Arquivo de setembro 2024
¶ 30 de Setembro de 2024
Ainda toda tépida da roupa abandonada
Fechas os olhos e mexes
Como se movimenta um cântico que nasce
Vagamente mas de toda a parte
Odorífera e saborosa
Vais além sem te perderes
Das fronteiras do teu corpo
Saltaste por sobre o tempo
Nova mulher te eis
Ao infinito revelada
Paul Éluard, trad. Maria Gabriela Llansol
¶ 28 de Setembro de 2024
Multiplica-se o ar em indomáveis prodígios
que vai unificando em soberana leveza,
o mistério perfeito desdobrando em perspectivas.
Luz sobre a água, o sussurar das árvores
Voluptuosamente densas e aéreas.
Um
tesouro se reparte em incessante dádiva
de presenças, de volumes, de sabor e forma
e é toda a luz já como deusa visível
que nos trespassa o corpo com as pupilas da brisa.
¶ 28 de Setembro de 2024

¶ 27 de Setembro de 2024
É uma abordagem em que nos apercebemos da falência da memória, e que aquilo que nós somos não engloba aquilo que nós fomos. A percepção é fragmentária, subjectiva, a maior parte das vezes alucinatória, daquilo que nos torna aquilo que nós somos em determinados momentos. Por exemplo, a revisitação dos temas políticos da minha primeira juventude, em que me vejo a mim mesma com 15 anos a ler, por exemplo, o príncipe [anarquista russo] Kropotkin, em paixão não por aquilo que ele diz, mas pelo espírito nobre que ele é, pela extraordinária generosidade que ele mostra. A diferença, por exemplo, entre ler Kropotkin e ler Marx e Engels, que nos subjugam pela força da sua dialéctica, da sua argumentação de tal maneira férrea em A Ideologia Alemã que se impõe com uma evidência numa altura em que não estamos apetrechados para desconfiar das evidências, porque desconfiar das evidências é uma coisa que se vai aprendendo ao longo da vida, que o que é evidente não é normalmente verdadeiro, não é algo que se possa constituir como a nossa realidade interna de uma forma sólida. São fogachos, coisas que apanhamos. Curiosamente, é uma actividade estética. A beleza daquelas ideias subjuga-nos como ver um quadro belíssimo. Este tipo de revisitação não é uma memória. Eu não gosto muito do passado, não é uma coisa que me apeteça revisitar.
Luísa Costa Gomes, em entrevista a Isabel Lucas
¶ 27 de Setembro de 2024
Temos que lutar todos os dias contra a inércia. Não podemos permitir que a nossa existência pare, nesta assombrosa continuidade dos acontecimentos. E, para isso, precisamos, antes de tudo, reagir contra a invasão das ideias comuns, do comodismo de certas fórmulas, servilmente aceitas, da passividade das atitudes que se ficam repetindo, pela incapacidade de tentar outras melhores, ou pelo temor de enfrentar qualquer risco.
Precisamos resistir à sugestão perigosa, ao erro do exemplo. Não há exemplos. Há experiências, realizadas em certas épocas, por certas criaturas, em certas circunstâncias. Nunca seria possível reproduzir esse exemplo, sem forçarmos a própria natureza, porque o processo da vida não permite repetições. Apenas nos podem valer essas experiências como elemento de cultura, como o histórico da humanidade que nos precedeu, e em que podemos contemplar, na alternativa de todas as variantes, a lei de movimento que imperativamente as determina.
Cecília Meireles
¶ 26 de Setembro de 2024

¶ 25 de Setembro de 2024
O que é um encontro
breve e interminável sem um adeus final
um encontro é uma viagem fora do mundo
no mundo que nunca é verdadeiramente real
na fantasia ansiosa das palavras vibrantes
entre
o que é e não é
imaginária e vocálica
fora da sintaxe convencional
no interior de uma galáxia do vento
no espaço branco de uma alegria sem termo
no ar das palavras na respiração de uma laranja
¶ 24 de Setembro de 2024
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.
José Saramago
¶ 24 de Setembro de 2024

