Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de março 2013


30 de Março de 2013

Tarsila do Amaral

tarsila%20do%20amaral9.JPG paisagem ferroviária


30 de Março de 2013

insinceridade

quis-nos aos dois enlaçados meu amor ao lusco-fusco mas sem saber o que busco: há poentes desolados e o vento às vezes é brusco nem o cheiro a maresia a rebate nas marés na costa de lés a lés mais tempo nos duraria do que a espuma a nossos pés a vida no sol-poente fica assim num triste enleio entre melindre e receio de que a sombra se acrescente e nós perdidos no meio sem perdão e sem disfarce, sem deixar uma pegada por sobre a areia molhada, a ver o dia apagar-se e a noite feita de nada por isso afinal não quero ir contigo ao lusco-fusco, meu amor, nem é sincero fingir eu que assim te espero, sem saber bem o que busco. Vasco Graça Moura


29 de Março de 2013

Roger Fry

Roger-Fry-xx-Edith-Sitwell.jpg retrato de Edith Sitwell


29 de Março de 2013

Crítica da Poesia

Que a frenética poesia me perdoe se a um baço rumor levanto o laço, pois que verso não há onde não soe a música discreta doutro espaço. Horizonte do verso é a dureza: já mansidão não cabe neste olhar que se pousa na faca sobre a mesa e aprende nela o fio do seu cantar. Mas se olhar nela pousa, como corta? E se as palavras sabemos retomar, quem nos devolve a chave dessa porta onde a herança está por encerrar? Tão longe está de nós a poesia como nuvem nos rouba a luz do dia. Luis Filipe Castro Mendes


28 de Março de 2013

François Gérard

francoisgerard_portraitofcatherineworleeprincessedetalleyrand-perigord.jpg Catherine Worlée, princesa de Talleyrand-Perigord


28 de Março de 2013

Do Medo II

Voltando ao medo: as asas prendem mais do que libertam; os pássaros percorrem necessariamente os mesmos caminhos no espaço, sem possibilidades de variação que não estejam certas com esse mesmo voo que sempre descrevem. Voltando ao medo: o poema desenha uma elipse em redor da tua voz e cerca-se de angústia e ervas bravias — nada mais pode fazer. Luis Filipe Castro Mendes


27 de Março de 2013

Duncan Grant

DuncanGrant.jpg a primavera, como devia ser...


27 de Março de 2013

Tempos a cores, adolescentes

Quando penso na adolescência Já não me importo muitas vezes Sei bem que lá está e não foge Ao crivo da memória Houve tempos bestiais e outros mais calmos Intranquilidades diferentes e iniciais Tempos de construção intensa ou assim parecia De apagar outros de lembrar mais tarde Tempos de várias virgindades mais ou menos Passadas De ingenuidade e malícia Pouco aprendida (digo a filtro) Timidez de relevo incerto Várias perguntas, mais vastas certezas Dúvidas poucas mas bastante Relevantes Alguns atrevimentos bem-educados Aventuras quinzenais Livros para sempre Momentos entre outros verticais Excessiva preocupação com a roupa Estudo não mais que o necessário Dias de tentar privar com mais velhos E querer impressioná-los (por vezes agora o contrário, elementar Meus caros) Tempos a cores, adolescentes Tanto quanto me lembro Estávamos todos muitas vezes É bom lembrar Rui A.


26 de Março de 2013

Vanessa Bell

Duncan%20Grant.jpg retrato de Angelica Garnett, filha da pintora e de Duncan Grant


26 de Março de 2013

Do Medo

Não pode o poema circunscrever o medo, dar-lhe o rosto glorioso de uma fábula ou crer intensamente na sua aura. Nós permanecemos, quando escurece à nossa volta o frio do esquecimento e dura o vento e uma nuvem leve a separar-se das brumas nos começa a noite. Não pode o poema quase nada. A alguns inspira uma discreta repugnância. Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas sobre a terra. Quem reconhece a poesia, esse frio intermitente, essa persistência através da corrupção? Quase sempre a angústia instaura a luz por dentro das palavras e lhes rouba os sentidos. Quase sempre é o medo que nos conduz à poesia. Luis Filipe Castro Mendes


