Arquivo de maio 2004
¶ 31 de Maio de 2004
E se for assim?...
A Man In His Life
A man doesn't have time in his life
to have time for everything.
He doesn't have seasons enough to have
a season for every purpose. Ecclesiastes
Was wrong about that.
A man needs to love and to hate at the same moment,
to laugh and cry with the same eyes,
with the same hands to throw stones and to gather them,
to make love in war and war in love.
And to hate and forgive and remember and forget,
to arrange and confuse, to eat and to digest
what history
takes years and years to do.
A man doesn't have time.
When he loses he seeks, when he finds
he forgets, when he forgets he loves, when he loves
he begins to forget.
And his soul is seasoned, his soul
is very professional.
Only his body remains forever
an amateur. It tries and it misses,
gets muddled, doesn't learn a thing,
drunk and blind in its pleasures
and its pains.
He will die as figs die in autumn,
Shriveled and full of himself and sweet,
the leaves growing dry on the ground,
the bare branches pointing to the place
where there's time for everything.
Yehuda Amichai
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¶ 31 de Maio de 2004
Parabéns
Com atraso, ao belo Azul Cobalto, que tanto contribui para a qualidade deste meio.
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¶ 31 de Maio de 2004
Do perigo maior
(sempre iminente)
"O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me."
Affonso Romano de Sant'Anna
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¶ 30 de Maio de 2004
Duas frases
"Do never worry about things you cannot control."
"One thing I know is that we are constantly reborn."
Tom Ripley (John Malkovich), Ripley's game, realização de Liliana Cavani.
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¶ 30 de Maio de 2004
Jogo de espelhos
"(...) acima de tudo a consciência exacta de que nenhum desejo se acomoda a outro: qualquer história de amor é também a tragédia de um sublime equívoco."
João Lopes, in DN, ed. 20/5/2004.
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¶ 30 de Maio de 2004
Da cidade que brilha
(do que não se extingue)
O Porto é uma cidade onde entro com saudade. Uma cidade onde estive mas nunca vivi, onde tenho memórias depositadas a render juros certos. Quem me mostrou as mudanças nas duas margens daquele rio forte e estreito (tão diferente do meu, que é amplo a fingir-se mar mesmo antes de lá chegar, com veleiros que sobem e o enfeitam, a cidade longe para se fazer mais desejada e esquiva, deitada em branco e rosa), quem me levou por aquelas ruas antigas onde o quartzo e a mica deslumbram de repente e se escondem logo de seguida, em horas doces e rápidas, tem a luz nos olhos, a luz que hoje me ampara na incerteza deste caminho depois. Quem me dera ter sabido mantê-la perto quando o tempo era possível.
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¶ 30 de Maio de 2004
A máquina do mundo
(ou as histórias dentro da vida, para N.M., se vier de visita. E se não vier, também)
I don't know if history repeats itself
But I do know that you don't.
I remember that city was divided
Not only between Jews and Arabs,
But between me and you,
When we were there together.
We made ourselves a womb of dangers
We built ourselves a house of deadening wars
Like men of far north
Who build themselves a safe warm house of deadening ice.
The city has been reunited
But we haven't been there together.
By now I know
That History doesn't repeat itself,
As I always knew that you wouldn't.
Yehuda Amichai
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¶ 28 de Maio de 2004
Escassas horas
Dois curtos dias para rever a cidade deste homem diferente, poeta maior do que as baias da vida.
Urgentemente
É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.
Eugénio de Andrade
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¶ 27 de Maio de 2004
Outros mundos
Do Not Accept
Do not accept these rains that come too late.
Better to linger. Make your pain
An image of the desert. Say it's said
And do not look to the west. Refuse
To surrender. Try this year too
To live alone in the long summer,
Eat your drying bread, refrain
From tears. And do not learn from
Experience. Take as an example my youth,
My return late at night, what has been written
In the rain of yesteryear. It makes no difference
Now. See your events as my events.
