Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de agosto 2022


31 de Agosto de 2022

Sónia Delaunay



31 de Agosto de 2022

Neste anseio

Neste anseio desenhado em claros píncaros de montanha, ao longe o mar que perto é de águas frias se espraiando em lâminas de metal opaco, a luz se faz tão plácida, tão ténue escurecendo, que é de silêncio memorado o vácuo espaço sob o céu de branco azul, em que perpassam fímbrias de manhãs, farrapos de floridas tardes coloridas, e um de ouro ardente crucial meio-dia em halos purpurinos. Além da muita idade acumulada em minuciosa angústia solitária, o que se irrompe inominado como os contornos de preciosa alvura é de expectante insónia transdiurna a persistência aguda. Que mais se pode desejar neste indomável tempo repetido que vibra em sacudido e intermitente veio, em seiva se concentra e liquefaz, e vai e volta sobre as amplas faces do crepúsculo.

Jorge de Sena


30 de Agosto de 2022

no reflexo do poema

Amo-te; e o teu corpo dobra-se,
no espelho da memória, à luz
frouxa da lâmpada que nos
esconde. Puxo-te para fora
da moldura: e o teu rosto branco
abre um sorriso de água, e
cais sobre mim, como o
tronco suave da noite, para
que te abrace até de madrugada,
quando o sono te fecha os olhos
e o espelho, vazio, me obriga
a olhar-te no reflexo do poema.

Nuno Júdice


29 de Agosto de 2022

Adolph von Menzel



29 de Agosto de 2022

De que me serviu

De que me serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu
recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti
que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,
mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.

Maria do Rosário Pedreira


28 de Agosto de 2022

Se alguém me perguntar

Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi
verdade — que não amei ninguém depois de ti nem
o meu corpo procurou nunca mais outro incêndio
que não fosse a memória de um instante junto
do teu corpo; e que deixei de ler quando partiste
por não suportar as palavras maiores longe da tua boca;
e que tranquei os livros na despensa e tranquei a despensa,
acreditando que, se não me alimentasse, acabaria
por sofrer de uma doença menor do que a saudade, mas
a que os outros, pelo menos, não chamariam loucura.

Se alguém me perguntar, direi que foi assim, e não de
outra maneira, como alguns parecem supor — que permiti,
bem sei, que outros homens me amassem e me aquecessem
a cama, mas em troca lhes dei apenas um nome diferente
do que tinham e os vi partir desesperados a meio
da noite sem sentir maior dor que a de saber que, afinal,
também eles não existiam para além de ti; e que no dia
seguinte dava comigo a trautear sem querer essa canção
que amavas (como se ela, sim, se tivesse deitado
no meu ouvido), mas que a sua melodia, em vez
de me alegrar como antes, me escurecia mais a vida.

Se alguém me perguntar, nada desmentirei, nem negarei
que os frutos todos que me deram a provar na tua ausência
me pareceram demasiado azedos ao pé dos que explodiam
em sumo nos teus lábios; e que, por isso, nunca mais quis
um beijo de ninguém, nem sequer inocente, e não voltei
também a aceitar as flores que me traziam por me lembrar
que, em mãos assim, tão grandes para o afecto, o seu
perfume anunciava invariavelmente a chegada do outono.

E contarei por fim, se alguém quiser saber, que o teu silêncio
foi de tal densidade, de tal espessura, que não consegui
escutar nenhuma das vozes que vieram depois de ti e, pior
do que isso, me esqueci com indiferença das mais antigas,
pelo que as minhas noites se tornaram uma tão longa
e solitária travessia que ainda esta manhã acordei ao lado
da tua sombra e respondi baixinho, mesmo sem ninguém
me perguntar, que há coisas que uma mala nunca leva.

Maria do Rosário Pedreira


27 de Agosto de 2022

À mon seul désir



27 de Agosto de 2022

Ainda bem

Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer — que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe. Ainda bem

que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno. Ainda bem

que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí — ainda mais perdida do que
antes — a olhar sem ver. Ainda bem

que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.

Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer — mas é — um poema de amor.

Maria do Rosário Pedreira


25 de Agosto de 2022

Ivan Kramskoy



25 de Agosto de 2022

Cenas Vivas

Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.