25 de Março de 2013

Quantas Cidades

Porque é tão ansiosamente que espero por ti? Sabias ocultar entre os teus menores movimentos a lembrança de um corpo e de um ardor sem música nem esquecimento possível. Quantas cidades atravessámos, quantos «grandes são os desertos e tudo é deserto», quanto alimento para os cães da memória! Deixa-os, consente o esquecimento, solta com raiva das tuas veias a música, regressa ao lugar donde partiste. Peço-te, regressa. Nós nunca acordamos conformes, nenhuma cifra nos devolverá o número mágico, vestimo-nos sem convicção e pedimos emprestadas fórmulas antigas. Da nossa idade guardámos alguns emblemas, alguns maneirismos. Acredita-me: é o momento de nos abandonarmos à necessidade, de açularmos os cães, de sermos nós mesmos um inquietante rosnido entre as frestas do muro. Regressemos, não há Ítaca possível, os corpos desfizemo-los na mesma erosão do seu mágico movimento. Porque é tão ansiosamente que espero por ti se nenhuma luz mais cabe no terror de mim? Luis Filipe Castro Mendes


25 de Março de 2013

François Gérard

Fran%C3%A7ois%20GerardConstance%20Ossolinska%20Lubienska1814.jpg retrato da bela Constance Ossolinska Lubienska, pintado em 1814


25 de Março de 2013

O Nome das Coisas

Sua beleza é total Tem a nítida esquadria de um Mantegna Porém como um Picasso de repente Desloca o visual Seu torso lembra o respirar da vela Seu corpo é solar e frontal Sua beleza à força de ser bela Promete mais do que prazer Promete um mundo mais inteiro e mais real Como pátria do ser Sophia de Mello Breyner Andresen


24 de Março de 2013

Tarsila do Amaral

tarsila%20do%20amaral3.jpg outra noite


24 de Março de 2013

Entender os Outros

Nós combatemos a nossa superficialidade, a nossa mesquinhez, para tentarmos chegar aos outros sem esperanças utópicas, sem uma carga de preconceitos ou de expectativas ou de arrogância, o mais desarmados possível, sem canhões, sem metralhadoras, sem armaduras de aço com dez centímetros de espessura; aproximamo-nos deles de peito aberto, na ponta dos dez dedos dos pés, em vez de estraçalhar tudo com as nossas pás de catterpillar, aceitamo-los de mente aberta, como iguais, de homem para homem, como se costuma dizer, e, contudo, nunca os percebemos, percebemos tudo ao contrário. Mais vale ter um cérebro de tanque de guerra. Percebemos tudo ao contrário, antes mesmo de estarmos com eles, no momento em que antecipamos o nosso encontro com eles; percebemos tudo ao contrário quando estamos com eles; e, depois, vamos para casa e contamos a outros o nosso encontro e continuamos a perceber tudo ao contrário. Como, com eles, acontece a mesma coisa em relação a nós, na realidade tudo é uma ilusão sem qualquer percepção, uma espantosa farsa de incompreensão. E, contudo, que fazer com esta coisa terrivelmente significativa que são os outros, que é esvaziada do significado que pensamos ter e que, afinal, adquire um significado lúdico; estaremos todos tão mal preparados para conseguirmos ver as acções intímas e os objectivos secretos de cada um de nós? Será que devemos todos fecharmo-nos e mantermo-nos enclausurados como fazem os escritores solitários, numa cela à prova de som, evocando as pessoas através das palavras e, depois, afirmar que essas evocações estão mais próximas da realidade do que as pessoas reais que destroçamos com a nossa ignorância, dia após dia? Mantém-se o facto de que o compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida, não compreender as pessoas, não as compreender, não as compreender, e depois, depois de muito repensar, voltar a não as compreender. É assim que sabemos que estamos vivos: não compreendemos. Talvez o melhor fosse não ligar ao facto de nos enganarmos ou não sobre as pessoas e deixar andar. Se conseguirem fazer isso - estão com sorte. Philip Roth, in 'Pastoral Americana'


