¶ 31 de Março de 2015
E. Phillips Fox
primavera, em 1912
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 31 de Março de 2015
Esta mania de me saber anjo, sem idade, sem morte para a qual viver, sem piedade por meu nome nem por meus ossos que choram vagando E quem não tem um amor? E quem não goza por entre papoilas? E quem não possui um fogo, uma morte, um medo, algo horrível, ainda que fira com plumas, ainda que fira com sorrisos? (...) Alejandra Pizarnik
¶ 30 de Março de 2015
Na hora em que a cidade inicia seu recolhimento - nessa época de noites resfriando ares – esqueço as lições de casa os tormentos e as tormentas quedo em silêncio e da janela assisto a beleza em sua natureza. Pedro Du Bois
¶ 28 de Março de 2015
Quando abri meu coração, havia dentro um deus ferido; caía pelaface esquerda até romper a luz e estremecer a terra. Quando abri meu coração havia uma oliveira incendiando entre raios. Percutia o punho dos vazios e brandia seus braços o estrago. Quando abri meu coração, as fráguas não mais ardiam, mas o duro golpear dos ferros arrastava estrondos carcerários e suspiros. Quando abri meu coração, o poema, viu a descarnada face da guerra, de seus lábios saíram os adeuses, houve tremores noturnos e a silenciosa fuga das estrelas. Quando abri meu coração, rompiam-se a pena, o roído, o pó e as últimas palavras desencontradas, os olhos na sombra submersos as lembranças insones revolvendo-se no vazio. Quando abri o coração, as lágrimas domundo eram maiores... Alcira Cardona,trad. Antonio Miranda
¶ 27 de Março de 2015
Depois de algum tempo perdido planeei minha velhice. Talvez um caroço, um tamarindo, uma casa próxima do rio. Escrevendo uma crónica, vendo a água dos dias correr. Parecido com a vida de algum gato selvagem. Construirei um parque para as crianças e um asilo de anciãos — do qual farei parte —. Conversarei com meus filhos um ou outro poema e haverá um jardim, uma camionete para transportar-me de um lado a outro sem parar. Alba Lucía Hernández Espinosa
¶ 25 de Março de 2015
Lua carruagens de prata Puxadas por cavalos Nas colinas do amanhecer Adelmo Oliveira
¶ 24 de Março de 2015
Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima — eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram. Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço e o coração é uma semente inventada em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão como se toda a casa ardesse pousada na noite. — E então não sei o que dizer junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas que às vezes se despenham no meio do tempo — não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura. Durante a primavera inteira aprendo os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço — e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer coisa extraordinária. Porque não sei como dizer-te sem milagres que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor, que te procuram. Herberto Helder
¶ 23 de Março de 2015
Desdobrado em nomes corporifico a unidade: da matéria retiro o todo e o transformo em texto. Desconverso nomes e desapareço na diversidade. Afasto e retorno. Desdobrado em nomes interajo: fosse o corpo desnudado na paisagem. Pedro Du Bois
¶ 22 de Março de 2015
(gentileza de amigo que cultiva a discrição) Sávio, por tua causa começam a acontecer coisas estranhas comigo tenho medo da Europa e quero visitar-te ir ao Ceará e bebermos um chá de limão como deve estar quente Fortaleza quero sair daqui apanhar o primeiro avião e partir estou sem paciência para as alcoviteiras do meu quarteirão chega de saber quem morreu, enviuvou ou tem corno quero beijar a tua unha amarelada pelo vício do tabaco sem ti perco os dias, esqueço-me de comer e o meu sono é pouco tenho ensaiado perto do laranjal de minha casa o nosso provável diálogo, quando me vieres buscar ao aeroporto com os teus ray ban diz-me a que horas pensas em mim para eu atrasar o relógio da cozinha caí no ciclo esquisito de te ver em todas as coisas na chanata esquecida no passarinho verde ou no carteiro Sávio, querido, espero por ti no aeroporto com os cabelos soltos como dita a natureza do primeiro encontro Pedro Craveiro
¶ 22 de Março de 2015