Fiama Hasse Pais Brandão


24 de Agosto de 2022

Mar

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

Sophia de Mello Breyner Andresen


23 de Agosto de 2022

Ferdinand Hodler



23 de Agosto de 2022

As reputações II

(...) e agora estavam a separar-se, desgastados também eles pelas várias estratégias de que a vida dispunha para desgastar os amantes, pelas demasiadas viagens ou pela presença em excesso, pelo peso acumulado das mentiras e das inabilidades e das indelicadezas e dos erros, pelas coisas ditas a destempo e com palavras imoderadas ou inconvenientes ou pelas coisas que, porventura por não encontrarem as palavras convenientes ou moderadas, nunca se disseram, ou desgastadas também pela má memória, sim , pela incapacidade de recordar o essencial e viver nele (para recordar o que outrora fez o outro feliz; quantos amantes sucumbiram a esse esquecimento negligente), e pela incapacidade, também, de se anteciparem a tudo aquilo que desgasta e deteriora tanto, anteciparem-se às mentiras, às inabilidades, às indelicadezas, aos erros, às coisas que não deveriam ser ditas e aos silêncios que deveriam ser evitados: ver tudo isso, ver tudo isso chegar ao longe, ver isso a chegar e afastar-se para o lado e sentir o sopro da sua passagem como um meteorito a rasar o planeta.

Juan Gabriel Vásquez


23 de Agosto de 2022

Love is not all

Love is not all: it is not meat nor drink
Nor slumber nor a roof against the rain;
Nor yet a floating spar to men that sink
And rise and sink and rise and sink again;
Love can not fill the thickened lung with breath,
Nor clean the blood, nor set the fractured bone;
Yet many a man is making friends with death
Even as I speak, for lack of love alone.
It well may be that in a difficult hour,
Pinned down by pain and moaning for release,
Or nagged by want past resolution's power,
I might be driven to sell your love for peace,
Or trade the memory of this night for food.
It well may be. I do not think I would.

Edna St. Vincent Millay


22 de Agosto de 2022

Hiroshi Yoshida



22 de Agosto de 2022

O silêncio?

A tarde caía lenta
e doce. Perto da noite,
foram luzes apagando-se
e o silêncio apalavrou-se.
Foram só um nesse tempo.
Ao alto era tudo móvel
e expansivo. Celeste
como o azul desse nome
atento ao grave sossego
que, puríssimo, o acolhe.
Mas quem nomeia? O silêncio?
É nele que crescem, se movem
os ritmos do pensamento
antes de entrarem por onde
a noite subiu ao centro
transfigurado da noite.

Fernando Echevarría


20 de Agosto de 2022

Yehuda Pen



19 de Agosto de 2022

Só sei

Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que me adiantam
Poemas ou narrativas buscando
Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas
Naquelas não evidências
Da matemática pura? É preciso conhecer
Com precisão para amar? Não te conheço.
Só sei que me desmereço se não sangro.
Só sei que fico afastada
De uns fios de conhecimento, se não tento.
Estou sozinha, meu Deus, se te penso.

Hilda Hilst


19 de Agosto de 2022

Envelhecer

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Mario Quintana


19 de Agosto de 2022

Ivan Kramskoy



18 de Agosto de 2022

As reputações

Há mulheres que não conservam, no mapa da sua cara, nenhum rasto da menina que foram, talvez por se terem esforçado muito por deixar a infância para trás - as suas humilhações, as suas subtis perseguições, a experiência da desilusão constante -, talvez por entretanto algo ter acontecido, um desses cataclismos íntimos que não moldam uma pessoa, antes a arrasam, como a um edifício, e a obrigam a construir-se de novo desde os alicerces.

Juan Gabriel Vásquez


18 de Agosto de 2022

nenhum som me importa

A mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.

Vladmir Maiakóvski


18 de Agosto de 2022

Koho Shoda



17 de Agosto de 2022

Sem outra palavra

Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.

Daniel Faria


17 de Agosto de 2022

Casal

A noite chega
e depois da noite, escuridão
depois da escuridão
olhos
mãos
e respiração, respiração, respiração
e o som da água
que cai ping ping ping da torneira
depois dois
pontos vermelhos
de dois cigarros acesos
o bater do relógio
e dois corações
e duas solidões

Forugh Farrokhzad, trad. Bruno M. Silva


16 de Agosto de 2022

Turner



16 de Agosto de 2022

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres

Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar.

Clarice Lispector


15 de Agosto de 2022

A árvore e a nuvem

Uma árvore anda de aqui para ali sob a chuva,
com pressa, ante nós, derramando-se na cinza.
Leva um recado. Da chuva arranca vida
como um melro ante um jardim de fruta.

Quando a chuva cessa, detém-se a árvore.
Vislumbramo-la direita, quieta em noites claras,
à espera, como nós, do instante
em que flocos de neve floresçam no espaço.