23 de Março de 2013

Oviedo

oviedo a Regente, com a catedral em fundo


23 de Março de 2013

Ascendente Balança

Conoceréis el amor y entonces pensaréis en la muerte; reconoceréis la belleza y entonces pensaréis en la maldición del paso del tiempo. Leeréis un verso y recordaréis que la fruta se pudre, que la violencia impera; veréis una joven hermosa y pensaréis en huesos y en polvo. Conoceréis la paz y oiréis el eco del grito; os llevarán al mar y os asombrará la certeza del llano que es devastado por el fuego. Conoceréis el deseo y entonces temeréis el fin de la tierra. Pero, otras veces, conoceréis la muerte y pensaréis en el amor, reconoceréis la maldición del paso del tiempo y os haréis súbditos incorruptibles de la belleza. Laura Casielles


23 de Março de 2013

San Sebastian

Donostia ou Donostia


23 de Março de 2013

Sons

Escuto no som a constância com que se repete: água contra a vidraça olho o escuro da noite. O relâmpago rasga a imaginação em medos esqueço o poema e me lanço ao encontro: encurto a distância e o som resta lamentos. Pedro Du Bois


22 de Março de 2013

Bilbau

bilbao.jpg


22 de Março de 2013

En la noche hacia la nada

Sí, también yo quisiera ser palabra desnuda… Ángela Figuera Sentir la brisa al borde del camino. Sentir el camino adentrándose en los huesos. Absorber la médula impasible. Ser constatación de lo imperturbable. Palabra desnuda. Sentir el aire concentrado alrededor de una sílaba. Silbar. Reconocer el soplo de la palabra silenciada. No poder hablar. Abstenerse. Esperar. Sólo esperar. Esperar que la turba arda de nuevo. Ser turba esperanzada. Angela Serna


21 de Março de 2013

Na Veiriña do Mar

Ojos verdes son traidores Azules son mentireiros Los negros y acastañados Son firmes y verdadeiros Na veira, na veira, na veira do mar Hay una barquinha pra ir a navegar Pra ir a navegar, pra ir a navegar, Na veira, na veira, na veira do mar Cinco sentidos tenemos Los cinco necesitamos Pero los cinco perdemos Cuando nos enamoramos No sé qué verán los mares Miro sin ver lo que veo Pero a peasar de no verte Sé muy bien cómo te quiero Hoy te vi pasar el río Con taquinhos de madeira Ibas tan remangadinha Al pasar por la ribeira No vengo para cantarte Aunque me estén esperando Que tu ventana y la mía Por cantar están llorando Maria Ostiz


20 de Março de 2013

Primavera

"Según cálculos del Observatorio Astronómico Nacional (Instituto Geográfico Nacional - Ministerio de Fomento), la primavera de 2013 comenzará el miércoles 20 de marzo a las 12h 02m hora oficial peninsular, una hora menos en Canarias. Esta estación durará 92 días y 18 horas, y terminará el 21 de junio con el comienzo del verano." Pois, este ano calhou assim...


20 de Março de 2013

Santander

Santander%20043.jpg primavera cantábrica


20 de Março de 2013

La juventud

Veo amanecer, lluvia de cristal, no pude dormir, dejadme soñar, soñar... lento caminar, voy sin sonreir, rápido pensar que me hace sufrir, sufrir... Tuve que nacer en un mundo feliz entre gente pasiva que no quiere vivir, pueblos que no sienten ningún ideal solo espectadores sin participar, sin participar, sin participar. La juventud tiene razón hay que seguir luchando por aquellos que no tuvieron tiempo de gritar. La juventud tiene razón hay que seguir luchando por un mundo mejor donde se grite la verdad, gritad la verdad, gritad la verdad, gritad la verdad. Hoy tengo que ir a otra ciudad lo he de conseguir, dejadme soñar, soñar... un rayo de luz ilumina el mundo es la juventud cantando al futuro, vientos de alegría que ahuyenten temores barriendo tristezas, soplarán un día, soplarán un día, soplarán un día... La juventud tiene razón hay que seguir luchando por aquellos que no tuvieron tiempo de gritar. La juventud tiene razón hay que seguir luchando por un mundo mejor donde se grite la verdad, gritad la verdad, gritad la verdad, gritad la verdad. Manolo Diaz