Sabes, leitor,que estamos ambos na mesma página e aproveito o facto de teres chegado agora para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia. a magnólia cresce na terra que pisas - podes pensar que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito acredita, que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor, que a magnólia - e essa é verdade - cresce sempre apesar de nós. esta raiz para a palavra que ela lançou no poema pode bem significar que no ramo que ficar desse lado a flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo, mesmo que a recuses nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame, a colherei a magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra e eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão. Daniel Faria
¶ 21 de Março de 2015
Entre o que regressa e o que partiu um dia ficaram palavras; talvez (quem sabe?) algum sentido. Agora, como um intruso, subo as escadas e abro a porta; e entro, vivo, para fora de alguma coisa morta. Manuel António Pina
¶ 21 de Março de 2015
Discretamente. Cultivar a palavra. Arte de dispor flores por longa mesa, prazer de dispor quadros por paredes em critério de escolha pessoal. Discretamente: aqui uma pequena haste a lembrar o sol, ali a folha resolvendo o lugar, o espaço certo (ligeiro afastamento necessário para o conjunto articulado em cores). O quadro mais azul naquele sitio, o mais cinzento e largo a distrair-se sobre a nudez de uma parede clara. Discretamente. E a palavra nascida de tela (ou terra) resolvida. Agora. Ana Luísa Amaral
¶ 20 de Março de 2015
Pássaro nulo a configuração da tua ausência o corpo a preencher-se em ressalvas de medo ao meu lado doidamente longe Dir-te-ia do sólido confronto que imagino ou do conforto de te poder ter em figura de estilo Ana Luísa Amaral
¶ 20 de Março de 2015
Em 2015, o Equinócio da Primavera ocorre no dia 20 de Março, às 22h45min. Este instante marca o início da Primavera no Hemisfério Norte. Esta estação prolonga-se por 92,75 dias, até ao próximo Solstício, que ocorrerá no dia 21 de Junho, às 17h38min.
¶ 19 de Março de 2015
Deixai-me limpo O ar dos quartos E liso O branco das paredes Deixai-me com as coisas Fundadas no silêncio Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 18 de Março de 2015
A história do mundo é uma autobiografia inventada é a história dum Paraíso desencontrado dum velho-novo-mundo para sempre ultrajado pela enorme cintilação do ouro Ah como é desigual a viagem da descoberta! Entre a cópia e a falta ante o vexame do despenho uma pergunta maléfica nos assalta: que fazer? A alma não tem que fazer nada dizia um célebre quietista... Ana Hatherly
¶ 16 de Março de 2015
Oh como te ex-amo como tudo se torna direção imprecisa É uma coisa terrível tudo ser tão evidente no seu vazio controverso verso Seta por dentro a onda vive de perfil o seu ex-ato imprecisando as criaturas Oh como o eu-outro aflora culminando falo contigo mas é um outro que contigo fala um outro que ex-amadamente arde ainda Não vês a curva da parábola? A face do amor é ausência de rosto. Ana Hatherly
¶ 15 de Março de 2015
To think is to be full of sorrow J. Keats, Ode to a nightgale Pensar é encher-se de tristeza e quando penso não em ti mas em tudo sofro Dantes eu vivia só agora vivo rodeada de palavras que eu cultivo no meu jardim de penas Eu sigo-as e elas seguem-me: são o exigente cortejo que me persegue Em toda a parte ouço seu imenso clamor Ana Hatherly
¶ 14 de Março de 2015
Quand je vous aimerai? Ma foi, je ne sais pas, Peut-être jamais, peut-être demain. Mais pas aujourd’hui, c’est certain! [sung] L’amour est un oiseau rebelle Que nul ne peut apprivoiser, Et c’est bien en vain qu’on l’appelle, S’il lui convient de refuser. Rien n’y fait, menace ou prière; L’un parle bien, l’autre se tait, Et c’est l’autre que je préfère; Il n’a rien dit mais il me plaît. Henri Meilhac e Ludovic Halévy, por Maria Callas, em 1962
¶ 13 de Março de 2015
Trazia irritações várias na lapela, no bolso em escada cigarros previdentes. Por vezes levava um sorriso que por vezes dava sem ser preciso Passeava em passeios e poentes de uma cidade última que encolhia. Aí se encontrava, que aí se perdia Dono de alguma educação e polidez raramente pronunciava um palavrão na gíria chã - cada vez mais os soletrava em crescendo no silêncio de quarto e texto, paredes meias com algum desgosto de repente e consciência Por vezes pensava na moça mais bonita da aldeia, no recorte por trás do vestido, na cova da orelha, no cobre a subir-lhe o rosto em mãos descalças. Devia haver espaço, pensava, onde guardar o apontamento que não espera. No fim, igual a qualquer um, pouco curiosa esta espécie de pássaro a entardecer. Não, não é com gosto que me entrego à moral. Rui A.
