem a sua esponja silenciosa e sem luz e sem tinta o meu sonho resigna Longe os homens afundam-se com o caju que fermenta e a onda da madrugada demora-se de encontro às rochas do tempo Mia Couto
¶ 21 de Novembro de 2012
Não me cinjas a voz não me limites não me queiras assim antecipado Eu não existo onde me pensas Eu estou aqui agora é tudo Esta causa Que me retoma Em cada dia Age na esperança Em que respira Esta necessidade De estar vivo No círculo em que se fecha o que em mim respira há um suicídio de memórias que não cabem no que em mim existe Já fui longe demais matando-me nas pedras que atiro contra mim sentindo o que não sei Há por aí alguém que queira vir comigo atrás do que seremos quando tivermos sido? O que resta de nós Dorme a noite invisível Que ainda nos sobra O que me cansa é o diabo da esperança O que ficará de mim nos restos digitais do tempo quando chegar o fim de que me ausento João Apolinário
¶ 20 de Novembro de 2012
(gentileza de Violante Grilo) La lluvia tiene un vago secreto de ternura, algo de soñolencia resignada y amable, una música humilde se despierta con ella que hace vibrar el alma dormida del paisaje. Es un besar azul que recibe la Tierra, el mito primitivo que vuelve a realizarse. El contacto ya frío de cielo y tierra viejos con una mansedumbre de atardecer constante. Es la aurora del fruto. La que nos trae las flores y nos unge de espíritu santo de los mares. La que derrama vida sobre las sementeras y en el alma tristeza de lo que no se sabe. La nostalgia terrible de una vida perdida, el fatal sentimiento de haber nacido tarde, o la ilusión inquieta de un mañana imposible con la inquietud cercana del color de la carne. El amor se despierta en el gris de su ritmo, nuestro cielo interior tiene un triunfo de sangre, pero nuestro optimismo se convierte en tristeza al contemplar las gotas muertas en los cristales. Y son las gotas: ojos de infinito que miran al infinito blanco que les sirvió de madre. Cada gota de lluvia tiembla en el cristal turbio y le dejan divinas heridas de diamante. Son poetas del agua que han visto y que meditan lo que la muchedumbre de los ríos no sabe. ¡Oh lluvia silenciosa, sin tormentas ni vientos, lluvia mansa y serena de esquila y luz suave, lluvia buena y pacifica que eres la verdadera, la que llorosa y triste sobre las cosas caes! ¡Oh lluvia franciscana que llevas a tus gotas almas de fuentes claras y humildes manantiales! Cuando sobre los campos desciendes lentamente las rosas de mi pecho con tus sonidos abres. El canto primitivo que dices al silencio y la historia sonora que cuentas al ramaje los comenta llorando mi corazón desierto en un negro y profundo pentagrama sin clave. Mi alma tiene tristeza de la lluvia serena, tristeza resignada de cosa irrealizable, tengo en el horizonte un lucero encendido y el corazón me impide que corra a contemplarte. ¡Oh lluvia silenciosa que los árboles aman y eres sobre el piano dulzura emocionante; das al alma las mismas nieblas y resonancias que pones en el alma dormida del paisaje! Federico García Lorca
¶ 20 de Novembro de 2012
A vida nunca lhe foi fácil É mentira é mentira é mentira As palavras nunca lhe chegaram Nem ele hoje acredita nisso Não teve postais bastantes nem teve casa Está mais que parvo de esquecido Nunca foi verdadeiramente onde queria Este mais um engano para consumo algures Gozou pouco a saúde que lhe sobrava sentiu-se velho e fez gala Gostava, muito, que lhe dessem menos que a idade que tinha Afundou-se na altura impenitente Enquanto já expiava a sua queda Sofreu de uma imprópria falta de auto-estima Dado a vaidades e à teimosia de ser quem era Desapreciou tantos tempos e tanto Foi sempre chatamente pontual e dado a datas Bebeu com alguma fúria, buscando algum vento Adormecendo para lá de manso a janela fechada Apregoou princípios e diversas classes de navios Mentiu com a boca, ao fígado e aos mares Defendeu com afinco e brio as suas verdades mais internas Desacreditou de si próprio mais que muitas vezes Olhou o rio e queria Mas não que a água deve estar fria Tragou-se sem fome e até ao enjoo Insaciável nesse apetite tão seu Encolheu-se na cama lisa nua e escura Perdido em transparências largas de desejo Condensou o mundo mascarou-se de silêncio Espalhou desabafos até cansar e estar cansado Morreu várias vezes de desgosto e de si próprio Talvez gostasse de ser assim Quem sabe? Rui A.