19 de Março de 2013

Wyndham Lewis

Workshop-Lewis.jpg oficina singular


19 de Março de 2013

Amar Teus Olhos

Podia com teus olhos escrever a palavra mar. Podia com teus olhos escrever a palavra amar não fossem amor já teus olhos. Podia em teus olhos navegar conjugar os verbos dar e receber. Podia com teus olhos escrever o verbo semear e ser tua pele a terra de nascer poema. Podia com teus olhos escrever a palavra além ou aqui ou a palavra luar, recolher-me em teus olhos de lua só teus olhos amar. Podia em teus olhos perder-me não fossem, amor, teus olhos, o tempo de achar-me. Carlos Melo Santos


19 de Março de 2013

A Minha Ausência de Ti

Foi tal e qual o inverno a minha ausência de ti, prazer dum ano fugitivo: dias nocturnos, gelos, inclemência; que nudez de dezembro o frio vivo. E esse tempo de exílio era o do verão; era a excessiva gravidez do outono com a volúpia de maio em cada grão: um seio viúvo, sem senhor nem dono. Essa posteridade em seu esplendor uma esperança de órfãos me parecia: contigo ausente, o verão teu servidor emudeceu as aves todo o dia. Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava e no temor do inverno desmaiava. William Shakespeare, trad. Carlos de Oliveira


18 de Março de 2013

Tarsila do Amaral

tarsila%20do%20amaral.jpg senhora com chapéu azul


18 de Março de 2013

Anda

Anda despe-te Aproveita a Lua que é nova E o vento que vai Anda despe-te Dá cor à noite Que a noite é fria com tanto agasalho E os meus olhos têm o cinzento de uma espera longa demais Anda despe-te Sê cais sê barco e sê mais Sê mar fragata ou coral - sê viagem Se quiseres Anda despe-te E aproveita o instante Que o dia nasce e nem sempre nos parecemos com os deuses Rui A.


17 de Março de 2013

Wyndham Lewis

eliot%20Wyndham%20Lewis.jpg retrato de T. S. Eliot


17 de Março de 2013

A solidão tem os seus contras

E depois há sempre e geralmente uma companhia que com o tempo se vai tornando bastante vulgar e por vezes até nos habituamos Por vezes é pouco evitável e a gente chega a aceitar e até se percebe que não é assim tão difícil Por vezes dá alguma vontade de rir da própria à sombra Por vezes pinga e respinga sem qualquer espécie de inveja ou motivos (esta última a parte mais desagradável) no riso dos outros Por vezes não repara ou acorda em outros desgostos de outros (por vezes percebemos que isso sim é horrível) Por vezes não é nada que se compare a coisa alguma Por vezes sem margem e sem dúvida A solidão tem os seus contras Rui A.


16 de Março de 2013

Tarsila do Amaral

tarsila%20do%20amaral.2.jpg o belo lago de Tarsila


16 de Março de 2013

Quem Somos

Quem somos, senão o que imperfeitamente sabemos de um passado de vultos mal recortados na neblina opaca, imprecisos rostos mentidos nas páginas antigas de tomos cujas palavras não são, de certo, as proferidas, ou reproduzem sequer actos e gestos cometidos. Ergue-se a lâmina: metal e terra conhecem o sangue em fronteiras e destinos pouco a pouco corrigidos na memória indecifrável das areias. A lápide, que nomeia, não descreve e a história que o historia, eco vário e distorcido, é já diversa e a si própria se entretece na mortalha de conjecturados perfis. Amanhã seremos outros. Por ora nada somos senão o imperfeito limbo da legenda que seremos. Rui Knopfli


15 de Março de 2013

John Singleton Copley

Mrs.%20Richard%20Skinner%20nee%20Dorothy%20Wendell%20-%20John%20Singleton%20Copley1772.jpg Mrs. Richard Skinner, nascida Dorothy Wendell, retratada em 1772


15 de Março de 2013

Metodologia

Convoco os duendes da inquietação e da alegria, urdindo um laborioso rito circular, delicada teia iridiscente de que, relutante, a luz se vá pouco a pouco enamorando. Palavras não as profiro sem que antes as tenha encantado de vagarosa ternura; mal esboçados, gestos ou afagos, apenas me afloram a hesitante extremidade dos dedos que, aquáticos e transidos, estacam no limiar surpreso do seu rosto. Movimentos longos da tarde e sussurros graves da noite que tendessem para a imobilidade e o silêncio, não seriam mais cautos e aéreos. Quietas estátuas de cristal, intensamente nos fitamos, enquanto trémula, lenta e comburente, a luz mais pura nos atravessa. Rui Knopfli


