¶ 31 de Março de 2014
Abbott Handerson Thayer
nos idos do século xix
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 31 de Março de 2014
Em cidades estranhas nossos pensamentos vagueiam calmamente como túmulos de artistas de circo esquecidos, os cães ladram aos caixotes do lixo e aos flocos de neve que sobre eles caem. Em cidades estranhas passamos despercebidos como um anjo de cristal fechado numa caixa de vidro sem ar, como um segundo terramoto que meramente rearranjasse o que já estivesse arruinado. Nikola Madzirov
¶ 30 de Março de 2014
Muitas coisas aconteceram enquanto a Terra girava no dedo de Deus. Os cabos libertaram-se dos postes e ligam agora um amor a outro. Gotas de oceano depositaram-se avidamente na parede das cavernas. Flores separaram-se da terra e partiram perseguindo seu aroma. Do bolso de trás, pedaços de papel começaram a voar pelo nosso quarto arejado: coisas irrelevantes que nunca faríamos a menos que fossem apontadas à mão. Nikola Madzirov
¶ 29 de Março de 2014
Gatos não morrem de verdade: eles apenas se reintegram no ronronar da eternidade. Gatos jamais morrem de fato: suas almas saem de fininho atrás de alguma alma de rato. Gatos não morrem: sua fictícia morte não passa de uma forma mais refinada de preguiça. Gatos não morrem: rumo a um nível mais alto é que eles, galho a galho, sobem numa árvore invisível. Gatos não morrem: mais preciso - se somem - é dizer que foram rasgar sofás no paraíso e dormirão lá, depois do ônus de sete bem vividas vidas, seus sete merecidos sonos. Nelson Archer
¶ 28 de Março de 2014
Se quiserem, era sábio, porque estava preparado para morrer em qualquer altura, não por ter tomado conta de tudo que me tinha sido entregue, mas antes por não ter feito nada com isso, e nem podia sequer esperar fazer algum dia o que quer que fosse. Franz Kafka
¶ 28 de Março de 2014
Proclamo um código alternativo: alheio às palavras, uma linguagem sem frases, uma língua que não possa ser condenada à memória, uma prosa para enganar promessas, um dialecto mudo sem listas de preços ou formas de denúncia, uma fonte gratuita de significados ambíguos, um modo de expressar tudo quanto não pode ser expresso. Miren Agur Meabe
¶ 24 de Março de 2014
Estou sentada na cozinha, enquanto a massa ferve. Amo as coisas concretas descobrir seus nomes ao pequeno-almoço: despertador, chuva na calçada, supermercado, beijos na siesta, um copo de vinho, amigos, as pequenas mãos de meu filho, pessoas na praça, tu... Elas produzem as mais doces e lânguidas cócegas, como um banquete após o jejum. Parece-me impossível afastar-me de tais coisas: colam-se à minha caneta e parece que não consigo sacudi-las. No entanto, as coisas concretas não permitem atrasos, e a massa já está pronta. Assim é a vida. Quando o semear do poema começava a germinar, eis que o mundano vem intrometer-se. E lá tenho eu que me levantar da mesa, enquanto a sombra de um bilioso humor assenta. Miren AgurMeabe
¶ 23 de Março de 2014
Nuvens da Toscânia, nuvens da Úmbria. Pálidas nuvens brancas pintadas por Piero della Francesca e Bellini. Nuvens que passam no céu claro enquanto como todos os outros eu navego para a minha morte, animem-me com a vossa brancura, rompam o meu silêncio com o vosso trovão, despertem meu sangue com a vossa chuva, para que eu possa ver claramente o passado escuro, o ruidoso presente, o mudo futuro num abismo sem cume nem fundo. Milan Djordjević
¶ 21 de Março de 2014
Tem a forma da bondade. Quão pacientemente aguarda na tábua de madeira. Com felicidade esperando o rápido veredicto, uma faca no dorso ou ser fatiado em pedaços. O mundo inteiro é um pão. Morde-o como se ele fosse o corpo do filho único de Deus. Vá, avança e fá-lo, quebra a crosta e o silêncio cairá. O silêncio do principio, Ah, o silêncio ardente enquanto o mundo acaba. Milan Djordjević
¶ 20 de Março de 2014
O equinócio da Primavera ocorre a 20 de março. A palavra, de origem latina, aglutina dois termos com significados diferentes. Aequus significa "igual" e "nox", noite. O termo quer dizer literalmente "noites iguais", isto porque nesta altura a noite e o dia têm sensivelmente a mesma duração, 12 horas.
