Arquivo de janeiro 2015
¶ 31 de Janeiro de 2015
Um rasto de luz azulada
irradia da minha roupa.
Decorrida está metade do inverno.
Música de choques de mil blocos de gelo.
Fecho os olhos.
Há um mundo sem ruídos,
uma fissura,
onde os mortos,
como contrabando, são passados para o além.
Thomas Transtormer
¶ 31 de Janeiro de 2015
The Quiet Room, em 1929
¶ 31 de Janeiro de 2015
Precisa a paz
tem a guerra
precisa ver
tem a escuridão
precisa falar
tem a mudez declarada
em lei no alterado sentido
do saber: precisa punir
tem a absolvição
do esquecimento.
Pedro Du Bois
¶ 31 de Janeiro de 2015
Correm um para o outro de braços abertos,
exclamam ridentes: Até que enfim! Enfim!
Ambos vestidos com agasalhos de inverno,
gorros de lã,
cachecóis,
luvas,
botas,
mas só para nós.
Porque um para o outro estão nus.
Wislawa Szymborska
¶ 30 de Janeiro de 2015
ciprestes oitocentistas
¶ 30 de Janeiro de 2015
Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum,
em quietude pintada e concentração,
dia após dia, não verter o leite
do jarro para a vasilha,
o Mundo não merece
o fim do mundo.
Wislawa Szymborska
¶ 29 de Janeiro de 2015
o fim de um sonho, em 1908
¶ 29 de Janeiro de 2015
Eu – adolescente?
Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim,
saudá-la-ia como pessoa que me é próxima,
embora seja, para mim, estranha e distante?
Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa
pela simples razão de termos
a mesma data de nascimento?
Tão poucas semelhanças entre nós,
quiçá, apenas os ossos são os mesmos,
a caixa craniana, as órbitas.
Já que os olhos dela parecem maiores,
as pestanas mais compridas, ela mais alta
e todo o seu corpo revestido
com uma pele lisa, sem mácula.
Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos,
no mundo dela, porém, quase todos estão vivos,
enquanto no meu já não há quase ninguém
deste círculo que tínhamos comum.
Somos tão diferentes uma da outra,
pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes.
Ela pouco sabe –
mas com uma teimosia digna de melhores causas.
Eu sei muito mais –
mas sem nada saber ao certo.
Mostra-me uns poemas,
escritos com letra clara e cuidada,
como já há muito eu não escrevo.
Leio esses poemas e leio.
Bem, talvez este daqui,
se o reduzirmos
e corrigirmos aqui e ali.
O resto nada de bom augura.
A conversa está difícil.
No seu pobre relógio,
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, já é muito mais caro e preciso.
Na despedida nada, um breve sorriso
e nenhuma comoção.
Somente quando se afasta
e, apressada, se esquece do cachecol.
Um cachecol de pura lã,
às riscas coloridas
feito em croché para ela
pela nossa mãe.
Ainda hoje o tenho.
Wislawa Szymborska
¶ 28 de Janeiro de 2015
Por favor,
respeita o meu silêncio,
o silêncio é a minha melhor arma.
Escutaste as minhas palavras
quando fiquei silencioso?
Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?
Nizar Qabbani
¶ 28 de Janeiro de 2015
Ao que parece olhei para trás por curiosidade.
Mas, para além de curiosidade, podia ter outras razões.
Olhei para trás com pena da malga de prata.
Por distração – ao atar a correia da sandália.
Para não ver mais os ombros justiceiros
do meu marido, Lot.
Com a certeza repentina de que, se eu morresse,
ele não se dignaria parar.
Com a desobediência dos humildes.
Ao escutar se alguém vinha atrás de nós.
Afetada pelo silêncio, na esperança de que Deus mudasse de ideias.
As nossas duas filhas afastavam-se já para além da colina.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A inutilidade da caminhada. A sonolência.
Olhei para trás ao pousar a trouxa no chão.
Olhei para trás receosa sem saber onde pôr o pé.
No meu caminho atravessaram-se cobras,
aranhas, ratos do campo e filhotes de abutre.
Já não eram nem bons nem maus – porque tudo o que estava vivo,
rastejava e pulava num alvoroço gregário.
Olhei para trás por solidão.
Com vergonha de fugir às escondidas.
Com vontade de gritar e regressar.
Ou terá sido somente quando se ergueu um pé-de-vento
que me soltou o cabelo e levantou o vestido,
ficando eu com a sensação de que atrás das muralhas de Sodoma
toda a gente estava a ver e desatara a rir às gargalhadas.