14 de Março de 2013

François Gérard

Fran%C3%A7ois%20Gerard1Madame%20Recamier.jpg a beleza grácil de Madame Récamier


14 de Março de 2013

Inominado Nome

Persigo-o no ininteligível arbítrio dos astros, na clandestina linfa que percorre os túrgidos corredores do indecifrável, nos falsos indícios que, de fogos fátuos, escurecem a persistente incógnita do nome. Em persegui-lo persisto onde, bem sei, não lograrei achá-lo, que nunca achado será em tempo ou espaço que excedam meu limite e dimensão. Um nome, ainda obscuro, pressinto no sal da boca amarga, Conheço-lhe o rosto familiar, desfocado embora, no halo do tempo e da distância. É, creio, a face indefectível de tudo quanto tenho de calar. Este nome (este rosto) habita-me silente, contra a recusa, a mentira, ou a calúnia. Na epiderme, nos nervos e na carne, sobre a língua e o palato, adivinho-lhe forma, sabor e propósito. Ouço-o dentro de mim, mau grado o queira ou não, que em mim só está sofrê-lo porque em mim vive e dura, enquanto eu dure e viva. E não por meu mal, que meu mal seria, mais que perdê-lo, sem ele viver. Um rosto persigo, um nome guardo no sal da boca amarga, na pedra árdua da memória, no discurso penosamente reiterado do sangue. Nenhum silêncio lhe dará cobro, nem fim que não sejam meu fim e meu silêncio. Rui Knopfli


13 de Março de 2013

Um Calculador de Improbabilidades

Príncipe: Era de noite quando eu bati à tua porta e na escuridão da tua casa tu vieste abrir e não me conheceste. Era de noite são mil e umas as noites em que bato à tua porta e tu vens abrir e não me reconheces porque eu jamais bato à tua porta. Contudo quando eu batia à tua porta e tu vieste abrir os teus olhos de repente viram-me pela primeira vez como sempre de cada vez é a primeira a derradeira instância do momento de eu surgir e tu veres-me. Era de noite quando eu bati à tua porta e tu vieste abrir e viste-me como um náufrago sussurrando qualquer coisa que ninguém compreendeu. Mas era de noite e por isso tu soubeste que era eu e vieste abrir-te na escuridão da tua casa. Ah era de noite e de súbito tudo era apenas lábios pálpebras intumescências cobrindo o corpo de flutuantes volteios de palpitações trémulas adejando pelo rosto. Beijava os teus olhos por dentro beijava os teus olhos pensados beijava-te pensando e estendia a mão sobre o meu pensamento corria para ti minha praia jamais alcançada impossibilidade desejada de apenas poder pensar-te. São mil e umas as noites em que não bato à tua porta e vens abrir-me Ana Hatherly


12 de Março de 2013

Da cultura

Toda a cultura é um diálogo com o seu tempo. Vergílio Ferreira


12 de Março de 2013

Duncan Grant

Duncan%20Grant2.jpg Vanessa Bell


12 de Março de 2013

Adormecer

Vai vida na madrugada fria. O teu amante fica, na posse deste momento que foi teu, amorfo e sem limites como um anjo; a cabeça cheia de estrelas... Fica abraçado a esta poeira que teu pé levantou. Fica inútil e hirto como um deus, desfalecendo na raiva de não poder seguir-te! Manuel da Fonseca


11 de Março de 2013

Saudade

A saudade não está na distância das coisas, mas numa súbita fractura de nós, num quebrar de alma em que todas as coisas se afundam. Vergílio Ferreira


