Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de janeiro 2015


31 de Janeiro de 2015

Meados do Inverno

Um rasto de luz azulada irradia da minha roupa. Decorrida está metade do inverno. Música de choques de mil blocos de gelo. Fecho os olhos. Há um mundo sem ruídos, uma fissura, onde os mortos, como contrabando, são passados para o além. Thomas Transtormer


31 de Janeiro de 2015

Sir George Clausen

Sir%20George%20Clausen%2C%20The%20Quiet%20Room%2C%201929.png The Quiet Room, em 1929


31 de Janeiro de 2015

Paz

Precisa a paz tem a guerra precisa ver tem a escuridão precisa falar tem a mudez declarada em lei no alterado sentido do saber: precisa punir tem a absolvição do esquecimento. Pedro Du Bois


31 de Janeiro de 2015

No Aeroporto

Correm um para o outro de braços abertos, exclamam ridentes: Até que enfim! Enfim! Ambos vestidos com agasalhos de inverno, gorros de lã, cachecóis, luvas, botas, mas só para nós. Porque um para o outro estão nus. Wislawa Szymborska


30 de Janeiro de 2015

Vincent Van Gogh

Vincent%20van%20Gogh%20Cypresses1889.jpg ciprestes oitocentistas


30 de Janeiro de 2015

Vermeer

Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum, em quietude pintada e concentração, dia após dia, não verter o leite do jarro para a vasilha, o Mundo não merece o fim do mundo. Wislawa Szymborska


29 de Janeiro de 2015

Giuseppe Pennasilico

Giuseppe%20Pennasilico%2C%20The%20end%20of%20a%20dream%2C%201908.jpg o fim de um sonho, em 1908


29 de Janeiro de 2015

Adolescente

Eu – adolescente? Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim, saudá-la-ia como pessoa que me é próxima, embora seja, para mim, estranha e distante? Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa pela simples razão de termos a mesma data de nascimento? Tão poucas semelhanças entre nós, quiçá, apenas os ossos são os mesmos, a caixa craniana, as órbitas. Já que os olhos dela parecem maiores, as pestanas mais compridas, ela mais alta e todo o seu corpo revestido com uma pele lisa, sem mácula. Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos, no mundo dela, porém, quase todos estão vivos, enquanto no meu já não há quase ninguém deste círculo que tínhamos comum. Somos tão diferentes uma da outra, pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes. Ela pouco sabe – mas com uma teimosia digna de melhores causas. Eu sei muito mais – mas sem nada saber ao certo. Mostra-me uns poemas, escritos com letra clara e cuidada, como já há muito eu não escrevo. Leio esses poemas e leio. Bem, talvez este daqui, se o reduzirmos e corrigirmos aqui e ali. O resto nada de bom augura. A conversa está difícil. No seu pobre relógio, o tempo ainda é vacilante e barato. No meu, já é muito mais caro e preciso. Na despedida nada, um breve sorriso e nenhuma comoção. Somente quando se afasta e, apressada, se esquece do cachecol. Um cachecol de pura lã, às riscas coloridas feito em croché para ela pela nossa mãe. Ainda hoje o tenho. Wislawa Szymborska


28 de Janeiro de 2015

Silêncio

Por favor, respeita o meu silêncio, o silêncio é a minha melhor arma. Escutaste as minhas palavras quando fiquei silencioso? Sentiste a beleza do que disse quando não disse nada? Nizar Qabbani