¶ 12 de Março de 2015
Março voltou, esta ácida loucura de pássaros está outra vez à nossa porta, o ar de vidro vai direito ao coração. Também elas cantam, as montanhas: somente nenhum de nós as ouve, distraídos com o monótono silabar do vento ou doutros peregrinos. Já sabeis como temos ainda restos de pudor. e pelo mundo uma enorme, enorme indiferença. Eugénio de Andrade
¶ 11 de Março de 2015
dar-se entregar-se o querer no outro transformar-se cegueira esplêndida esta vitória álacre e suma desgraça Ana Hatherly
¶ 10 de Março de 2015
Quase me esqueço de viver o rasto de sol ainda luxuriante na sua passagem voluptuosa de água e fogo ondulantes. Breve, cálida felicidade, sempre fascinante numa procura convulsa. Exausto e simples o meu olhar alonga-se até à voz obscura do horizonte onde nasce a vontade de renovar o longínquo sonho inacessível ou uma boca friccionando o desejo de apagar a música arquitectada na bruma matinal. Apesar da distância com que olhamos o destino há sempre um ímpeto no silêncio do tempo um eco aflito de saudade face ao corpo que era novo e sobra hoje recordações. Antes ainda sonhamos fogueiras azuis na enorme alegria de estar vivo. Américo Teixeira Moreira
¶ 9 de Março de 2015
Podemos dizer coisas enternecidas diálogos de silêncios fugidios frases quebradas na cumplicidade de um tempo em fuga – imensa ternura que nada brilhará mais no amor que a voz inesgotável do corpo. As palavras envelheceram no fingimento - ácida angústia dos amantes azul longo ardendo nas bocas revelar ausência total do corpo. Gesto da vida. Chama de sangue. Leve magia, submerso desejo quando um frágil vazio nos vem dizer pausa imensa. Américo Teixeira Moreira
¶ 9 de Março de 2015
Foi quando senti a tua nudez mais perto que um cais aqueceu o meu corpo. Foi quando tentei cantar teus olhos perdidos que a imensidão da tua boca se fechou. Foi quando louco e escorraçado do teu barco que as águas do oceano vieram percorrer com violência o silêncio da tua partida. Foi quando vindo do infinito da tua pele inundada que as minhas verdades se desmoronaram e dissidentes se perderam no equilíbrio da tua recusa em seres um pântano. Foi quando no meio de um matagal de vozes a minha se exasperou na fervura de tantos olhares. Foi quando os fragmentos de um mundo irónico e doente de sonho matou de morte o prazer das veias. Foi quando uma tarde perdida no tempo a inconstância quis correr mais forte e viscosa, secreta de raiva, ainda mais sofrida de fogo que a frescura da razão caiu em mim calada e triste, o absoluto da solidão me trespassou como se fosse um punhal doce. Américo Teixeira Moreira
¶ 8 de Março de 2015
Sonho que o universo é uma flor de veneno presa na garrafa verde do infinito e que há uma boca de riso sereno a buscar o choro no incêndio dum grito. Despenha-me a chuva doce da ambição que embriaga a flor com um húmus alcoólico, e o veneno ácido rompe, sem perdão, o muro de vidro chãmente diabólico. A cascata tomba nessa boca impávida cheia de beber a secura do riso, e dos olhos cai, para a garganta ávida, a primeira lágrima dum vão paraíso! Alexandre Pinheiro Torres
¶ 7 de Março de 2015