11 de Março de 2013

Contigo Ausente

Teu só sossego aqui contigo ausente Na casa que te veste à justa de paredes, Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente Dos cuidados que deixas ao partir, A doce estância toda povoada Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine, Como uma estátua fiel ao labirinto. Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas, Farmácia chamo à tua colecção de vidros Onde, à margem de planos e de somas, Tenho remédio para os meus alvidros. O chá é forte e adstringente, O leite grosso sabe à ordenha, E até nos quadros vive gente À espera que a dona venha. Porque tudo nos tectos é coroa, No chão as traînes, os passinhos salpicados Como o vento ainda longe de Lisboa Escolheu a gaivota do balanço Que no cais engolfado melhor voa: Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo Chegues no ar medido e a aço propulso: Por isso um pouco de fogo Bate sanguíneo em meu pulso, Pois o amor de quem espera É uma graça a vencer. Uma casa sem hera É como gente sem viver. Vitorino Nemésio


10 de Março de 2013

François Pascal Simon

Gerard-Amor%26Psyche.jpg Cupido, que nunca descansa, pintado pelo barão Gérard


10 de Março de 2013

Gramáticas

Não vi nunca poesia que tivesse pelo meio a palavra onomatopeia, no dizer das coisas (…"criar um nome", "fazer um nome" no sentido "afigurar um nome, afigurar um termo", pedaço de Wikipédia) E li já alguma poesia, ou coisa que o valha Silêncios crescidos arranhando e batendo as portas gemidos de todas as cores o canto do grilo o giz a festa Mas nada sobre a ono-ma-to-peia, da mais doce à mais antiga A poesia é uma outra espécie de verdade e mentira e o melhor dos conceitos tem todas as letras, e as mais simples. Por exemplo, a letra amor Rui A.


9 de Março de 2013

Do Elogio

És linda. E nem sabes quantos pedaços de beleza tive de juntar para chegar a esta conclusão. Para te construir, tive de misturar a conspiração das searas com a tristeza do choupo, a inquietação da cotovia com o cheiro lavado do vento do ocidente. E a firmeza repartida dos livros, com a alegria explosiva dos miosótis e a luz escura das violetas. Juntei depois um pouco de ansiedade das estrelas, a paciência das casas à beira da falésia, a espuma da terra, o respirar do sul, as perguntas de gesso que se fazem à lua. Acrescentei-lhe a canção das margens e pequenos pedaços da angústia do olhar. Não esqueci a intimidade do frio nem a dor branca que habita o coração dos muros. Por fim, deitei na tua pele o sono dos alperces, aos teus músculos prometi a violência das cascatas, no teu sexo acordei a memória do universo. A tua beleza está no meu desejo, nos meus olhos, na minha desigual maneira de te amar. És linda, repito. Mas tenta não encarar o que te digo como um elogio. Joaquim Pessoa


9 de Março de 2013

Verdade

A verdade só é perfeita nos instantes de fulgor. Vergílio Ferreira


9 de Março de 2013

Duncan Grant

VanessaBellbyDuncanGrant1918.jpg retrato de Vanessa Bell, pintado em 1918


9 de Março de 2013

Mar de que Futuro

Só de restos se consagra o tempo, força cerrada na inutilidade destas cores campestres, quando o sol em Novembro escurece os sobreiros. Só de restos me espera a cerimónia de viver, trânsito e transigência do silêncio, ocultado no meu corpo. Só de restos o trespassa o tempo, máscara e manto. Morro muito antes da morte, sem saber se os anjos foram gaivotas hirtas no piedoso musgos dos rios ou se hão-de ser maçãs ou ciência, loendros ou lembrança, inocentes, lúcidos sonos ou oblata de seda, a deus cedida, em pagamento da paz. Só do que chega ao fim, se corrompe e apodrece, se imagina o princípio, a majestade das coisas, o silêncio irrevelado que o corpo desconhece. Orlando Neves


8 de Março de 2013

Harpa febril

A solidão é perfeita como um rasgo entre as nuvens, ao último sonho. A solidão que se cala em teu fundo e vai envelhecendo na terra perdida do som descompassado. Te guardas na intimidade dos armários, onde a paz é negra e se desagrega a luz. Nunca foste mais do que uma ficção, matriz de riso e sombra, um poço verde, teorema de ilusões, engrenagem de poentes roxos. E, agora, frouxo, já nada designas ou desenhas. És, apenas, testemunha efémera e longínqua, trovão engolido de Deus, fingidor ferido de doces cantos, mentira precária nas cordas de uma harpa febril. Orlando Neves