Everything will be as before: Abraham will again
Be Abram. Sarah will be Sarai.
Yehuda Amichai
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¶ 27 de Maio de 2004
Manhã
This
Today, my love,
leaves are thrashing the wind
just as pedestrians are erecting again the buildings of this drab
forbidding city,
and our lives, as I lose track of them,
are the lives of others derailing in time and
getting things done.
Impossible to make sense of any one face
or mouth, though
each distance
is clear, and you are miles
from here.
Let your pure
space crowd my heart,
that we might stay awhile longer amid the flying
debris.
This moment,
I swear it,
isn't going anywhere.
Ralph Angel
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¶ 26 de Maio de 2004
Manifesto
(o que não é manifesto, não produz efeito)
Before
Before the gate has been closed,
before the last question is posed,
before I am transposed.
Before the weeds fill the gardens,
before there are no pardons,
before the concrete hardens.
Before all the flute-holes are covered,
beore things are locked in then cupboard,
before the rules are discovered.
Before the conclusion is planned,
before God closes his hand,
before we have nowhere to stand.
Yehuda Amichai
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¶ 26 de Maio de 2004
Sem retorno
Sofrer e estar decepcionado são realidades profundamente diferentes: ao contrário do sofrimento, uma dor que queima, a decepção é uma "coisa" fria; quando surge, em particular no amor, sente-se muitas vezes que a causa nem vale, em bom rigor, grandes arroubos de alma, muito menos em doses que, passado algum tempo, parecem bastante incompreensíveis. A desilusão "fabrica" o céptico em relação à respectiva origem, à fonte de onde, silencioso e constante, correu o fio da decepção, aniquilando a vontade de se dispor, de se expor, sequer, em semelhente território tornado inóspito pela vida. Só que isto não é sofrer: sofrer é estar longe dos que amamos, mesmo nos casos mais benignos, em que essa distância pode ser percorrida; a desilusão é perceber que se idealizou a realidade à conta de se "alimentar o monstro" para além do razoável, até se ser engolido por ele. Sem dor.
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¶ 26 de Maio de 2004
A arte da fuga
Temas e voltas
Mas para quê
tanto sofrimento,
se nos céus há o lento
deslizar da noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se lá fora o vento
é um canto na noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se agora, ao relento,
cheira a flor da noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se o meu pensamento
é livre na noite?
Manuel Bandeira
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¶ 26 de Maio de 2004
Sem explicação
Nel mezzo del camin...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
Olavo Bilac, in Poesias, Sarças de fogo, 1888.
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¶ 25 de Maio de 2004
Under Her Dark Veil
(da reversibilidade)
Under her dark veil she wrung her hands.
"Why are you so pale today?"
"Because I made him drink of stinging grief
Until he got drunk on it.
How can I forget? He staggered out,
His mouth twisted in agony.
I ran down not touching the bannister
And caught up with him at the gate.
I cried: 'A joke!
That's all it was. If you leave, I'll die.'
He smiled calmly and grimly
And told me: 'Don't stand here in the wind.' "
Anna Akhmatova
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¶ 25 de Maio de 2004
Poesia
(cortesia de Ana Roldão Soares)
Esse nome
Esse nome, Poesia! Esse nome, esse nome...
Esse rito, esse mito, o chacal das angústias
Essa arma de fogo que repele e que explode,
Que o peito te alimenta e te come e te come!
O deserto a florir. O oceano a sangrar.
Tanta ave a subir das ruínas ardentes.
As pedras removidas. Os Templos abalados.
Os segredos dos deuses no fumo desvelados.
As promessas abertas. Os sacrários abertos.
Decifrados nos mortos insolúveis sinais.
Os retratos da água, quebrados. Mais os selos,
De todos os mistérios. Nos ventos abissais
A puríssima voz dos homens imortais.