fortificação medieval (século xiv) edificada em granito, a partir de construções mais antigas
¶ 7 de Março de 2015
I met a traveller from an antique land Who said: Two vast and trunkless legs of stone Stand in the desert. Near them on the sand, Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown And wrinkled lip and sneer of cold command Tell that its sculptor well those passions read Which yet survive, stamp'd on these lifeless things, The hand that mock'd them and the heart that fed. And on the pedestal these words appear: "My name is Ozymandias, king of kings: Look on my works, ye Mighty, and despair!" Nothing beside remains: round the decay Of that colossal wreck, boundless and bare, The lone and level sands stretch far away. Percy Bysshe Shelley
¶ 5 de Março de 2015
Perfilados de medo, agradecemos o medo que nos salva da loucura. Decisão e coragem valem menos e a vida sem viver é mais segura. Aventureiros já sem aventura, perfilados de medo combatemos irónicos fantasmas à procura do que não fomos, do que não seremos. Perfilados de medo, sem mais voz, o coração nos dentes oprimido, os loucos, os fantasmas somos nós. Rebanho pelo medo perseguido, já vivemos tão juntos e tão sós que da vida perdemos o sentido... Alexandre O’Neill
¶ 5 de Março de 2015
A verdadeira arte não é só a expressão de um sentimento, mas também o resultado de uma inteligência viva. Hendrik Petrus Berlage
¶ 2 de Março de 2015
Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais todas as coisas que na vida eu emprenhei. Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais, como as tais coisas nas quais nunca pensei. Demais foram as sombras. Mais e mais. Cada vez mais ardentes as sombras que tirei do imenso mar de sol, sem praia ou cais, de onde parti sem saber por que embarquei. Amei demais. Sempre demais. E o que dei está espalhado pelos sítios onde vais e pelos anos longos, longos, que passei à procura de ti. De mim. De ninguém mais. E os milhares de versos que rasguei antes de ti, eram perfeitos. Mas banais. Joaquim Pessoa
¶ 2 de Março de 2015
Está tudo conformado Ao triste proprietário. Mecânicas ovelhas, na erva de plástico, têm pastor de pilhas e cão pré-fabricado. Flores marginam esse Às peças-soltas prado. Elétricas abelhas, obreiras sem contrato, daquele herbário extraem um mel supermercado. A malhada, no estábulo, Quase manga de alpaca (é A VACA, sabias?), dá leite engarrafado. No céu (para colorir) A nuvem, pontual, Aguarda a vez de ser Chovida no nabal, enquanto o Sol dardeja na eira proverbial. Já tudo afeiçoado Ao bom do proprietário (ervas, bichos, moral), Ele conta com os seus e espera sempre em Deus. (“—Deste corda ao pardal?”) Alexandre O´Neill
¶ 1 de Março de 2015
Monstros e homens lado a lado. Não à margem, mas na própria vida. Absurdos monstros que circulam Quase honestamente. Homens atormentados, divididos, fracos. Homens fortes, unidos, temperados. Ao rosto vulgar dos dias, À vida cada vez mais corrente, As imagens regressam já experimentadas, Quotidianas, razoáveis, surpreendentes. Imaginar, primeiro, é ver. Imaginar é conhecer, portanto agir. Alexandre O´Neill