8 de Março de 2013

Alexander Bassano

Bea%20Bassano.jpg retrato da atriz Beatrice von Brunner, em 1910


8 de Março de 2013

Amo os Teus Defeitos

Amo os teus defeitos, e tantos eram, as tuas faltas para comigo e as minhas; essa ênfase de rechaçar por timidez; solidão de fazer trepadeiras, agasalhos para velhos, depois para netos; indulgência de plantar e ver o crescimento da oliveira do paraíso, carregada de flores persistentemente caducas; essa autoridade, irremediável desafio; e a astúcia de termos ambos quase a mesma cara. António Osório


7 de Março de 2013

Alexander Bassano

Alex%20Bassano.jpg retrato da atriz Dorothy Norman, no início do século passado (o mesmo nome, pessoas bem diferentes...)


7 de Março de 2013

Vida

Vive a vida o mais intensamente que puderes. Escreve essa intensidade o mais calmamente que puderes. E ela será ainda mais intensa no absoluto do imaginário de quem te lê. Vergília Ferreira


6 de Março de 2013

Nascente

Quando sinto de noite o teu calor dormente e devagar para que não despertes digo: cedro azul, terra vegetal, ou só amor, amor; quando te acaricio e devagar para que não despertes tomo na mão direita as duas fontes, iguais, da vida, procuro a nascente e adormeço nela essa mão depositando. António Osório


6 de Março de 2013

Alfred Stieglitz

Alfred%20Stieglitz%20dorothy%20norman.jpg retrato de Dorothy Norman, vista com olhos de ver


6 de Março de 2013

Sítio Exacto

Sei que não acaba o teu prazer, nem o meu. Alguém ama connosco e nos leva ao sítio exacto das estações. Nem o sono depois nos pertence, quinhão de outros herdado após amarem. António Osório


5 de Março de 2013

Juventude

Jovens e nus frente ao mar, estão presentes em cada célula do seu corpo. Mas a vida que têm é demais para eles e não sabem que fazer dela. Emergem da água rutilantes e riem. Depois deitam-se na areia, gastam o dia e a noite a amar-se, a embebedar-se, a estoirar todo o prazer e forças que têm. E ficam ainda com vida por gastar. É desses sobejos já com bolor que terão de viver depois na velhice. Vergílio Ferreira


4 de Março de 2013

Júlio Pomar

JULIO%20POMAR%20-%20FIGURA%20AZUL.jpg contraste imaginado


4 de Março de 2013

Acerca de dona Eulália

Dona Eulália pensava pouco de si própria e não esperava ter um dia seu nome e seus destinos em qualquer espécie de linha Dona Eulália sonhou mais ou menos muito nada tirando o dia claro em que nasceu o seu Francisco que viria a ser mais tarde famoso no café do Borja por episódios vários que dona Eulália nem sempre compreendeu. Tanta sede no calor e no Inverno, e tão logo a seguir à infância era algo que sempre a espantava mesmo sabendo metade das histórias mesmo sabendo que era essa a moda praticada pelos que ficaram na aldeia e pelos que dela fugiram para Luxemburgos a pratos e Alemanhas e Franças servis, destinos vários coroados na ostentação possível dos cabazes da festa nas festas de agosto Mas para dona Eulália o dia em que nasceu o futuro energúmeno e ex-Francisquinho era um dia cheio de hipóteses - ao meu filho nunca faltará nada há-de ter comida, bons sapatos e escola emprego,boa casa, família larga e até automóvel Dona Eulália lera pouco, de facto nunca se interessou por ciências sociais, estruturalistas e outras formas de dizer a tragédia E a isso deveu em parte dona Eulália (para além de um amor daqueles dias que tudo justifica e merece), do alto de um corpo pouco dado a curvas, os sonhos lisos e rectos, aqueles sonhos tão rentes, em que se sentiu próxima e parte de um outro continente e bairro. Ninguém lhe levará a mal, dona Eulália é figura maioritária entre os nascidos da terra. E para além do muito a aprender na vida com as vidas que pouco ensinam ou acrescentam convém lembrar o significado do nome de dona Eulália “Bem-falante” - que é o que podemos dizer também de quem diz com acerto e sem palavras demasiadas o que foi ou é a vida. Isto para quem tem pela precisão especial apreço, cruel ou não Por isso é tão fácil falar da simpática dona Eulália, que nunca fez mal a ninguém. Por isso falei já de outra Eulália igualmente concisa, a tal que foi casada com um filatelista dado a moedas. Bizarrias. Dona Eulália nunca lerá esta carta, e nunca lhe fez ou fará falta. Morreu há cerca de cinco anos na planície com o filho sobrealimentado a minis. E lá continua (agora mais lento, mas sempre pertinaz, vocação precoce e sucedida) É mais fácil falar de dona Eulália, e além disso teve um funeral bastante normal, como o de quase todos nós. Rui A.