28 de Janeiro de 2015

A Mulher de Lot

Ao que parece olhei para trás por curiosidade. Mas, para além de curiosidade, podia ter outras razões. Olhei para trás com pena da malga de prata. Por distração – ao atar a correia da sandália. Para não ver mais os ombros justiceiros do meu marido, Lot. Com a certeza repentina de que, se eu morresse, ele não se dignaria parar. Com a desobediência dos humildes. Ao escutar se alguém vinha atrás de nós. Afetada pelo silêncio, na esperança de que Deus mudasse de ideias. As nossas duas filhas afastavam-se já para além da colina. Senti em mim a velhice. O afastamento. A inutilidade da caminhada. A sonolência. Olhei para trás ao pousar a trouxa no chão. Olhei para trás receosa sem saber onde pôr o pé. No meu caminho atravessaram-se cobras, aranhas, ratos do campo e filhotes de abutre. Já não eram nem bons nem maus – porque tudo o que estava vivo, rastejava e pulava num alvoroço gregário. Olhei para trás por solidão. Com vergonha de fugir às escondidas. Com vontade de gritar e regressar. Ou terá sido somente quando se ergueu um pé-de-vento que me soltou o cabelo e levantou o vestido, ficando eu com a sensação de que atrás das muralhas de Sodoma toda a gente estava a ver e desatara a rir às gargalhadas. Olhei para trás cheia de raiva. Para me saciar com a sua imensa destruição. Olhei para trás por todos os motivos atrás invocados. Olhei para trás sem querer. Foi um pedregulho que se virou, rangendo sob os meus pés. Foi uma fenda que de repente me cortou o caminho. Na borda um hamster vacilava agarrando-se com duas patinhas. E foi então que ambos olhámos para trás. Não. Não. Eu continuei a correr, rastejando e levantando voo, enquanto as trevas não desabaram do céu e, com elas, uma gravilha escaldante e pássaros mortos. Com falta de ar, dei várias voltas. Quem o visse, diria que eu estava a dançar. Não é de excluir que tivesse os olhos abertos. É possível que tivesse caído com o rosto virado para a cidade. Wislawa Szymborska, trad. Teresa Fernandes Swiatkiewicz


26 de Janeiro de 2015

Arthur Heyer

Arthur%20Heyer%20%281872-1931%29%2C%20Three%20Curious%20Cats.jpg a curiosidade e três gatos


25 de Janeiro de 2015

Ascese

O gato fala. Mas o que é que diz o gato? Deves pegar num lápis afiado e fazer o sombreado das noivas e da neve, deves gostar da cor cinzenta, viver debaixo de um céu com nuvens. O gato fala. Mas o que é que diz o gato? Deves vestir-te com o jornal da tarde, de serapilheira como as batatas e virar este fato uma vez atrás da outra e não pôr nunca um fato novo. O gato fala. Mas o que é que diz o gato? Devias riscar a Marinha, as cerejas, a papoila e o sangue do nariz, aquela bandeira também a tens de riscar e deitar cinza nos gerânios. Tu deves, continua o gato a dizer, viver só de rins, baço e fígado, do pulmão sem ar, ácido, da urina dos rins, não diluída, de baço estragado e fígado rijo, da panela cinzenta: é assim que deves viver. E na parede, onde antes o quadro verde ruminava o verde sem parar, deves escrever, com o teu lápis afiado, ascese, escreve: ascese. É assim que diz o gato: escreve ascese. Günter Grass


25 de Janeiro de 2015

Montargil

montargil.jpg lago


25 de Janeiro de 2015

Antepassar

No antepassado o silêncio sepulcral do desinteresse com que me debruço ao destino. O passar dos anos amiúda a inconsequência de seguir em frente. Alardeio o futuro em progressos e não aprendo a exteriorizar sentimentos - em laboratórios tentam novo paradigma humano feito gesto e plástico. Aos antepassados rendo glórias em datas pré-fixadas. Denomino ruas. Fixo placas. - no fim do corredor chora o passado: triste rosto à imagem. Pedro Du Bois