E esse nome, Poesia? . .. Esse amante, onde o escondes?
Esse mágico arauto. O sangue do teu corpo.
O labirinto. O guia, da cega caminhada,
O terror, o terror, dos homossexuais,
Que gera e lhes destrói os dias geniais.
E esse nome, Poesia?!... Nas montanhas, nos cais,
As multidões de artistas, velhos adolescentes,
Fitam o arco de oiro. As fluidas espirais,
Do chicote que rasga coerências incoerentes.
Doidas andam nos céus as máquinas e os olhos
Pensamentos sem crânios.
Azuis fosforescências de azuis mediterrâneos.
Um atroz sofrimento aos homens prometido.
Diz seu nome, Poesia! Outeiros e balidos
De cordeiros dormidos lhe auguram a chegada.
Diz-lhe que venha, sem o fel do fim:
- Vem, Irmão, como a água.
Não provoques a chaga,
Nem estrela, nem cometa.
Vem consumado, enfim,
Como um dia virás
Para o último Poeta.
Natércia Freire
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¶ 24 de Maio de 2004
Outros tons
Ontological
This is going to cost you.
If you really want to hear a
country fiddle, you have to listen
hard, high up in its twang and needle.
You can't be running off like this,
all knotted up with yearning,
following some train whistle,
can't hang onto anything that way.
When you're looking for what's lost,
everything's a sign,
but you have to stay right up next to
the drawl and pull of the thing
you thought you wanted, had to
have it, could not live without it.
Honey, you will lose your beauty
and your handsome sweetie, this whine,
this agitation, the one you sent for
with your leather boots and your guitar.
The lonesome snag of barbed wire you have
wrapped around your heart is cash money,
honey, you will have to pay.
Maggie Anderson
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¶ 24 de Maio de 2004
Dia em cinza
How Heavy The Days
How heavy the days are.
There's not a fire that can warm me,
Not a sun to laugh with me,
Everything bare,
Everything cold and merciless,
And even the beloved, clear
Stars look desolately down,
Since I learned in my heart that
Love can die.
Hermann Hesse
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¶ 23 de Maio de 2004
Razões
(para dizer o amor, quando o tempo mostrou já que quem ouve é o eco exacto de quem diz)
Porque "nomear as coisas é criá-las"*. Porque quem ouve torna-se fiel depositário do fundo de quem diz. Porque ontem ainda não era assim, ou o medo era mais forte. Porque Eros ilumina as vozes que sopram no ar a verdade maior. Porque amanhã Tanatos vai tornar tudo impossível. Dizer, para dar corpo ao invisível assombro.
* Ruy Belo
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¶ 23 de Maio de 2004
Incha'allah
A partir de um certo ponto já não há regresso. É esse o ponto que deve ser alcançado.
Kafka
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¶ 23 de Maio de 2004
In a way...
Since I left you, mine eye is in my mind,
And that which governs me to go about
Doth part his function, and is partly blind,
Seems seeing, but effectually is out;
For it no form delivers to the heart
Of bird, of flower, or shape which it doth latch;
Of his quick objects hath the mind no part,
Nor his own vision holds what it doth catch;
For if it see the rud'st or gentlest sight,
The most sweet-favour or deformed'st creature,
The mountain or the sea, the day or night,
The crow or dove, it shapes them to your feature.
Incapable of more, replete with you,
My most true mind thus maketh mine untrue.
William Shakespeare
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¶ 22 de Maio de 2004
A vida em relâmpago
(breve, ou da totalidade)
Escassas horas vividas com todos os átomos do corpo, toda a invocação da alma; horas com tudo dentro, repondo um sentido qualquer, como um magnífico sonho meio esquecido que, de repente, vem à memória de forma quase alarmante de tão clara. A luz acesa no olhar, o relâmpago súbito a prender o segundo exacto. A brevidade total. O instante maior do que a vida.