¶ 23 de Setembro de 2024
Por vezes a paciência é estarmos densos
ouvindo e vendo a espessura da casa
Estamos na paz na nitidez das coisas
como se nada houvéssemos perdido
Entramos na grande solidão fraterna
do
mundo mas já sem a pungência
das esquinas Tudo se define
com tal delicadeza que tudo é animal
e novidade imóvel da atenção
Concentramos o transe de estar sendo
em cada coisa o peso o contorno
na felicidade ignorante acesa
E é a perfeição na imperfeição
que se consuma na limpa sobriedade
dos objectos que fulguram suavemente
O mundo se arredonda dentro de casa
E é a presença no olvido e no silêncio
delimitando um tranquilo paraíso
Uma lenta rotação da mesa iluminada
adensa os volumes de sombra e de segredo
a as insinuações silvestres da madeira
A lâmpada leva-nos para um futuro antigo
A luz é para todos no sossego de um só
António Ramos Rosa
¶ 22 de Setembro de 2024
O equinócio de outono em 2024 verifica-se em Portugal a 22 de setembro às 12h44. Esta é a designação que a Astronomia atribui ao fenómeno natural que assinala o final do verão
e a chegada da nova estação. Nesse instante preciso, o Sol cruza o
plano do equador celeste, o que decorre em setembro no hemisfério norte e
em março no hemisfério sul. O termo “equinócio”, composto pelas palavras latinas aequus e nox, significa “igual” e “noite”. Aplica-se a este momento porque durante os equinócios os dias e as noites, com aproximadamente 12 horas, têm a mesma duração.

¶ 21 de Setembro de 2024
Onde existo que não existo em mim?
Corro em volta de mim sem me encontrar…
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
Para mim é sempre ontem
Não
tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem
Na minha dor quebram-se espadas de ânsia
Sou estrela ébria que perdeu os céus
Morro à míngua, de excesso
Heráldico de mim,
Transponho liturgias…
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
¶ 21 de Setembro de 2024
O tempo não se ocupa em realizar as nossas esperanças: faz o seu trabalho e voa.
Eurípedes
¶ 20 de Setembro de 2024

¶ 18 de Setembro de 2024
Só há um caminho para a felicidade (que isso esteja presente no teu espírito desde a aurora, dia e noite): é renunciar às coisas que não dependem da nossa vontade.
Epicteto
¶ 17 de Setembro de 2024
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se
estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega —
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.
¶ 16 de Setembro de 2024
A política ficou embolorecida enquanto espera por reparação estrutural. Desloca-se apenas em cadeira de rodas. Quem a empurra pelo esburacado passeio é o mercado. E o mercado é uma criatura enganadora: ao longe, ofusca-nos o seu artificioso fulgor; mais perto, todos percebem que sofre de cegueira. Quem lhe paga os falsos brilhantes são os dinheiros públicos.
Mia Couto
¶ 15 de Setembro de 2024

¶ 15 de Setembro de 2024
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objetos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.
¶ 14 de Setembro de 2024
Agora sinto-me mais sereno do que quando tinha 24 anos. Claro, nessa idade tentamos ser Hamlet, ser Byron, ser Baudelaire, ser alguma personagem de um romance do século passado e cultivamos a infelicidade. Depois damos conta de que não é preciso cultivar a infelicidade, encontramo-la sozinhos.
Jorge Luis Borges in Borges Verbal
¶ 13 de Setembro de 2024
Pergunto-me
como seria estar aqui contigo,
onde o vento
que
sacudiu a poeira em vales profundos
nos toca puramente
com uma mão lavada,
e a dor
é como a fome longínqua das coisas distantes,
e a raiva
não é senão um breve silêncio
afundando-se num silêncio maior.
¶ 12 de Setembro de 2024

¶ 11 de Setembro de 2024
O amor não é tudo: não é comida nem bebida
Nem sono nem um telhado contra a chuva;
Não é escombro sobre o mar para quem se afunda
E
flutua e afunda e flutua e afunda outra vez;
O amor não é capaz de encher de ar o pulmão ferido,
Nem de limpar o sangue, ou sarar o osso partido;
E no entanto, enquanto eu falo,
Há homens que se acercam da morte pela falta de amor.
Pode muito bem ser que numa hora tenebrosa,
Presa à dor e implorando libertação,
Ou acometida por forças além da minha vontade,
Eu pudesse ser levada a trocar o teu amor pela paz,
Ou a trocar a memória desta noite por comida.
Poderia muito bem ser. Mas eu não creio que o fizesse.
¶ 10 de Setembro de 2024