Olhei para trás cheia de raiva.
Para me saciar com a sua imensa destruição.
Olhei para trás por todos os motivos atrás invocados.
Olhei para trás sem querer.
Foi um pedregulho que se virou, rangendo sob os meus pés.
Foi uma fenda que de repente me cortou o caminho.
Na borda um hamster vacilava agarrando-se com duas patinhas.
E foi então que ambos olhámos para trás.
Não. Não. Eu continuei a correr,
rastejando e levantando voo,
enquanto as trevas não desabaram do céu
e, com elas, uma gravilha escaldante e pássaros mortos.
Com falta de ar, dei várias voltas.
Quem o visse, diria que eu estava a dançar.
Não é de excluir que tivesse os olhos abertos.
É possível que tivesse caído com o rosto virado para a cidade.
Wislawa Szymborska, trad. Teresa Fernandes Swiatkiewicz
¶ 26 de Janeiro de 2015
a curiosidade e três gatos
¶ 25 de Janeiro de 2015
O gato fala.
Mas o que é que diz o gato?
Deves pegar num lápis afiado
e fazer o sombreado das noivas e da neve,
deves gostar da cor cinzenta,
viver debaixo de um céu com nuvens.
O gato fala.
Mas o que é que diz o gato?
Deves vestir-te com o jornal da tarde,
de serapilheira como as batatas
e virar este fato uma vez atrás da outra
e não pôr nunca um fato novo.
O gato fala.
Mas o que é que diz o gato?
Devias riscar a Marinha,
as cerejas, a papoila e o sangue do nariz,
aquela bandeira também a tens de riscar
e deitar cinza nos gerânios.
Tu deves, continua o gato a dizer,
viver só de rins, baço e fígado,
do pulmão sem ar, ácido,
da urina dos rins, não diluída,
de baço estragado e fígado rijo,
da panela cinzenta: é assim que deves viver.
E na parede, onde antes
o quadro verde ruminava o verde sem parar,
deves escrever, com o teu lápis afiado,
ascese, escreve: ascese.
É assim que diz o gato: escreve ascese.
Günter Grass
¶ 25 de Janeiro de 2015
lago
¶ 25 de Janeiro de 2015
No antepassado o silêncio sepulcral
do desinteresse com que me debruço
ao destino. O passar dos anos
amiúda a inconsequência de seguir
em frente. Alardeio o futuro em progressos
e não aprendo a exteriorizar sentimentos
- em laboratórios tentam
novo paradigma humano
feito gesto e plástico.
Aos antepassados rendo glórias
em datas pré-fixadas. Denomino
ruas. Fixo placas.
- no fim do corredor
chora o passado: triste
rosto à imagem.
Pedro Du Bois
¶ 24 de Janeiro de 2015
olhar
¶ 24 de Janeiro de 2015
E tu aonde vais?
Se ali já só há fumo e fogo!
- Ficaram lá quatro crianças,
vou buscá-las!
Como é possível
assim de repente
desprender-se de si próprio?
Da ordem do dia e da noite?
Das neves do ano que vem?
Dos rubores das maçãs?
Da mágoa do amor
que nunca é demais?
Sem se despedir, nem ser despedida
sozinha a correr acode as crianças,
olhem só, trá-las em braços,
mergulhando no fogo até aos joelhos,
levando o fulgor no cabelo revolto.
Ela, que queria comprar um bilhete,
sair da cidade por um tempo,
escrever uma carta,
abrir a janela após a trovoada,
trilhar o caminho aberto no bosque,
espantar-se com as formigas,
ver como o lago se enruga
com o sopro do vento.
Um minuto de silêncio pelos mortos
perdura às vezes pela noite fora.
Sou testemunha ocular
do voo das nuvens e dos pássaros,
ouço a relva crescer
e sei como ela se chama,
decifrei milhões
de caracteres impressos,
segui com o telescópio
estrelas bizarras,
só que até hoje
ninguém me pediu socorro
e se acaso lamento
uma folha, um vestido, um poema –
De nós próprios só sabemos,
o que nos foi posto à prova.
É isto o que eu vos digo
deste meu coração que desconheço.