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¶ 22 de Maio de 2004
Da lucidez sem mácula
(ou o presente de Lúcifer)
Canção do Verdadeiro Abandono
Podem todos rir de mim,
podem correr-me à pedrada,
podem espreitar-me à janela
e ter a porta fechada.
Com palavras de ilusão
não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
não tem vislumbres de além.
Não sou irmã das estrelas,
nem das pombas nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
de bicho que sofre as pedras
e se desloca de rastos.
Natércia Freire
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¶ 22 de Maio de 2004
Com atraso
Apenas justificado pela falta de tempo fora do habitual, saudações ao Almocreve e um sincero agradecimento pela referência ao aniversário do Modus
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¶ 22 de Maio de 2004
Cara e coroa
O que ela descobria na alma, nos labirintos do amor, nas certezas do que os unia, ele lia no mundo, no exterior, nos homens e nas coisas, sem nunca se perderem de vista.
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¶ 22 de Maio de 2004
Never a dull moment...
Tantos livros à espera, empilhados junto à janela, comprados com gozo antecipado (Donna Tart, o tão falado Dan Brown, os contos de Richard Ford...); música que se quer ouvir sem estar a fazer mais nada, só a pairar dentro dela, num túnel privado e invisível; filmes comprados para suprir a desatenção ao tempo em que estiveram em exibição e que agora vão ser saboreados em fins de tarde de domingo, num sossego egoísta de tão puro. E falta de tempo ainda para tudo isto, os Códigos sem darem tréguas, o verão a prometer e a esquivar-se, caprichoso. E, no meio de tudo, no meio de nada, uma bolha retirada aos ponteiros do relógio, para pôr a vida lá dentro.
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¶ 21 de Maio de 2004
Dia 21
(outro, muito diferente, ou talvez não)
Twenty-first. Night. Monday.
Silhouette of the capitol in darkness.
Some good-for-nothing -- who knows why --
made up the tale that love exists on earth.
People believe it, maybe from laziness
or boredom, and live accordingly:
they wait eagerly for meetings, fear parting,
and when they sing, they sing about love.
But the secret reveals itself to some,
and on them silence settles down...
I found this out by accident
and now it seems I'm sick all the time.
Anna Akhmatova
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¶ 20 de Maio de 2004
Do medo de naufragar
(ou da luta contra o amor)
Cuatro cosas tiene el hombre
que no sirven en la mar:
ancla, gobernalle y remos,
y miedo de naufragar.
Antonio Machado
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¶ 20 de Maio de 2004
Pouco tempo
Para olhar o fundo do poço, ver os círculos concêntricos desenhados pelas pequenas pedras do quotidiano e as ondulações mais fortes geradas por quem conta; pouco tempo até para ler as palavras dos outros, para escolher vozes alheias que ressoam dentro como se de lá viessem.
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¶ 19 de Maio de 2004
Do risco
(ou da desistência de viver em pleno)
I taught myself to live simply and wisely,
to look at the sky and pray to God,
and to wander long before evening
to tire my superfluous worries.
When the burdocks rustle in the ravine
and the yellow-red rowanberry cluster droops
I compose happy verses
about life's decay, decay and beauty.
I come back. The fluffy cat
licks my palm, purrs so sweetly
and the fire flares bright
on the saw-mill turret by the lake.
Only the cry of a stork landing on the roof
occasionally breaks the silence.
If you knock on my door
I may not even hear.
Anna Akhmatova
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¶ 18 de Maio de 2004
Coincidência?
(ou do que une)
Pelo utilísssimo Technorati, descubro um blogue chamado um dia destes... e fico a saber que, com poucas horas de diferença, fizemos um post idêntico, com um certo poema do Al Berto. Tal como o/a autor/a (não tendo visto nome, inclino-me para a primeira hipótese, já que o conteúdo de posts mais antigos me parece deixar poucas dúvidas em matéria de gender autoral...) deste blogue intuiu, eu nunca lá tinha passado e não sabia desta coincidência. E será isso? Ou antes um território adquirido e partilhado, mesmo por desconhecidos, sobretudo por desconhecidos? A pertença a um universo mental, a um conjunto de referências que são, depois de tudo, a matriz.