¶ 19 de Novembro de 2012
Da poesia faço uma raiz que gera a haste oculta da palavra em flor Abro as portas desta melancolia fechada no poema por nascer e sinto essa magia suprema de o escrever João Apolinário
¶ 18 de Novembro de 2012
Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa a contra-mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade decepado Entre os dentes segura a primavera João Apolinário
¶ 16 de Novembro de 2012
Estabelece equilíbrio, pois, entre a esperança e o temor; sempre que houver completa incerteza, inclina a balança em teu favor: crê no que te agrada. Mesmo que o temor reuna maior número de sufrágios, inclina-a sempre para o lado da esperança; deixa de afligir o coração, e figura-te, sem cessar, que a maior parte dos mortais, sem ser afetada, sem se ver seriamente ameaçada por mal algum, vive em permanente e confusa agitação. Lucius Annaeus Seneca
¶ 15 de Novembro de 2012
Ouço no canto o grito do silêncio nas madrugadas que se ofertam em oportunidades perdidas aos dias que se anunciam: o estupor do corpo ante a luz amanhecida aterroriza o gesto depois da hora ouço o desencanto da voz em conversas e desdouros o grito sutil da descoberta do corpo sobre a relva amanheceres repõem dúvidas desconsideradas. Pedro Du Bois
¶ 15 de Novembro de 2012
O verdadeiro bem -- a sabedoria e a virtude -- é seguro e eterno; é este bem, aliás, a única coisa imortal que é concedida aos mortais. Estes, porém, são tão falhos, tão esquecidos do caminho que seguem, do termo para que cada dia os vai arrastando que se admiram quando perdem alguma coisa -- eles que, mais tarde ou mais cedo, hão-de perder tudo! Tudo aquilo de que és considerado dono está à tua mão, mas sem ser verdadeiramente teu; um ser instável nada possui de estável, um ser efémero nada possui de eterno e indestrutível. Perder é tão inevitável como morrer; se bem a entendermos, esta verdade é uma consolação para nós. Perde, pois, imperturbavelmente: tudo um dia morrerá. Que socorro podemos conseguir contra todas as nossas perdas? Apenas isto: guardemos na memória as coisas que perdemos sem deixar que o proveito que delas tiramos desapareça também com elas. Podemos ser privados de as possuir, nunca de as ter possuído. É extremamente ingrato quem pensa que já nada deve porque perdeu o empréstimo! O acaso privou-nos do objecto, mas deixou em nós o uso e proveito que dele tiramos, e que nós deixamos esquecer pelo perverso desejo de continuar a possuí-lo! Séneca, in 'Cartas a Lucílio'
¶ 15 de Novembro de 2012
hoje é outra coisa que vai me dar prazer há gestos que surgem entre as duas portas eles não foram previstos e as pequenas cortinas nas janelas o espaço das paredes azuis levarei apenas algumas sacolas e meus livros de estudo a primeira flecha foi um mal entendido melhor que todos os outros ela saiu do grande movimento giratório imediatamente perdi a ideia da possessão Josée Lapeyrère, trad. Marília Garcia
¶ 14 de Novembro de 2012
Amigo Maior que o pensamento Por essa estrada amigo vem Não percas tempo que o vento É meu amigo também Em terras Em todas as fronteiras Seja benvindo quem vier por bem Se alguém houver que não queira Trá-lo contigo também Aqueles Aqueles que ficaram (Em toda a parte todo o mundo tem) Em sonhos me visitaram Traz outro amigo também José Afonso
¶ 13 de Novembro de 2012
Podereis roubar-me tudo: as ideias, as palavras, as imagens, e também as metáforas, os temas, os motivos, os símbolos, e a primazia nas dores sofridas de uma língua nova, no entendimento de outros, na coragem de combater, julgar, de penetrar em recessos de amor para que sois castrados. E podereis depois não me citar, suprimir-me, ignorar-me, aclamar até outros ladrões mais felizes. Não importa nada: que o castigo será terrível. Não só quando vossos netos não souberem já quem sois terão de me saber melhor ainda do que fingis que não sabeis, como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, reverterá para o meu nome. E mesmo será meu, tido por meu, contado como meu, até mesmo aquele pouco e miserável que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito. Nada tereis, mas nada: nem os ossos, que um vosso esqueleto há-de ser buscado, para passar por meu. E para outros ladrões, iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo. Jorge de Sena
¶ 11 de Novembro de 2012