Tomas Gösta Tranströmer


15 de Agosto de 2022

Princípio de Karenina II

Assim como o meu pai chamava bárbaros a todos os que viviam fora da nossa casa, os gregos chamavam bárbaros aos que não eram gregos. Os romanos, a quem não era grego ou romano. Os persas, dizia Heródoto, criam ser o povo mais espectacular do mundo e que quanto mais longe se vivia da Pérsia mais horrível era a raça. O mesmo Heródoto dizia que os egípcios chamavam bárbaros a quem não falava egípcio. Para o meu pai, qualquer pessoa que não fosse da nossa família era bárbaro, e, mesmo falando a nossa língua, grunhia em estrangeiro, esse fenómeno fonético especialmente animalesco.

Afonso Cruz



14 de Agosto de 2022

Amedeo Modigliani



14 de Agosto de 2022

Princípio de Karenina

Foi por essa altura que a minha moral começou a vacilar. Paulatinamente, fui sofrendo ataques consistentes e insistentes à solidez da minha educação paterna. Um desses episódios, devidamente anotado no livro de contas, dizia que o meu pai era um afasta-tudo, enquanto o amor é o contrário disso. Durante um beijo trocam-se milhões de bactérias. Comecei a perceber que somos todos feitos de emigrantes, destas coisas estranhas que entram dentro de nós. Somos povoados de estrangeiro. Poderíamos resistir moralmente, mas não biologicamente, e, mesmo assim, a questão era duvidosa: se o amor era perigoso porque esboroava a moralidade com a sua tendência para abrir coisas, bocas, braços e sabe-se lá que mais, por outro lado, é precisamente no território moral que encontra a sua força e é uma das virtudes cristãs mais celebradas.

Afonso Cruz


14 de Agosto de 2022

Desversos

«Não há amor como o primeiro»
que coisa mais disparatada
a palavra a poetas e teólogos
visitaram uma casa de passe?
o amor é como descer a uma mina
é preciso ter fôlego e muita prática
aproveitem para meter licença
digam-me depois se eu estava errado

Fernando Assis Pacheco


12 de Agosto de 2022

René Magritte



12 de Agosto de 2022

prodígios para outra manhã

Tenho uma flor
de que não sei o nome
Na varanda,
em perfume comum
de outros aromas:
hibisco, uma roseira,
um pé de lúcia-lima
Mas esses são prodígios
para outra manhã:
é que esta flor
gerou folhas de verde
assombramento,
minúsculas e leves
Não a ameaçam bombas
nem românticos ventos,
nem mísseis, ou tornados,
nem ela sabe, embora esteja perto,
do sal em desavesso
que o mar traz
E o céu azul de Outono
a fingir Verão
é, para ela, bênção,
como a pequena água
que lhe dou
Deve ser isto
uma espécie da paz:
um segredo botânico
de luz

Ana Luísa Amaral


11 de Agosto de 2022

Regando lentamente as flores do riso

Regando lentamente as flores do riso,
vou já de neve em neve e lume em lume,
contornando a nordeste o paraíso
em terrenos de pedras ou de estrume,
com pequenas palavras na algibeira
das calças que mantenho ainda frias
da presença dos lares à minha beira.
E meto mãos e dentes nas vazias
flanelas limpas para o flanar antigo,
marcho directo e escasso, colocando
os pés azadamente.
Não persigo
ventos ou cores: sou pedro, zé, femando,
nomes comuns, impróprios, que desdigo
baixinho e surdo, curto, enquanto ando.

Pedro Tamen


10 de Agosto de 2022

Cavaleiros e caracóis



10 de Agosto de 2022

Em fogo lento

Enquanto o peixe grelha, descuidado:
o aroma dourado do incenso a romper
pela cozinha
Vem da mesa na sala, onde,
igual a vulcão, um cone colorido
sustenta a haste fina do incenso
E eu fazendo de mago,
de Menina, de Mãe e de pastor,
tudo em mesma figura
no fervor da cozinha
Em fogo lento, cumpre-se a Palavra
e uma batata só
(falta-me a mirra e o ouro)
Mas vede como, esquivo,
o peixe se queimou,
e o verso em combustão
ficou desfeito!
Ah saber acender um cenário perfeito:
além de incenso, a outra especiaria,
algum tesouro, a erupção dourada,
o preclaro milagre
de um novo peixe,
aqui
E não este puré
sem cântico nem luzes nem noites estreladas:
matéria em que a batata, esquecida,
se tornou