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¶ 18 de Maio de 2004
A menos
Menos tempo do que o estritamente necessário para o meu Modus Vivendi, nos últimos dias, por causa de outras palavras que têm que ser escritas, atiladas, atinadas, ordeiras, regradas, com sentido, consentidas - os editores não gostam de atrasos, e os livros "técnicos" (técnicos? será técnica essa ordem emprestada à vida pelo direito?) têm prazos muitos certeiros para o aparecimento aos olhos do pequeno mundo que os procura.
Menos tempo do que o escassamente suficiente para tirar o peso vago e indistinto que oprime sem razão aparente, para fingir que o sol e o mar chegam para tudo, para insistir em que a música e as portas abertas pelas palavras dos outros são caminhos perfeitos para fora desta prisão feita de mim.
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¶ 18 de Maio de 2004
Poema em forma de presente
(para A.T.C.)
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.
Hilda Hilst
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¶ 18 de Maio de 2004
Há-de flutuar uma cidade...
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
Al Berto
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¶ 17 de Maio de 2004
Agenda
The Sentence
And the stone word fell
On my still-living breast.
Never mind, I was ready.
I will manage somehow.
Today I have so much to do:
I must kill memory once and for all,
I must turn my soul to stone,
I must learn to live again--
Unless . . . Summer's ardent rustling
Is like a festival outside my window.
For a long time I've foreseen this
Brilliant day, deserted house.
Anna Akhmatova
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¶ 16 de Maio de 2004
Força maior
Acabo de ver na SIC Notícias (no programa Sociedade das Nações)um pequeno documentário muito bem feito e, a meu ver, absolutamente comovente na força serena que transmite, a propósito do trabalho do maestro judeu Daniel Barenboim à frente da Orquestra Juvenil Palestiniana, em Ramallah. A simplicidade corajosa do amor (à música, à paz, aos outros) que Barenboim expressa com uma humanidade tocante foi completada por pequenas entrevistas a dois jovens de dezassete anos, ambos pertencentes à orquestra: à certeza de que "a música nunca morrerá", da jovem pianista, soma-se a constatação do colega de que "os jornalistas só mostram as bombas e as pedras, mas há mais quem queira a paz". A montagem final, intercalando imagens da orquestra a tocar um excerto da Carmen com o controlo militar, a devastação do local e a óbvia dureza daquela vida é mais forte do que estas poucas palavras sabem dizer.
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¶ 16 de Maio de 2004
Quase tudo
As mãos pressentem...
As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar
ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada
Al Berto
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¶ 15 de Maio de 2004
Ter
(na ausência)
O outro em volta, como o ar que se respira, como o calor que marca a vida, como o pulsar da terra, sempre mutável, ardendo fundo sob os nossos pés.
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¶ 15 de Maio de 2004
Défice de memória
(dos incontáveis instantes possuídos)
A imagem retida é morta. Ganhar sempre novas e vivíssimas representações da precaridade a que chamamos real é a única fuga possível do confronto com a inevitável dissolução.
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¶ 15 de Maio de 2004
Da certeza maior
Quando não estavam juntos, tão próximos que respiravam à vez e lhes bastava, contendo o espaço entre os corpos até ao limite e bebendo com sofreguidão o fio de água que inventavam; quando a distância da vida habitual se impunha entre eles, de tal modo que o olhar passava, pelo corredor da memória constante, para a matéria de que são feitos os sonhos; quando as horas se escoavam e só batiam ao som da voz distante, trazida com clareza ou indistinção pelo meio dos astros (e era a maior parte do tempo, se contado com a sensata exactidão do calendário); quando era assim, a certeza maior de cada um estava fechada, guardada e rigorosa, no sangue do outro.