24 de Janeiro de 2015

Taras Loboda

Taras%20Loboda%2C%20Musetouch.jpg olhar


24 de Janeiro de 2015

Um minuto de silêncio por Ludwika Wawrzyńska

E tu aonde vais? Se ali já só há fumo e fogo! - Ficaram lá quatro crianças, vou buscá-las! Como é possível assim de repente desprender-se de si próprio? Da ordem do dia e da noite? Das neves do ano que vem? Dos rubores das maçãs? Da mágoa do amor que nunca é demais? Sem se despedir, nem ser despedida sozinha a correr acode as crianças, olhem só, trá-las em braços, mergulhando no fogo até aos joelhos, levando o fulgor no cabelo revolto. Ela, que queria comprar um bilhete, sair da cidade por um tempo, escrever uma carta, abrir a janela após a trovoada, trilhar o caminho aberto no bosque, espantar-se com as formigas, ver como o lago se enruga com o sopro do vento. Um minuto de silêncio pelos mortos perdura às vezes pela noite fora. Sou testemunha ocular do voo das nuvens e dos pássaros, ouço a relva crescer e sei como ela se chama, decifrei milhões de caracteres impressos, segui com o telescópio estrelas bizarras, só que até hoje ninguém me pediu socorro e se acaso lamento uma folha, um vestido, um poema – De nós próprios só sabemos, o que nos foi posto à prova. É isto o que eu vos digo deste meu coração que desconheço. WislawaSzymborska


23 de Janeiro de 2015

Abbott H. Thayer

Abbott%20H.%20Thayer.jpg humor merencório


23 de Janeiro de 2015

Sobre a Tradução da Poesia

Como um abelhão desajeitado pousa numa flor vergando o frágil caule abre caminho com os cotovelos através duma fileira de pétalas através das folhas de um dicionário quer chegar onde se concentram a fragrância e a doçura e embora esteja constipado e sem gosto continua a tentar até que a cabeça choca contra o pistilo amarelo e não consegue ir mais longe é tão duro forçar a coroa até chegar à raiz por isso levanta voo emerge pavoneando-se zumbindo: eu estive lá e aqueles que não acreditam nisso olhem para o seu nariz amarelo de pólen Zbigniew Herbert, trad. Jorge Sousa Braga


22 de Janeiro de 2015

O Divino Cláudio

Dizem que fui gerado pela Natureza mas que esta deixou o trabalho por acabar como uma escultura abandonada um esboço o fragmento danificado de um poema durante anos fingi que era um idiota os idiotas vivem mais seguros calmamente pus de lado os insultos se plantasse todos os buracos cavados na minha face um olival teria nascido um vasto oásis de palmeiras recebi uma educação complexa Tito Lívio os retóricos e os filósofos falava grego como um ateniense embora só me pareça com Platão quando estou deitado completei os meus estudos nas tavernas da doca e nos bordéis esses dicionários não escritos de latim vulgar e vós insondáveis tesouros de crime e luxúria depois do assassínio de Calígula escondi-me por detrás de uma cortina arrastaram-me de lá à força não consegui adoptar uma expressão inteligente quando arremessaram aos meus pés o mundo ridículo e plano a partir de então tornei-me o mais diligente imperador da história universal um Hércules de burocracia recordo com orgulho a minha lei liberal permitindo que se soltassem gases do traseiro durante as festas nego a acusação de crueldade muitas vezes feita contra mim na realidade estava apenas distraído no dia do assassínio violento de Messalina— coitada admito que foi morta às minhas ordens— perguntei durante o banquete—porque é que Messalina não veio respondeu-me um silêncio de morte na verdade tinha-me esquecido às vezes acontecia-me convidar o morto para um jogo de dados punia a falta de comparência com uma multa sobrecarregado de trabalho devo ter errado em alguns pequenos detalhes é o que parece ordenei que trinta e cinco senadores e os cavaleiros de cerca de três centuriões fossem executados bem e daí um pouco menos de púrpura menos anéis de ouro por outro lado— e isto não é um gracejo— mais espaço no teatro ninguém queria compreender que o objectivo destas medidas era sublime sempre desejei fazer com que a morte fosse familiar às pessoas embotar o seu gume reduzi-la à dimensão banal do dia a dia de uma leve depressão ou de uma constipação eis aqui a prova da delicadeza dos meus sentimentos retirei a estátua do gentil Augusto da praça das execuções para que o mármore sensível não ouvisse os berros dos condenados as minhas noites eram dedicadas ao estudo escrevi a história dos Etruscos a história de Cartago uma composição ligeira sobre Saturno uma introdução à história do jogo e um tratado sobre o veneno das serpentes fui eu quem salvou Ostia da invasão da areia drenei pântanos construí aquedutos desde então tornou-se mais fácil em Roma lavar o sangue expandi as fronteiras do império até à Britânia e à Mauritânia e se não me engano a Trácia a minha morte deve-se à minha mulher Agripina e a uma paixão incontrolável por boletos os cogumelos— a essência da floresta—tornaram-se a essência da morte posteridade—recorda com honra e gratidão pelo menos um mérito do divino Cláudio acrescentei novos sinais e sons ao nosso alfabeto expandi os limites da fala isto é os limites da liberdade as letras que descobri—adoradas filhas—Digama e Antisigma precedem a minha sombra enquanto com passos titubeantes persigo a sombria terra de Orcus Zbigniew Herbert, trad. Jorge Sousa Braga