WislawaSzymborska
¶ 23 de Janeiro de 2015
humor merencório
¶ 23 de Janeiro de 2015
Como um abelhão desajeitado
pousa numa flor
vergando o frágil caule
abre caminho com os cotovelos
através duma fileira de pétalas
através das folhas de um dicionário
quer chegar
onde se concentram a fragrância e a doçura
e embora esteja constipado
e sem gosto
continua a tentar
até que a cabeça choca
contra o pistilo amarelo
e não consegue ir mais longe
é tão duro
forçar a coroa
até chegar à raiz
por isso levanta voo
emerge pavoneando-se
zumbindo:
eu estive lá
e aqueles
que não acreditam nisso
olhem para o seu nariz
amarelo de pólen
Zbigniew Herbert, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 22 de Janeiro de 2015
Dizem que fui
gerado pela Natureza
mas que esta deixou o trabalho por acabar
como uma escultura abandonada
um esboço
o fragmento danificado de um poema
durante anos fingi que era um idiota
os idiotas vivem mais seguros
calmamente pus de lado os insultos
se plantasse todos os buracos
cavados na minha face
um olival teria nascido
um vasto oásis de palmeiras
recebi uma educação complexa
Tito Lívio os retóricos e os filósofos
falava grego como um ateniense
embora só me pareça com Platão
quando estou deitado
completei os meus estudos
nas tavernas da doca e nos bordéis
esses dicionários não escritos de latim vulgar
e vós insondáveis tesouros de crime e luxúria
depois do assassínio de Calígula
escondi-me por detrás de uma cortina
arrastaram-me de lá à força
não consegui adoptar uma expressão inteligente
quando arremessaram aos meus pés o mundo
ridículo e plano
a partir de então tornei-me o mais diligente
imperador da história universal
um Hércules de burocracia
recordo com orgulho a minha lei liberal
permitindo que se soltassem gases
do traseiro durante as festas
nego a acusação de crueldade muitas vezes feita contra mim
na realidade estava apenas distraído
no dia do assassínio violento de Messalina—
coitada admito que foi morta às minhas ordens—
perguntei durante o banquete—porque é que Messalina não veio
respondeu-me um silêncio de morte
na verdade tinha-me esquecido
às vezes acontecia-me convidar
o morto para um jogo de dados
punia a falta de comparência com uma multa
sobrecarregado de trabalho
devo ter errado em alguns pequenos detalhes
é o que parece
ordenei que trinta e cinco senadores
e os cavaleiros de cerca de três
centuriões
fossem executados
bem e daí
um pouco menos de púrpura
menos anéis de ouro
por outro lado—
e isto não é um gracejo—
mais espaço no teatro
ninguém queria compreender
que o objectivo destas medidas era sublime
sempre desejei fazer com que a morte fosse familiar às pessoas
embotar o seu gume
reduzi-la à dimensão banal
do dia a dia
de uma leve depressão ou de uma constipação
eis aqui a prova
da delicadeza dos meus sentimentos
retirei a estátua do gentil Augusto
da praça das execuções
para que o mármore sensível
não ouvisse os berros
dos condenados
as minhas noites eram dedicadas ao estudo
escrevi a história dos Etruscos
a história de Cartago
uma composição ligeira sobre Saturno
uma introdução à história do jogo
e um tratado sobre o veneno das serpentes
fui eu quem salvou Ostia
da invasão da areia
drenei pântanos
construí aquedutos
desde então tornou-se mais fácil em Roma
lavar o sangue
expandi as fronteiras do império
até à Britânia e à Mauritânia
e se não me engano a Trácia
a minha morte deve-se à minha mulher Agripina
e a uma paixão incontrolável por boletos os cogumelos—
a essência da floresta—tornaram-se a essência da morte
posteridade—recorda com honra e gratidão
pelo menos um mérito do divino Cláudio
acrescentei novos sinais e sons ao nosso alfabeto
expandi os limites da fala isto é
os limites da liberdade
as letras que descobri—adoradas
filhas—Digama e Antisigma
precedem a minha sombra
enquanto com passos titubeantes
persigo a sombria terra de Orcus
Zbigniew Herbert, trad. Jorge Sousa Braga
¶ 21 de Janeiro de 2015
azul em beleza
¶ 21 de Janeiro de 2015
Agora que estamos sós podemos falar príncipe de homem para
homem
ainda que estejas tombado nas escadas e vejas o mesmo que uma
formiga morta
nada senão um sol negro com seus raios quebrados