4 de Março de 2013

Amar

Amar não deve ser desfortuna. O cio transfunde a lagartixa e o homem na criação tenaz. E o buxo, o pólen e as primeiras folhas da vinha virgem. Amor não tem quaresma, nela impetuoso regressa e copula. António Osório


3 de Março de 2013

Peso do Mundo

A poesia não é, nunca foi uma enumeração ou composto de exuberância, bondade, altitude, nem arado ou dádiva sobre chão prenhe de mortos. Nem o arrependimento de Deus por ter criado o homem com o rosto da sua memória, ao lado dos seus vermes. Tão-pouco fôlego dos que amam abrindo a porta límpida do corpo e chovendo sobre a terra, ou carregam como tartarugas o peso do mundo. Nem reverência por um tigre, pela leveza maligna de todas as patas, pela sonolência junto à estirpe aprisionada também na dureza de ser tigre. É o milagre de uma arma total, de uma só palavra reduzindo o átomo à completa inocência. António Osório


3 de Março de 2013

Brian Kershisnik

Brian%20Kershisnik1.jpg do prazer lúdico


2 de Março de 2013

Namorados do Mirante

Eles eram mais antigos que o silêncio A perscrutar-se intimamente os sonhos Tal como duas súbitas estátuas Em que apenas o olhar restasse humano. Qualquer toque, por certo, desfaria Os seus corpos sem tempo em pura cinza. A Remontavam às origens — a realidade Neles se fez, de substância, imagem. Dela a face era fria, a que o desejo Como um hictus, houvesse adormecido Dele apenas restava o eterno grito Da espécie — tudo mais tinha morrido. Caíam lentamente na voragem Como duas estrelas que gravitam Juntas para, depois, num grande abraço Rolarem pelo espaço e se perderem Transformadas na magma incandescente Que milénios mais tarde explode em amor E da matéria reproduz o tempo Nas galáxias da vida no infinito. Eles eram mais antigos que o silêncio... Vinicius de Moraes


2 de Março de 2013

Praia d' El Rei

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2 de Março de 2013

É nos dias mais vagos

É nos dias mais vagos dias sem vagas nada ou muito alterados Dias embrulhados sem particular cuidado de uma beleza pouco espectacular Dias repetíveis como um bom relógio de marca Que não prejudica o acertar dos tempos É nesses dias não salpicados de excessiva água dias sem pasmo e relento rima ou calendário Nesses dias de tempo em saldo que não tiram nem devolvem qualquer sabor mais jovem Que possa ficar amanhã Dias sem especial nexo ou inolvidáveis lutas Dias de pouca gente, da mais à menos leviana Dias de apenas um poema a reler mais tarde Nesses dias de médio prazo, medicamente muitíssimo necessários, Meio feitos apenas de apenas compostas horas que não envelhecem nem castigam com perda ou dano relevante Nesses dias vagos, lentos e pouco alterosos Percebemos que não somos eternos Não vendo nisso qualquer mal Rui A.


1 de Março de 2013

Júlio Pomar

Julio%20Pomar%20gravida.jpg gravidez luminosa


1 de Março de 2013

Do Fim dos Segredos

Quando se conta a outrem um segredo este desmaia: a palavra torna-se pele sem leão lá dentro. Não é mais segredo e não o sendo finge ser lembrança de fabrico imperfeito: um cliqueti no silêncio escancara a dantes inamovível porta e virada a página acha-se apenas uma moeda que não corre já. Júlio Pomar