21 de Janeiro de 2015

Pablo Picasso

Pablo%20Picasso%20%281902%29.jpg azul em beleza


21 de Janeiro de 2015

Agora que estamos sós podemos falar príncipe de homem para homem ainda que estejas tombado nas escadas e vejas o mesmo que uma formiga morta nada senão um sol negro com seus raios quebrados As tuas mãos sempre que pensava nelas faziam-me sorrir e agora que jazem sobre a pedra como ninhos derrubados parecem tão indefesas como antes O fim é precisamente isto As mãos caídas A espada caída Caída a cabeça e os pés do cavaleiro enfiados em macias pantufas Sem nunca teres sido soldado terás um funeral com honras militares o único ritual que mais ou menos conheço Não haverá círios nem cantos apenas mechas e tiros de canhão crepes arrastados pelas ruas elmos botas cavalos salvas de artilharia tambores e tambores nada de muito refinado eu sei serão essas as minhas manobras antes de tomar o poder há que agarrar a cidade pelo pescoço e sacudi-la um pouco De qualquer modo terias que morrer Hamlet não foste feito para a vida acreditavas em noções cristalinas e não no barro dos homens sempre em sobressalto como num sono perseguias quimeras mastigavas o ar com voracidade para depois o vomitar das coisas humanas não sabias nada nem sequer respirar sabias Agora alcançaste a paz Hamlet levaste a cabo o que te competia e alcançaste a paz O resto não é silêncio é antes pertença minha escolheste o papel mais fácil o golpe elegante mas o que é uma morte heróica comparada com a eterna vigília tendo na mão uma fria maçã um alto cadeirão com vista para o formigueiro e para a esfera do relógio Príncipe adeus tenho assuntos a tratar a questão dos esgotos o decreto respeitante a prostitutas e mendigos há também que elaborar um melhor sistema prisional já que tu próprio o disseste e bem a Dinamarca é uma prisão Vou tratar dos meus assuntos Esta noite nasceu uma estrela chamada Hamlet Aqui nos separamos as coisas que deixarei ao morrer não serão dignas de uma tragédia Pessoas como nós não se dão as boas vindas nem se despedem vivemos em arquipélagos e essa água essas palavras que podem elas fazer príncipe que podem Zbigniew Herbert, trad. José Miguel Silva


21 de Janeiro de 2015

Ensinamentos

Sem amor toda a adoração é um fardo toda a dança se transforma em rotina toda a música é um mero barulho. Toda a chuva do céu poderia cair sobre o mar - Sem amor, nenhuma gota se transformaria em uma pérola. Rumi


20 de Janeiro de 2015

Escrita da Terra

Afinal os romanos eram como eu: amavam os lugares onde a grandeza e a solidão andam de mãos dadas. Eugénio de Andrade


20 de Janeiro de 2015

A Pedra

A pedra é bela, opaca, peso-a gostosamente como um pão. É escura, baça, terrosa, avermelhada, polvilhada de cinza. Contemplo-a: é evidente, impenetrável, preciosa. António Ramos Rosa


19 de Janeiro de 2015

Edgar Degas

Edgar%20Degas%2C%20Dans%20la%20chappellerie%2C%201882.jpg dans la chappellerie, 1882