¶ 20 de Março de 2014
Vejo-os pousados no fio eléctrico negro, estirado sobre a nossa rua. É um dia sombrio, chuvoso, o céu está cinza. Vejo-os apertados um contra o outro. A chuva cai suavemente e molha suas penas. Eles mal movem as cabeças, e nunca se entreolham entre si. É o amor ou o calor o que os mantém unidos? Estarão protegendo-se dos frios pingos de chuva? Não faço ideia, apenas reparo na proximidade de seus corpos sobre aquele arame negro e espesso, dois seres plumosos cinza unidos numa única pergunta. Quando a seguir me acontece olhar para fora, vejo o arame vazio, como se de repente ambos tivessem levantado asas, deus sabe para onde e porquê. Milan Djordjević
¶ 19 de Março de 2014
Recebe-me nos teus braços, eles são as profundezas, recebe-me nas profundezas; se me recusas agora, então mais tarde. Franz Kafka
¶ 15 de Março de 2014
Quem és tu que queres julgar, com vista que só alcança um palmo, coisas que estão a mil milhas? Dante Alighieri
¶ 14 de Março de 2014
Que coisa cantarás para mim nesta tarde? Amiga, não vou pensar demais: a primeira canção que recordas, antiga, não importa; uma daquelas canções que já não cantam há tanto, que já não fazem abrir os cenários há um século. Queres dar-me a nostalgia de uma canção morta? Sergio Corazzini
¶ 12 de Março de 2014
O poeta Bashô ensina que os famosos feitos dos lideres militares ensanguentados dão em nada enquanto o pulo de uma rã pode durar séculos. Nuvens negras e chuva chegam desde o Atlântico. O sol saira mas agora, sobre Saint-Nazaire Grãos de gelo caem do céu como arroz escuro. Os poetas são criaturas quase sempre sem conteúdo, homens que dizem coisas tontas e inverosímeis, loucos e faladores que imaginam o que lhes apraz. E no entanto, no entanto, sussurram acerca de milagres, discorrem sobre o que os outros nem sequer suspeitam, de modo que suas palavras ardem na escuridão, fosforescendo. O poeta japonês Bashô ensina-me que o que está perto pode ser assustadoramente distante e que uma jornada para um lugar longínquo traz-nos para mais próximo de nós próprios. Sobre o Atlântico, o céu escureceu, o granizo caiu ainda há momentos, e agora a cidade brilha nos raios de sol sob o céu claro. Milan Djordjević
¶ 11 de Março de 2014
Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram para o sul à sua procura, deixando um lugar vago à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas, o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória das suas biografias incompletas. Os amigos desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol e os amantes que chegam ao fim da tarde jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas que os amigos confiaram até setembro, quando regressam trazem saudades e um romance novo debaixo da língua. Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada, uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa. Maria do Rosário Pedreira
¶ 10 de Março de 2014
E ela ainda não sabe que escrevo sobre a morte. Ela ainda pensa que estou a escrever sobre ela ou sobre outra mulher. Se sentir o cheiro de outra mulher – ficará zangada, mas entenderá. Não entende a morte, porque ela ainda não compreende a morte. Porque ela ainda não acredita que é a morte que me dita o poema. Prefere pensar: é a preguiça. Perdi a caneta. As finanças. Multa por não ter bilhete válido. Uma letra por pagar. Desejo de solidão. Álcool. Visitas à casa de banho. Tudo isto são – sinais. Alguma vez saberá que escrevo sobre a morte? Saberá que se fico imóvel, estou a aprender? Porque é mais difícil não ser do que não ter. Não saberá que quando rio, rio-me contra? Nas anteriores edições ligava-me ela, agora já não quero. Marcin Świetlicki
¶ 9 de Março de 2014
(À maneira de Vermeer) Rua do Loreto. Todas as visões do mundo são parciais. Como uma invenção de Vermeer as traseiras de um edifício antigo podem ser os limites da minha moldura. Nada há de exaustivo no olhar humano. A chaminé de tijolo tinge o céu de um vermelho débil que ele nunca teve. Um universo de vozes, infectos cheiros de cozinhas adjacentes, ruídos que quebram o alheamento que sobre as fechadas se perpetua. Em baixo, uma varanda onde nunca está ninguém. Nada sei da ausência que a varanda desvenda. Do lado esquerdo, o parapeito alto confere-me a certeza de que os meus domínios foram encontrados. Neste perímetro de luz procuro a consistência dos sentidos. O território com que se abastece uma paixão descritiva, o lastro da imaginação. Luís Quintais
¶ 8 de Março de 2014