Ana Luísa Amaral


9 de Agosto de 2022

Como Chamar um Gato

Que há vários Gatos já aqui leste,
E agora o eu parecer é este
Não é preciso um tradutor
Pra entender o seu humor.
Já sabes muito e mais que uns pós:
Os Gatos são iguais a nós
E a outros tantos e diferentes
De muitos tipos, muitas mentes.
Pois um é louco e outro é são
E outro é bom e outro não
E um melhor, e um perverso –
Mas qualquer gato cabe em verso.
Em jogo ou em trabalho os viste,
O nome próprio até ouviste
Seus hábitos, seu habitat:
O ponto:
Como chamar um Gato?
E não esquecer esta lição:
UM GATO NÃO É UM CÃO.
Um Cão não luta apenas finge;
Um Cão que ladra não atinge;
Contudo um Cão é, no geral,
Algo simplório e normal.
À excepção do Pequinês
E do canino rafeirês.
O Cão local de toda a parte
É um truão por sua arte,
Não tem orgulho, o Cão, nenhum,
E é tratado abaixo de um.
É fácil ser levado, o tonto –
Uns mimos sobre o queixo e pronto,
Um dá cá a patinha dá,
E pula e põe-se a rir, já está.
O lorpa a qualquer um se entrega,
Responde a deita, a senta, a pega.
É bom lembrá-lo, e isto é exacto:
Um Cão é um Cão – UM GATO É UM GATO.
Com Gatos, diz-se, a regra vale:
Não fales antes que te fale.
Eu não concordo co’o ditado –
Um Gato pode ser chamado.
Mas tem em vista uma verdade:
Que não lhe apraz intimidade.
Eu tiro-lhe o chapéu, cordato,
E chamo o Gato assim: Ó GATO!
Mas se ele for da porta ao lado
Um gato visto no passado
(Vem visitar-me ao meu recato)
Saúdo-o com um EI! UM GATO!
Ouvi chamar um James Buz-James –
Mas não o chames, não te queimes.
Um Gato só te chama amigo
E só te deixa estar consigo
Provando tu quão bem o tratas,
Se lhe mostrares um pires de natas;
E torta de Estrasburgo, até,
Não fica mal, caviar, paté
De Ganso, um bom salmão em pasta –
Tem gosto, bacalhau não basta.
(Conheço um com gosto velho,
À refeição só quer coelho
E, satisfeito, as patas cola
Só pelo molho da cebola.)
Um Gato leva muito a peito
E exige mostras de respeito.
E com o tempo chegas lá,
E pelo NOME ele vem cá.
É este o trato do contrato:
Assim, tal qual, SE CHAMA UM GATO.

T.S. Eliot, trad. Daniel Jonas


9 de Agosto de 2022

Lotte Laserstein



8 de Agosto de 2022

Quatro quartetos

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstração
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, refletidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente, contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.

- T. S. Eliot, trad. Maria Amélia Neto


7 de Agosto de 2022

Eterno é este instante

Eterno é este instante, o dia claro,
as cores das casas desenhadas em aguada rasa, castanhos e vermelhos quase em declive,
as janelas limpíssimas, de vidros muito honestos. Este instante que foi e já não é, mal pousei a caneta no papel: eterno
Sonhei contigo, acordei a pensar
que ainda eras, como é esta janela,
como o corpo obedece a este vento quente, e é ágil, mas tudo: tão confuso como são os sonhos
Agora, neste instante, recordo a sensação
de estares, o toque.
Não distingo os contornos do meu sonho, não sei se era uma casa, ou um pedaço de ar.
A memória limpíssima é de ti
e cobriu tudo, e trouxe azul e sol a esta praça onde me sento, organizada a esquadro,
como as casas
E agora, o teu andar
acabou de passar mesmo ao meu lado, igual,
e agora multiplica-se nas mesas e cadeiras
que cobrem rua e praça,
e eu vejo-te no vidro à minha frente,
mais real que este instante, e se Bruegel te visse, pintava-te, exactíssima e aqui.
E serias: mais perto de um eterno
(Eu, que nada mais sei, só o fulgor do breve, eu dava-te palavras –)