19 de Janeiro de 2015

Mar da Palha

Lá vai no Mar da Palha o Cacilheiro, comboio de Lisboa sobre a água: Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro. Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa. Na Ponte passam carros e turistas iguais a todos que há no mundo inteiro, mas, embora mais caras, a Ponte não tem vistas como as dos peitoris do Cacilheiro. Leva namorados, marujos, soldados e trabalhadores, e parte dum cais que cheira a jornais, morangos e flores. Regressa contente, levou muita gente e nunca se cansa. Parece um barquinho lançado no Tejo por uma criança. Ary dos Santos


19 de Janeiro de 2015

Citadinos

Como os buracos de um crivo, apertadas, As filas de janelas; empurrando-se, As casas tocam-se de perto, erguendo-se Pardas e inchadas como estrangulados. Engalfinhadas umas nas outras vejo No carro eléctrico as duas fachadas De gente, descarregando olhares, caladas, E cresce o emaranhado do desejo. As paredes são finas como a pele, Todos me ouvem quando choro, ou então É como um berro a conversa ciciada: Emudecidos, em caverna fechada, Sem ninguém que lhes toque, olhe para eles, Todos estão longe e sentem: solidão. Alfred Wolfenstein, trad. João Barrento


18 de Janeiro de 2015

Nocturno Europeu

façam com as palavras aquilo que quiserem, desfaçam-nas: uma palavra desfeita não magoa, uma palavra inteira rasga a boca, uma palavra inteira é a certeza de outra palavra inteira, a corda fina que vai da trave à terra, do caibro ao vento de uma janela aberta: a imprecisa minúcia da poeira Rui Nunes


18 de Janeiro de 2015

Bo Bartlett

BB-Penumbra.jpg o sonho


18 de Janeiro de 2015

A Lua de Tabriz

Com a maré da manhã surgiu no céu uma lua. De lá desceu e fitou-me. Como o falcão que arrebata o pássaro, Essa lua agarrou-me e cruzou o céu. Quando olhei para mim, já não me vi: Naquela lua meu corpo se tornara, Por graça, sutil como a alma. Viajei então em estado de alma E nada mais vi senão a lua. Até que o segredo do saber divino Me foi por inteiro revelado: As nove esferas celestes fundiram-se na lua E o vaso do meu ser dissolveu-se inteiro no mar. Quando o mar quebrou-se em ondas, A sabedoria divina lançou sua voz ao longe. Assim tudo ocorreu, assim tudo foi feito. Logo o mar inundou-se de espumas, E cada gota de espuma Tomou forma e corpo. Ao receber o chamado do mar, Cada corpo de espuma se desfez E tornou-se espírito no oceano. Sem a majestade de Shams de Tabriz Não se poderia contemplar a lua Nem tornar-se mar. Rumi


17 de Janeiro de 2015

A Demora

O amor nos condena: demoras mesmo quando chegas antes. Porque não é no tempo que eu te espero. Espero-te antes de haver vida e és tu quem faz nascer os dias. Quando chegas já não sou senão saudade e as flores tombam-me dos braços para dar cor ao chão em que te ergues. Perdido o lugar em que te aguardo, só me resta água no lábio para aplacar a tua sede. Envelhecida a palavra, tomo a lua por minha boca e a noite, já sem voz se vai despindo em ti. O teu vestido tomba e é uma nuvem. O teu corpo se deita no meu, um rio se vai aguando até ser mar. Mia Couto


17 de Janeiro de 2015

Georges-Marie-Julien Girardot

Georges-Marie-Julien%20Girardot%2C%20Courtesy%20to%20the%20Moon%2C%20Twilight%2C%201890.jpg há muitas luas...