Pressinto o ano civil no festejar do início e na tolice do meio ao fim. O lapso decorrido no percorrer à frente. A ilusão da diferença no jogo de cartas no jogo de luzes no jogo de palavras no jogo entre residir e morar. O ano na civilidade do alvoroço pelo rosto conhecido no cumprimento. Pedro Du Bois
¶ 7 de Março de 2014
É perfeitamente concebível que o esplendor da vida, na sua plenitude, fique sempre à espera à volta de cada um de nós, mas encoberto à vista, bem lá no fundo, invisível, longínquo. Mas está lá, não hostil, não relutante, não surdo. Se o chamarmos com a palavra certa, pelo nome certo, ele vem. Esta é a essência da magia, que não cria, mas chama. Franz Kafka
¶ 6 de Março de 2014
não desenroles tanto a noite em tua pele. não equipares ao corpo o tropel das palavras na toalha. não encalhes em mim tanta beleza. aperta a blusa. recolhe do meu rosto os teus olhares, alguma lágrima brilhando sobre a mesa. sossega. é cedo ainda para o deserto trepidante do desejo. não julgues saber já que desenlaces o meu corpo procura sobre o teu. nem eu te ofereço o armadilhado morango do amor. apenas peço que adormeças, que dês lugar na cama ao meu fantasma. coloca o coração numa órbita prudente. talvez não tarde o tempo, o lugar onde eu te diga as palavras que desligam os alarmes que instalei em toda a alma. Luís Miguel Queirós
¶ 5 de Março de 2014
Não sou capaz de estranhas paixões e amo, como muitos, o vento forte que agita a roupa estendida nas cordas, as bicicletas ferrugentas de pneus furados esquecidas em garagens e arrecadações, a água fresca que mata a sede ao mais miserável dos homens. Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz e o descuido dos pássaros no ar, ninguém ama como eu as estrias do teu ventre, a primeira casa de dois filhos. de todas as coisas prodigiosas que conheço são elas o que mais se parece com os rasgos abertos por um arado na terra crua deste mundo. Luís Filipe Parrado
¶ 4 de Março de 2014
Na única margem das nuvens as aves são a última sombra. Alexandre Honrado
¶ 4 de Março de 2014
Estar vivo é abrir uma gaveta na cozinha, tirar uma faca de cabo preto, descascar uma laranja. Viver é outra coisa: deixas a gaveta fechada e arrancas tudo com unhas e dentes, o sabor amargo da casca, de tão doce, não o esqueces. Luís Filipe Parrado
¶ 3 de Março de 2014
Foi depois do fim das aulas. Passaram o portão de ferro da escola e deram as mãos para atravessarem a rua. E, de mãos dadas, formaram uma corrente tão poderosa, tão compacta, que o trânsito teve mesmo de parar e ficou completamente imobilizado. Não vou ceder agora à tentação de afirmar que assisti à materialização de um milagre, afinal é coisa que deve estar sempre a acontecer, em algum lugar, ao fim da manhã ou da tarde, logo depois das aulas, dois adolescentes dão as mãos, atravessam a rua, bloqueiam a circulação rodoviária de uma cidade. Mas pensa nisso por um segundo, pensa na força dessa corrente. Luís Filipe Parrado
¶ 2 de Março de 2014
Essa voz que deixei perder já não me procura; e nada será jamais tão simples e singular como aquela voz modulada e firme na sua insegurança, tão indefesa como estar vivo. Porque falo nisto agora? Desista de me ler quem busca um fio coerente, uma afirmação rotunda e concisa. Não tenho loja com essa mercadoria. Nem com mais nenhuma. Procuro apenas o som nítido de uma voz, entre todas as coisas que deixei perder. Procuro. Luís Filipe Castro Mendes
¶ 1 de Março de 2014
Segura-te bem que vais voltar a cair no fundo do teu coração Rui Esteves
¶ 1 de Março de 2014
Dizes-me que Juan Luis não te compreende, que só pensa nos seus computadores e que não faz caso de ti de noite. Dizes-me que os teus filhos não te ajudam, que só te dão problemas, que se aborrecem com tudo e que estás farta de aturá-los. Dizes-me que os teus pais estão velhos que se tornaram tacanhos e egoístas e que já não és a sua menina como dantes. Dizes-me que já fizeste trinta e cinco e que não é fácil começar de novo, que os únicos homens que conheces são os colegas de Juan na IBM e não gostas de executivos. E eu, o que é que eu faço nesta história? Que queres que eu faça? Que mate alguém? Que dê um golpe de estado libertário? Amei-te como um louco. Não o nego mas isso foi há muito, quando o mundo era uma reluzente madrugada que não quiseste compartilhar comigo. A nostalgia é um passatempo grosseiro. Volta a ser a que foste. Vai ao ginásio, Pinta-te mais, disfarça as tuas rugas e veste roupa sexy, não sejas tonta, que talvez Juan Luis te volte a mimar, e os teus filhos vão para um acampamento e os teus pais morram. Luis Alberto de Cuenca, trad. Jorge Sousa Braga