A vida, amigos, é um tédio. Não devemos dizê-lo. Afinal, o céu se acende, o verde mar anseia, nós mesmos acendemos e ansiamos, e ademais disse-me a mãe em pequeno (repetidamente) 'Confessar-se entendiado significa que não tens Recursos Interiores'. Concluo agora que não tenho recursos interiores, pois estou entediado às profundas. As gentes me entediam, a literatura me entedia, especialmente a grande literatura, Henry me entendia, com seus apertos & apuros tão graves quanto os de Aquiles, que ama as gentes e a arte valorosa, que me entendiam. E as plácidas colinas, & o gim, parecem uma chatice e de algum modo um cachorro levou-se a si próprio & ao rabo consideravelmente embora para as montanhas ou o mar ou o céu, deixando para trás: a mim, balanço. John Berryman, trad. Ismar Tirelli Neto
¶ 11 de Novembro de 2012
Falei de ti com as palavras mais limpas Viajei, sem que soubesses, no teu interior. Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres, tropeçavas em mim e eu era uma sombra ali posta para não reparares em mim. Andei pelas praças anunciando o teu nome, chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada. Em tudo o mais usei da parcimónia a que me forçava aquele ardor exclusivo. Hoje os versos são para entenderes. Reparto contigo um óleo inesgotável que trouxe escondido aceso na minha lâmpada brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias. Fernando Assis Pacheco
¶ 10 de Novembro de 2012
É inevitável, faz parte da combustão da natureza, é força, mar, elemento, água, fogo, destruição, é atmosfera, respira-se, quando se morre abandona-se, o amor deixa, fica isolado, é um elemento, come-se, bebe-se, sustenta pão, pão diário para rico e pobre, pão que ilumina o forno do amassador, aparece nas condições mais estranhas, bicho que nasce, copula dentro de si mesmo, paira, espermatozóide e óvulo, as duas coisas ao mesmo tempo, amor é assim outro elemento fundamental da natureza, as pessoas vivem tanto com o amor, ou tão alheias do amor, que nem notam, raro percebem que o amor existe, raro percebem que respiram, que a água está, é indispensável, ninguém pode viver alheio aos elementos, ao amor. Ruben A.
¶ 9 de Novembro de 2012
Sentou-se, certa vez, no coração de Henry algo tão pesado, que se tivesse cem anos & mais, & aos prantos, insone, por todo esse tempo Henry não poderia tornar o Bem. Recomeça e sempre em seus ouvidos, a pequena tosse em algum lugar, um odor, um badalo. E há outra coisa que ele tem em mente como um grave rosto de Siena, milenar não conseguiria borrar sua censura quieta e perfilada. Horrendo, olhos abertos, ele atenta, cego. Todos os sinos dizem: tarde demais. Isto não se pranteia: pensar. Mas nunca Henry, conforme pensara, dá cabo de alguém e esquarteja seu corpo e esconde os bocados onde possam encontrá-la. Ele sabe: verificou a todos, & ninguém está desaparecido. Com frequência, ao amanhecer, ele faz as contas. Ninguém nunca está desaparecido. John Berryman, trad. Ismar Tirelli Neto
¶ 8 de Novembro de 2012
Damos festas, abandonamos as nossas famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais. Michael Cunningham, in "As Horas"
¶ 8 de Novembro de 2012
A exigência mata o amor. A necessidade imensa que tens de companhia, de estar ao pé, de ternura, de já, de saber, de ir perto do mais perto, de envolver o amor, de dares personalidade na loucura, essa necessidade mata o amor, estrangula, a liberdade é amor que rouba o livre amor, é tão bom que deita por fora, escalda. Ruben A.
¶ 7 de Novembro de 2012
Há tantos diálogos Diálogo com o ser amado o semelhante o diferente o indiferente o oposto o adversário o surdo-mudo o possesso o irracional o vegetal o mineral o inominado Diálogo consigo mesmo com a noite os astros os mortos as ideias o sonho o passado o mais que futuro Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio. Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos. Carlos Drummond de Andrade
¶ 7 de Novembro de 2012
Não faças ruído, não fales: vão explorar uma floresta os olhos, o coração o espírito, os sonhos... Floresta secreta, porém palpável: floresta. Floresta de rumoroso silêncio, floresta onde se refugiou o pássaro que se prende a laço, o pássaro que se prende a laço, que faremos cantar ou que faremos chorar. Que faremos cantar, que faremos chorar o lugar de seu nascimento. Floresta. Pássaro. Floresta secreta, pássaro oculto em vossas mãos. Jean-Joseph Rabearivelo, trad. Antônio Moura
¶ 6 de Novembro de 2012