17 de Janeiro de 2015

Invenção de Eros

Fui procurar-te para ser contigo quanto colhi das horas que invadias. Colhi da própria dor um nome antigo que fosse o nome exacto em que virias. Da límpida substância dos teus risos fui-te inventando dentro dos meus braços e os sóis mais densos puros e precisos vieram dar-me a sombra dos teus passos. E já não eram meus senão de erguê-los, a tua face e os lábios e os cabelos e o teu olhar para ninguém voltado. Mas quem, o pleno amor de que nascias se o deus que a ti igual encontrarias ficou, pelo teu olhar, desabitado? Vítor Matos e Sá


16 de Janeiro de 2015

Alfredo Keil

alfredo%20keil.jpg Ginjal, um lugar belíssimo


16 de Janeiro de 2015

Alvorecer

Lívido alvorecer, eu estou sem deus. Caras de sono andam pelas ruas sepultadas por feixes de erva gelada. Gritam no frio oco os vendedores. Alvoradas mais densas de cores já vi nos mares nos campos inutilmente. Entrego-me ao amor daqueles rostos. Sandro Penna, trad. Andrea Ragusa


15 de Janeiro de 2015

um amor que arde

«Poeta exclusivo do amor» me chamaram. E era talvez certo. Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores da cidade longínqua não são eles também amor? Sob nuvens quentes não são ainda o som de um amor que arde e não mais se afasta? Sandro Penna, trad. David Mourão-Ferreira


14 de Janeiro de 2015

Gustav Klimt

Gustaav.jpg luzes em tempos difusos


14 de Janeiro de 2015

Escutar

Escuto o barulho dos tambores no som dos homens trabalhando escuto o silêncio reservado do poeta no alarido das crianças escuto o sentimento extravasado no discurso do profeta escuto o anoitecer no cão que late ao pássaro no voo indelével escuto o raspar da pedra sobre a pedra ao escutar você e não escuto nada Pedro Du Bois


13 de Janeiro de 2015

Pierre Bonnard

Pierre%20Bonnard%20-%20Le%20double%20pin%20or%20Les%20deux%20pins%20%28Environs%20de%20Cannes%29%2C%201914.jpg saudades de Cannes


13 de Janeiro de 2015

Suave e silenciosamente

Tememos demasiadas doenças incuráveis, terramotos, viagens repentinas, telegramas atrasados – e um olhar, cravado na nuca – mas a seu tempo tudo isso vem, sem grande pressa – e sem atrasos -, exactamente quando chega a hora, nem sempre de forma definitiva, suave e silenciosamente, sem deixar pegadas na paisagem movediça como a hora de partida do comboio ou uma ida ao cinema Ryszard Krynicki


12 de Janeiro de 2015

Wassily Kandinsky

Wassily%20Kandinsky%20%281866-1944%29%20Mountain%20Landscape%20with%20Lake%2C%20circa%201902.jpg montanha e lago, paisagem pintada em 1902


12 de Janeiro de 2015

História de José Salmasius

José Salmasius era um homem bafejado pela sorte. Quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. Vou escrever esta frase de novo: quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. E isto é apenas um esboço daquilo que de facto sucedia, porque normalmente voava para dentro da sua boca toda a espécie de excelentes assados, cozidos, grelhados, estufados, etc. Sim, concordo que isto não tem muito a ver com literatura, mas a culpa não é minha; limito-me a contar a verdade. Um dia, de repente, também Salmasius desatou a voar. E voou, voou sem parar. Do outro lado do mundo, um crocodilo bafejado pela sorte estava a pensar em comida. Salmasius quase não sentiu nada. Foi tudo rápido demais. Rui Manuel Amaral


10 de Janeiro de 2015

Pesadelos

Nos meus pesadelos as paredes da casa estalam como se uma ruína iminente a sombreasse e com estrondo alarga em brecha o fino rendilhado com que as fissuras marcaram as paredes. Nos meus pesadelos sonho com uma casa sobre o tempo e com varandas de areia expostas à erosão. Sonho com pequenos símbolos de que reconheço a matriz e sei-lhes a chave e o código. Sonho com as circunstâncias do tempo e do espaço. E sonho com a impermanência e com o estrago. Ivone Mendes da Silva


10 de Janeiro de 2015

Advocatus Diaboli

Do fundo do coração, eu odeio a turba dos grandes deste mundo, e dos seus mensageiros. E, mais ainda, a genialidade que eles praticam. Friedrich Holderlin