As tuas mãos sempre que pensava nelas faziam-me sorrir
e agora que jazem sobre a pedra como ninhos derrubados
parecem tão indefesas como antes O fim é precisamente isto
As mãos caídas A espada caída Caída a cabeça
e os pés do cavaleiro enfiados em macias pantufas
Sem nunca teres sido soldado terás um funeral com honras
militares
o único ritual que mais ou menos conheço
Não haverá círios nem cantos apenas mechas e tiros de canhão
crepes arrastados pelas ruas elmos botas cavalos salvas de
artilharia
tambores e tambores nada de muito refinado eu sei
serão essas as minhas manobras antes de tomar o poder
há que agarrar a cidade pelo pescoço e sacudi-la um pouco
De qualquer modo terias que morrer Hamlet não foste feito para a
vida
acreditavas em noções cristalinas e não no barro dos homens
sempre em sobressalto como num sono perseguias quimeras
mastigavas o ar com voracidade para depois o vomitar
das coisas humanas não sabias nada nem sequer respirar sabias
Agora alcançaste a paz Hamlet levaste a cabo o que te competia
e alcançaste
a paz O resto não é silêncio é antes pertença minha
escolheste o papel mais fácil o golpe elegante
mas o que é uma morte heróica comparada com a eterna vigília
tendo na mão uma fria maçã um alto cadeirão
com vista para o formigueiro e para a esfera do relógio
Príncipe adeus tenho assuntos a tratar a questão dos esgotos
o decreto respeitante a prostitutas e mendigos
há também que elaborar um melhor sistema prisional
já que tu próprio o disseste e bem a Dinamarca é uma prisão
Vou tratar dos meus assuntos Esta noite nasceu
uma estrela chamada Hamlet Aqui nos separamos
as coisas que deixarei ao morrer não serão dignas de uma tragédia
Pessoas como nós não se dão as boas vindas nem se despedem
vivemos
em arquipélagos
e essa água essas palavras que podem elas fazer príncipe que
podem
Zbigniew Herbert, trad. José Miguel Silva
¶ 21 de Janeiro de 2015
Sem amor
toda a adoração é um fardo
toda a dança se transforma em rotina
toda a música é um mero barulho.
Toda a chuva do céu poderia cair sobre o mar -
Sem amor,
nenhuma gota se transformaria em uma pérola.
Rumi
¶ 20 de Janeiro de 2015
Afinal os romanos eram
como eu: amavam
os lugares onde a grandeza
e a solidão
andam de mãos dadas.
Eugénio de Andrade
¶ 20 de Janeiro de 2015
A pedra é bela, opaca,
peso-a gostosamente como um pão.
É escura, baça, terrosa, avermelhada,
polvilhada de cinza.
Contemplo-a: é evidente, impenetrável,
preciosa.
António Ramos Rosa
¶ 19 de Janeiro de 2015
dans la chappellerie, 1882
¶ 19 de Janeiro de 2015
Lá vai no Mar da Palha o Cacilheiro,
comboio de Lisboa sobre a água:
Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro.
Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.
Na Ponte passam carros e turistas
iguais a todos que há no mundo inteiro,
mas, embora mais caras, a Ponte não tem vistas
como as dos peitoris do Cacilheiro.
Leva namorados, marujos,
soldados e trabalhadores,
e parte dum cais
que cheira a jornais,
morangos e flores.
Regressa contente,
levou muita gente
e nunca se cansa.
Parece um barquinho
lançado no Tejo
por uma criança.
Ary dos Santos
¶ 19 de Janeiro de 2015
Como os buracos de um crivo, apertadas,
As filas de janelas; empurrando-se,
As casas tocam-se de perto, erguendo-se
Pardas e inchadas como estrangulados.
Engalfinhadas umas nas outras vejo
No carro eléctrico as duas fachadas
De gente, descarregando olhares, caladas,
E cresce o emaranhado do desejo.
As paredes são finas como a pele,
Todos me ouvem quando choro, ou então
É como um berro a conversa ciciada:
Emudecidos, em caverna fechada,
Sem ninguém que lhes toque, olhe para eles,
Todos estão longe e sentem: solidão.
Alfred Wolfenstein, trad. João Barrento
¶ 18 de Janeiro de 2015
façam com as palavras aquilo que quiserem,
desfaçam-nas:
uma palavra desfeita não magoa,
uma palavra inteira rasga a boca,
uma palavra inteira é a certeza
de outra palavra inteira, a corda fina
que vai da trave à terra, do caibro ao vento
de uma janela aberta:
a imprecisa
minúcia da poeira
Rui Nunes
¶ 18 de Janeiro de 2015
o sonho
¶ 18 de Janeiro de 2015
Com a maré da manhã surgiu no céu uma lua.