Ana Luísa Amaral


7 de Agosto de 2022

Para Ana Luísa Amaral

Acho que ficámos a meio
de uma frase, o telefone tocou
de repente, em surdina a voz
da tua filha — que surge em tantos
poemas, com tigelas, ora partidas
ora coladas, e “avessos de poema,
em fractura fluida” — a voz da filha
uma súbita flor de luz aberta no meio
da sala, por isso a frase ali suspensa,
entre parêntesis aquele fio de uma
conversa sem início nem fim, pela
janela aberta o rugido do mar de Leça,
junto a nós o miado das gatas, a cadela
com nome de poeta — Mily, como a tua
Emily Dickinson — a pousar sua cabeça
num joelho, “onde é que íamos?”, onde
é que vamos agora?, passaram os anos,
ah, o tempo, esse alçapão aberto numa
sala às escuras, o pé em falso e já só
nos vemos noutra década, mas algo
me prende àquela tarde incompleta,
ao diálogo interrompido, à ideia
que se esboroou com o toque
do telemóvel, custa-me agora
não saber a natureza dessa frase
deixada a meio, a sua textura,
se era feita de matéria fulgurante
ou só da poeira que cobre as coisas
banais, se calhar fizeste dela um verso,
se calhar acabou por chegar a mim por
outras vias, se calhar perdeu-se nesse
limbo cruel das coisas pensadas
que nunca chegam a ser ditas,
cintilações na água, ao crepúsculo,
logo apagadas pelo breu da noite,
e agora só esta tristeza de imaginar
o silêncio coagulado na tua casa,
ao longe o rugido do mar de Leça,
uma aragem que agita as folhas
das plantas, acaricia as lombadas
dos livros, toca os teus objectos,
tenta em vão abrir portas e gavetas,
à procura dessas palavras esquivas,
fugidias, perdidas para sempre.

José Mário Silva


7 de Agosto de 2022

Edmund Dulac



6 de Agosto de 2022

Nú: Estudo em Comoção

Em que meditas tu
quando olhas para mim dessa maneira, deitada no sofá
diagonal ao espaço onde me sento, fingindo eu não te olhar?
Em que pensa o teu corpo elástico, alongado,
pronto a vir ter comigo
se eu pedir?
As orelhas contidas em recanto,
as patas recuadas,
o que atravessa agora o branco dos teus olhos: lua em quarto-crescente,
um prado claro?
E quando dormes, como noutras horas, que sonhos te viajam:
a mãe, a caça, a mão macia, o salto muito perfeito
e alto, muito esguio?
Onde: a noite sem frio que nos abrigará
um dia
e que há-de ser
(só pode ser)
igual?

Ana Luísa Amaral


6 de Agosto de 2022

Não falo de palavras

Não falo de palavras, nem de goivos,
mas de horas atadas ao pescoço.
Poema verdadeiro é sermos noivos:
saber tirar a pele e o caroço
ao grito entre a morte e outra morte
que nos mantenha lassos e despertos
até que venha o talhe que nos corte
e nos retire os poços e desertos.
Por isso, meu amor, o que te dou,
beijo beijado em corpo claro e vivo,
é mais que o verso que te dizem, ou
aliterante, agudo ou conjuntivo.
Colado a tudo, mesmo a contragosto,
o rio inventa o verso, e não assim
como se ao espelho visse o próprio rosto,
mas tu além-palavra, ao pé de mim.

Pedro Tamen


5 de Agosto de 2022

Christen Dalsgaard



5 de Agosto de 2022

Matar a sede com água salgada

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga


5 de Agosto de 2022

Perseguição

Nunca estive tão perto da verdade.
Sinto-a contra mim,
Sei que vou com ela.
Tantas vezes falei negando sempre,
esgotando todas as negações possíveis,
conduzindo-as ao cerco da verdade,
que hoje, côncavo tão côncavo,
sou inteiramente liso interiormente,
sou um aquário dos mares,
sou apenas um balão cheio dessa verdade do mundo.
Sei que vou com ela,
sinto-a contra mim, -
nunca estive tão perto da verdade.

Jorge de Sena


4 de Agosto de 2022

Robert Doisneau



4 de Agosto de 2022

No Mesmo Sítio

Ambiente de casa, de cafés, de bairro
que vejo e por onde ando; anos e anos.
Criei-te em alegria e em mágoas:
com tantos acontecimentos, com tantas coisas.
E inteiro tornaste-te sentimento, para mim.

Konstandinos Kavafis, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis


3 de Agosto de 2022

Do Tempo ao Coração

E volto a murmurar Do cântico de amor
gerado na Suméria às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amsterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas tantas mãos que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presença E da longevidade
do corvo do chacal do louco do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo ao coração minado pelo cancro
Dos rins ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coração mas com pausa na pele
como «Roma by night» entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não que já não somos dois
Dos rins ao infinito A este que não outro
Ao que rola dos rins Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto à entrada do poço
De soletrar em mim a ler nas tuas mãos
como é rápido e lento e recto e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.

David Mourão-Ferreira


2 de Agosto de 2022

Edmund Dulac



2 de Agosto de 2022

muito longe de mim

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava.
era a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto


1 de Agosto de 2022

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade


1 de Agosto de 2022

Edmund Dulac