10 de Janeiro de 2015

Carl Grossberg

berlin_avus_1928.jpg Berlim, em 1928


10 de Janeiro de 2015

O Percurso Diário

Eu vou por este sol além e ele é quotidiano até ao fim como se até hoje ninguém tivesse no sol e fora do sol também morrido a morte por mim Ruy Belo


9 de Janeiro de 2015

Paul Delvaux

Paul%20Delvaux%20%281897%E2%80%931994%29.jpg lua minguante


9 de Janeiro de 2015

A Batalha

A Batalha travada entre a Alma E Nenhum Homem - é De entre todas as Batalhas que permanecem - De longe a Maior - Dela ninguém tem Notícia - A sua Campanha é Incorpórea Começa e termina – Invisível – desconhecida – Nem a História – a regista – Como Legiões de uma Noite Que o Amanhecer dispensa – estas resistem – Imperam – e exterminam - Emily Dickinson


8 de Janeiro de 2015

Poesia

Poesia é a arte de criar jardins imaginários com sapos reais. Marianne Moore


8 de Janeiro de 2015

Bo Bartlett

2009-The-Gatherer-lg.jpg do mar em fundo


8 de Janeiro de 2015

Momentos

É em momentos depois de ter sonhado com o raro entretenimento dos teus olhos, quando (ficando aquém da ilusão) tenho pensado na tua singular boca que o meu coração tornou sábio; em momentos quando a cristalina escuridão sustenta a verdadeira aparição do teu sorrir (foi por entre lágrimas sempre) e o silêncio molda essa estranheza que ainda há pouco como minha pude sentir; momentos quando os meus outrora mais ilustres braços estão cheios de encantamento, quando o meu peito usa a intolerante luminosidade do teu regaço: um agudo momento mais branco do que os outros - voltando da terrível mentira do sono vejo as rosas do dia crescerem recônditas. e. e. Cummings


5 de Janeiro de 2015

Esta noite

Esta noite a tua boca é a mais bela rosa do universo Bebo para afogar este pesadelo Que o vinho seja rubro como as maçãs do teu rosto E os meus versos tão leves como os anéis dos teus cabelos Omar Khayyam


4 de Janeiro de 2015

Eugene De Blaas

Eugene%20De%20Blaas%2C%20The%20Love%20Letter%2C%201904.jpg carta de amor


4 de Janeiro de 2015

Desencanto dos Dias

Não era afinal isto que esperávamos Não era este o dia Que movimentos nos consente? Ah ninguém sabe como ainda és possível poesia neste país onde nunca ninguém viu aquele grande dia diferente Ruy Belo


2 de Janeiro de 2015

Ao sol

Ela foi encontrada! Quem? A eternidade. É o mar misturado Ao sol. Minha alma imortal, Cumpre a tua jura Seja o sol estival Ou a noite pura. Pois tu me liberas Das humanas quimeras, Dos anseios vãos! Tu voas então... — Jamais a esperança. Sem movimento. Ciência e paciência, O suplício é lento. Que venha a manhã, Com brasas de satã, O dever É vosso ardor. Ela foi encontrada! Quem? A eternidade. É o mar misturado Ao sol. Arthur Rimbaud


2 de Janeiro de 2015

Vincent Van Gogh

Vincent%20van%20Gogh%20o.jpg passeio de inverno


2 de Janeiro de 2015

Se falássemos de amor

Se falássemos de amor falávamos de outra maneira. A imagem de qualquer pedra servia bem a desordem que vai sobre esta mesa o copo de cerveja admiráveis modos de viver o mais mortal amigo é sempre qualquer coisa. Assim explicava os grandes reinados rituais o produto da terra a arte da guerra a ilusão vindo de muito longe a única árvore o único poço por fortuna. Hábil guerreiro e de palavra. Contra ele os que foram foram inutilmente. João Miguel Fernandes Jorge


1 de Janeiro de 2015

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido (mal vivido ou talvez sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?). Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar de arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto da esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre. Carlos Drummont de Andrade.


1 de Janeiro de 2015

Bo Bartlett

Bo%20Bartlett.jpg porque a arte (também) é contemporânea


1 de Janeiro de 2015

Caminho

Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho. Gabriela Mistral