De lá desceu e fitou-me.
Como o falcão que arrebata o pássaro,
Essa lua agarrou-me e cruzou o céu.
Quando olhei para mim, já não me vi:
Naquela lua meu corpo se tornara,
Por graça, sutil como a alma.
Viajei então em estado de alma
E nada mais vi senão a lua.
Até que o segredo do saber divino
Me foi por inteiro revelado:
As nove esferas celestes fundiram-se na lua
E o vaso do meu ser dissolveu-se inteiro no mar.
Quando o mar quebrou-se em ondas,
A sabedoria divina lançou sua voz ao longe.
Assim tudo ocorreu, assim tudo foi feito.
Logo o mar inundou-se de espumas,
E cada gota de espuma
Tomou forma e corpo.
Ao receber o chamado do mar,
Cada corpo de espuma se desfez
E tornou-se espírito no oceano.
Sem a majestade de Shams de Tabriz
Não se poderia contemplar a lua
Nem tornar-se mar.
Rumi
¶ 17 de Janeiro de 2015
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.
O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
Mia Couto
¶ 17 de Janeiro de 2015
há muitas luas...
¶ 17 de Janeiro de 2015
Fui procurar-te para ser contigo
quanto colhi das horas que invadias.
Colhi da própria dor um nome antigo
que fosse o nome exacto em que virias.
Da límpida substância dos teus risos
fui-te inventando dentro dos meus braços
e os sóis mais densos puros e precisos
vieram dar-me a sombra dos teus passos.
E já não eram meus senão de erguê-los,
a tua face e os lábios e os cabelos
e o teu olhar para ninguém voltado.
Mas quem, o pleno amor de que nascias
se o deus que a ti igual encontrarias
ficou, pelo teu olhar, desabitado?
Vítor Matos e Sá
¶ 16 de Janeiro de 2015
Ginjal, um lugar belíssimo
¶ 16 de Janeiro de 2015
Lívido alvorecer, eu estou sem deus.
Caras de sono andam pelas ruas
sepultadas por feixes de erva gelada.
Gritam no frio oco os vendedores.
Alvoradas mais densas de cores já vi
nos mares nos campos inutilmente.
Entrego-me ao amor daqueles rostos.
Sandro Penna, trad. Andrea Ragusa
¶ 15 de Janeiro de 2015
«Poeta exclusivo do amor»
me chamaram. E era talvez certo.
Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores
da cidade longínqua
não são eles também amor?
Sob nuvens quentes
não são ainda o som
de um amor que arde
e não mais se afasta?
Sandro Penna, trad. David Mourão-Ferreira
¶ 14 de Janeiro de 2015
luzes em tempos difusos
¶ 14 de Janeiro de 2015
Escuto o barulho dos tambores
no som dos homens trabalhando
escuto o silêncio reservado do poeta
no alarido das crianças
escuto o sentimento extravasado
no discurso do profeta
escuto o anoitecer no cão que late
ao pássaro no voo indelével
escuto o raspar da pedra sobre a pedra
ao escutar você e não escuto nada
Pedro Du Bois
¶ 13 de Janeiro de 2015
saudades de Cannes
¶ 13 de Janeiro de 2015
Tememos demasiadas doenças incuráveis,
terramotos, viagens repentinas,
telegramas atrasados – e um olhar, cravado
na nuca –
mas a seu tempo tudo isso vem,
sem grande pressa – e sem atrasos -,
exactamente quando chega a hora,
nem sempre de forma definitiva,
suave e silenciosamente,
sem deixar pegadas na paisagem
movediça
como a hora de partida do comboio
ou uma ida ao cinema
Ryszard Krynicki
¶ 12 de Janeiro de 2015
montanha e lago, paisagem pintada em 1902
¶ 12 de Janeiro de 2015
José Salmasius era um homem bafejado pela sorte. Quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. Vou escrever esta frase de novo: quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. E isto é apenas um esboço daquilo que de facto sucedia, porque normalmente voava para dentro da sua boca toda a espécie de excelentes assados, cozidos, grelhados, estufados, etc.
Sim, concordo que isto não tem muito a ver com literatura, mas a culpa não é minha; limito-me a contar a verdade.
Um dia, de repente, também Salmasius desatou a voar. E voou, voou sem parar. Do outro lado do mundo, um crocodilo bafejado pela sorte estava a pensar em comida. Salmasius quase não sentiu nada. Foi tudo rápido demais.