A mon dernier repas Je veux voir mes frères Et mes chiens et mes chats Et le bord de la mer A mon dernier repas Je veux voir mes voisins Et puis quelques Chinois En guise de cousins Et je veux qu'on y boive En plus du vin de messe De ce vin si joli Qu'on buvait en Arbois Je veux qu'on y dévore Après quelques soutanes Une poule faisane Venue du Périgord Puis je veux qu'on m'emmène En haut de ma colline Voir les arbres dormir En refermant leurs bras Et puis je veux encore Lancer des pierres au ciel En criant Dieu est mort Une dernière fois A mon dernier repas Je veux voir mon âne Mes poules et mes oies Mes vaches et mes femmes A mon dernier repas Je veux voir ces drôlesses Dont je fus maître et roi Ou qui furent mes maîtresses Quand j'aurai dans la panse De quoi noyer la terre Je briserai mon verre Pour faire le silence Et chanterai à tue-tête A la mort qui s'avance Les paillardes romances Qui font peur aux nonnettes Puis je veux qu'on m'emmène En haut de ma colline Voir le soir qui chemine Lentement vers la plaine Et là debout encore J'insulterai les bourgeois Sans crainte et sans remords Une dernière fois Après mon dernier repas Je veux que l'on s'en aille Qu'on finisse ripaille Ailleurs que sous mon toit Après mon dernier repas Je veux que l'on m'installe Assis seul comme un roi Accueillant ses vestales Dans ma pipe je brûlerai Mes souvenirs d'enfance Mes rêves inachevés Mes restes d'espérance Et je ne garderai Pour habiller mon âme Que l'idée d'un rosier Et qu'un prénom de femme Puis je regarderai Le haut de ma colline Qui danse qui se devine Qui finit par sombrer Et dans l'odeur des fleurs Qui bientôt s'éteindra Je sais que j'aurai peur Une dernière fois. Jacques Brel
¶ 5 de Novembro de 2012
Fala de vendedor ambulante é signo em rotação. A gente lança no ar o que tem de ser dito e colhe — nem sempre — o fruto de algo vendido. Repetimos as falas aceitas para garantir a venda, mas o risco do improviso é o que há. Três por dois, duas por uma — essa sintaxe apraz. A gente lança no ar. Se der ritmo ganhamos a feira, se não, fazemos fina de baile. Edimilson de Almeida Pereira
¶ 4 de Novembro de 2012
Não entendo nada desta janela fechada que me aperta a culpa Doer não doi mais, nem sangra – Consegui o que queria: ser despedida, ficar perdida falida & alone olhando o pale da Comedia. Sei que me chamam Bel Mel de paixão sugado da boca louca de onde sangra o coração e chora a hora do leito vazio da falta de peito do jeito do beijo fácil, difícil, sutil. A verdade é que vivo a mil sonhando a morte em azul-anil. Isabel Câmara
¶ 3 de Novembro de 2012
Ainda preciso escrever a fulano e beltrano que vou bem de saúde que ontem me embebedei no bar grego e depois no bar norueguês, no turco ...que me preparei para a altíssima conta do gás e outras coisas a outros – como deambular num mundo cada vez mais inexplicável que alguém disse: vocês holandeses são todos iguais e olha que eu tinha pago e tinha óculos franceses e uma colectânea de poesia alemã no bolso e em casa sobre a mesa aquele insuperável poema de Anne Sexton wanting to die e ouve como troquei os fusíveis e de repente a luz apareceu e ela dormia no sofá debaixo do cobertor azul a beltrano e sicrano ainda preciso escrever que isso eu não faço que me recuso que vou apresentar queixa que os dias aqui se derretem em chuva que o mundo não é maior do que uma cidade do que eu naquela cidade do que os meus pés naquelas pedras e o que eu vejo ao pestanejar e preciso perguntar como vão passando se a casa já está pronta o artigo bem traduzido se as crianças cresceram se as mulheres não são de todo infelizes Remco Campert, trad. August Willemsen e Egito Gonçalves
¶ 2 de Novembro de 2012
A hora seguinte. Como se alguém fosse esperar. Mas as obrigações não param, sobre os dejetos não queremos nem falar. Lá fora está claro bastante. Não se exigem requisições nenhum assunto para o editorial; eu direi tudo com bastante antecedência. É realmente muito simples. De costas para a parede, para a janela, para a tela, para a porta. Não traga nada, a mesa agora ficará vazia. Jürgen Becker, trad. Ricardo Domeneck
¶ 2 de Novembro de 2012
I’ve been thinking a lot about landscape painting. I don’t have anything scholarly to add to the discussion. I just think it’s a subject I would be interested in painting. I found some old landscape drawings from undergrad while cleaning out a closet. I remember thinking they were crap. Now I kinda like them.
¶ 1 de Novembro de 2012
Eu, incrédulo Tomé, Já não creio na doutrina Que o rabi e o padre ensinam: Nesse “céu” não levo fé! Mas nos anjos acredito, Dou aqui meu testemunho: Perambulam pelo mundo, Impolutos e bonitos. Só refuto essa bobagem De anjo aparecer de asinha; Sei de muitos, Senhorinha, Desprovidos de penagem. Com carinho e claridade, De olho atento nos humanos, Nos protegem, afastando O infortúnio e a tempestade. Amizade tão discreta Reconforta toda gente, Tanto mais o duplamente Judiado, que é o poeta. Heinrich Heine, trad. Ricardo Domeneck