¶ 10 de Setembro de 2024
Daquelas árvores estavam a cair
hoje as palavras fugazes
e é assim figurado como frutos
Não posso mergulhar
a minha deambulação de acaso
no vazio das imagens!
Serão as folhas ocres as bocas
que falaram ainda vivas.
Ainda está vivo o minuto que
impede que morra sem raízes
cada minuto de hoje.
Não significa agora mais o fim
do inverno do que o outro verão
descoberto no esquecimento.
Fora de cada um de nós
o oculto vivido é uma imagem
errante do nosso tempo.
Na passagem dos invernos
agitados por estas cores ruivas
dissemos algo. Aqui há vozes
fantásticas que são de ambos.
As folhas caem duplamente
na sua queda de antes
e na cascata harmónica.
Estas são árvores que falam
da sua memória própria.
Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 9 de Setembro de 2024
Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.
A
outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.
Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.
Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro dos espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-no dizer do sono
imagens de horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.
Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.
Habituámo-nos a ele, não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.
Yorgos Seferis, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis
¶ 9 de Setembro de 2024

¶ 8 de Setembro de 2024
Louco é só isso
Sabes hoje que és louco
que a tua realidade é irreal
mais
rápida mais lenta mais perdida
Continuas aí conheces bem
o poço
sabes quando ele te chama do centro da noite
com o teu olho de sombra e de silêncio
e não sabes fingir continuas aí
ou por outras palavras estás louco
a vida não te serve nem te salva
já não lhe podes pedir nada não queres nada
só deixar-te cair
descer cada degrau sem perceber
que já não há degraus que tudo é
precipício
¶ 7 de Setembro de 2024
Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
Adília Lopes
¶ 7 de Setembro de 2024

¶ 6 de Setembro de 2024
Bate coração
no peito que te guarda
estrela
em rotação pelos telhados
até as sombras se alongarem
pelos braços
António Reis
¶ 5 de Setembro de 2024
Levanta-se da rocha a flor esmagada
Mais
dura do que a rocha e cristalina
Raízes, caule, pétalas, angústia.
Raízes para sempre ali cravadas,
Caule verticalmente inexorável,
Pétalas miraculosas: pura água.
Minhas mãos são chagas
Para te colher.
Minhas mãos são chamas,
Pedaços de gelo.
Levanta-se da rocha a flor esmagada.
Cristovam Pavia
¶ 4 de Setembro de 2024
Não encontrarás aqui a fluência
de algum ventre polido ou verso límpido
porque estas palavras conhecem as paredes
que não ouviram a angústia e a vertigem
mas
têm o sal das lágrimas obscuras
para sempre ignoradas para sempre futuras
nem ouvirás o som das aves frias
mas sentirás o arrepio de sombras sobre as pedras
ouvirás talvez um suor de silêncio
António Ramos Rosa
¶ 4 de Setembro de 2024

¶ 3 de Setembro de 2024
da conversa que ontem tive
resultou o seguinte:
dentro de cada cabeça
há uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
dentro de cuja cabeça naturalmente
há também uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
o qual dentro da cabeça
tem também uma árvore do bem e do mal
e o respectivo jardineiro
e assim por diante
tudo ja se vê em dimensões microscópicas
mas não sei se entendi bem
o que ele quis dizer
Alberto Pimenta
¶ 3 de Setembro de 2024
There is a kind of sadness that comes from knowing too much, from seeing the world as it truly is. It is the sadness of understanding that life is not a grand adventure, but a series of small, insignificant moments, that love is not a fairy tale, but a fragile, fleeting emotion, that happiness is not a permanent state, but a rare, fleeting glimpse of something we can never hold onto. And in that understanding, there is a profound loneliness, a sense of being cut off from the world, from other people, from oneself.
¶ 2 de Setembro de 2024

¶ 2 de Setembro de 2024
Perdoa, não sabia que cantavas
Em sossego, silenciosamente. Neste calor
é preciso beber água gelada; também convém
não adorar ídolos, por exemplo a imagem
que aí trazes de ti e te atormenta
(ou me atormenta a mim?).
Outros exemplos incluem jardins de babilónia,
Erupções do etna, o efeito
afrodisíaco do diamante,
as ciências da educação.
Vou-me sentar aqui, respirar até doer
as coisas possíveis nunca reais,
aprender, nó a nó, como te soltas;
Vamos cair num poço, sem
bússola e pára-quedas, vamos ser o primeiro
amor a dois no mundo.
António Franco Alexandre
¶ 2 de Setembro de 2024

¶ 1 de Setembro de 2024
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma só noite comprida
num quarto só
António Ramos Rosa