Rui Manuel Amaral
¶ 10 de Janeiro de 2015
Nos meus pesadelos as paredes da casa estalam como se uma ruína iminente a sombreasse e com estrondo alarga em brecha o fino rendilhado com que as fissuras marcaram as paredes. Nos meus pesadelos sonho com uma casa sobre o tempo e com varandas de areia expostas à erosão. Sonho com pequenos símbolos de que reconheço a matriz e sei-lhes a chave e o código. Sonho com as circunstâncias do tempo e do espaço. E sonho com a impermanência e com o estrago.
Ivone Mendes da Silva
¶ 10 de Janeiro de 2015
Do fundo do coração, eu odeio a turba
dos grandes deste mundo, e dos seus
mensageiros.
E, mais ainda, a genialidade que eles
praticam.
Friedrich Holderlin
¶ 10 de Janeiro de 2015
Berlim, em 1928
¶ 10 de Janeiro de 2015
Eu vou por este sol além
e ele é quotidiano até ao fim
como se até hoje ninguém
tivesse no sol e fora do sol também
morrido a morte por mim
Ruy Belo
¶ 9 de Janeiro de 2015
lua minguante
¶ 9 de Janeiro de 2015
A Batalha travada entre a Alma
E Nenhum Homem - é
De entre todas as Batalhas que permanecem -
De longe a Maior -
Dela ninguém tem Notícia -
A sua Campanha é Incorpórea
Começa e termina –
Invisível – desconhecida –
Nem a História – a regista –
Como Legiões de uma Noite
Que o Amanhecer dispensa – estas resistem –
Imperam – e exterminam -
Emily Dickinson
¶ 8 de Janeiro de 2015
Poesia é a arte de criar jardins imaginários com sapos reais.
Marianne Moore
¶ 8 de Janeiro de 2015
do mar em fundo
¶ 8 de Janeiro de 2015
É em momentos depois de ter sonhado
com o raro entretenimento dos teus olhos,
quando (ficando aquém da ilusão) tenho pensado
na tua singular boca que o meu coração tornou sábio;
em momentos quando a cristalina escuridão sustenta
a verdadeira aparição do teu sorrir
(foi por entre lágrimas sempre) e o silêncio molda
essa estranheza que ainda há pouco como minha pude sentir;
momentos quando os meus outrora mais ilustres braços
estão cheios de encantamento, quando o meu peito
usa a intolerante luminosidade do teu regaço:
um agudo momento mais branco do que os outros
- voltando da terrível mentira do sono
vejo as rosas do dia crescerem recônditas.
e. e. Cummings
¶ 5 de Janeiro de 2015
Esta noite a tua boca é a mais bela rosa do universo
Bebo para afogar este pesadelo
Que o vinho seja rubro como as maçãs do teu rosto
E os meus versos tão leves como os anéis dos teus cabelos
Omar Khayyam
¶ 4 de Janeiro de 2015
carta de amor
¶ 4 de Janeiro de 2015
Não era afinal isto que esperávamos
Não era este o dia
Que movimentos nos consente?
Ah ninguém sabe
como ainda és possível poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente
Ruy Belo
¶ 2 de Janeiro de 2015
Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.
Minha alma imortal,
Cumpre a tua jura
Seja o sol estival
Ou a noite pura.
Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então...
— Jamais a esperança.
Sem movimento.
Ciência e paciência,
O suplício é lento.
Que venha a manhã,
Com brasas de satã,
O dever
É vosso ardor.
Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.
Arthur Rimbaud
¶ 2 de Janeiro de 2015
passeio de inverno
¶ 2 de Janeiro de 2015
Se falássemos de amor falávamos de outra maneira.
A imagem de qualquer pedra servia bem a desordem
que vai sobre esta mesa
o copo de cerveja
admiráveis modos de viver
o mais mortal amigo é sempre qualquer coisa.
Assim explicava os grandes reinados rituais
o produto da terra
a arte da guerra
a ilusão vindo de muito longe
a única árvore o único poço por fortuna. Hábil
guerreiro e de palavra.
Contra ele os que foram foram inutilmente.
João Miguel Fernandes Jorge
¶ 1 de Janeiro de 2015
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummont de Andrade.
¶ 1 de Janeiro de 2015
porque a arte (também) é contemporânea
¶ 1 de Janeiro de 2015
Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu.
Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu.
Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu.
Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho.
Gabriela Mistral