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¶ 14 de Maio de 2004
Um dia incerto
(da memória mais provável)
You will hear thunder and remember me,
And think: she wanted storms. The rim
Of the sky will be the colour of hard crimson,
And your heart, as it was then, will be on fire.
That day in Moscow, it will all come true,
when, for the last time, I take my leave,
And hasten to the heights that I have longed for,
Leaving my shadow still to be with you.
Anna Akhmatova
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¶ 14 de Maio de 2004
Também
Quero agradecer ao Mário o lindo presente de aniversário para o Modus e, por via correio electrónico, os parabéns com a simpatia e o apoio habituais do Zeferino, e as inesperadas e gentilíssimas palavras do meu amigo António Martins de Brito.
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¶ 14 de Maio de 2004
Cartilha
(da sedução)
"Recusar e ceder", murmurava, "como é delicioso; perseguir e conquistar, como é magnífico; compreender e raciocinar, como é sublime."
in Orlando, de Virgínia Woolf,trad. de Cecília Meireles, ed. Diário de Notícias.
Nota explicativa para desatentos: estas palavras de Orlando são proferidas já na sua qualidade de mulher...
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¶ 13 de Maio de 2004
Só
(porque alguém ma lembrou hoje...)
Solitude
So many stones have been thrown at me,
That I'm not frightened of them anymore,
And the pit has become a solid tower,
Tall among tall towers.
I thank the builders,
May care and sadness pass them by.
From here I'll see the sunrise earlier,
Here the sun's last ray rejoices.
And into the windows of my room
The northern breezes often fly.
And from my hand a dove eats grains of wheat...
As for my unfinished page,
The Muse's tawny hand, divinely calm
And delicate, will finish it.
Anna Akhmatova
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¶ 13 de Maio de 2004
Ainda
Falta agradecer ao Crítico a gentileza, a propósito do aniversário do Modus, ao Sítio do Picapau Amarelo, pela indicação extensiva deste endereço,à Inês, pela referência, e à Maria, que agora tem casa própria na blogosfera.
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¶ 13 de Maio de 2004
Correcção
(para a Alice)
Numa mensagem de correio, uma amiga cuja sensibilidade muito admiro, escrevia-me, a propósito de um post do Modus, que considera o desespero como a pérola do amor. Não posso concordar com ela: o desespero é antes a poção envenenada do sofrimento; o amor não gera desespero, mas sim crescimento, acrescento, consideração. O resto, bem pelo contrário, são simulacros sofridos, jogos de espelhos absurdos que escondem a verdade, o brilho e a transparência do amor. Um dia, verá.
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¶ 13 de Maio de 2004
Da difícil precisão
(ou da persistência versus masoquismo)
A fronteira limite entre atitudes, apesar de bem diversas em natureza, é quase sempre difícil de traçar: a vida não é a preto e branco, e os matizes de cinzento são quase infindáveis. Por isso, em última análise, só cada um de nós saberá com precisão (?) onde situar a "linha justa" de um percurso existencial. Por outras palavras, mais do que um sentido racional ou moral puros, procuramos a valia ética da nossa actuação, medindo-a pela bitola da dignidade, face aos outros e a nós próprios.
É por isso ilusório, quase arrogante, pretender qualificar as acções dos outros em termos de coragem ou cobardia, persistência ou desistência, no contexto de escolhas que só o foro íntimo pode avaliar. Cada um sabe onde acaba a virtude da permanência e começa a destruição doentia de si mesmo, onde se extinguem a persistência e a determinação e apenas sobram masoquismo e teimosia inglórios, desertificantes, maquinais e ásperos. Quem se enganar, ainda assim, na distinção destas paredes meias na edificação da sua própria vida, corre o risco de pagar o preço em amargura. Voltar a página no momento em que nada mais há a esperar, não somente do outro, mas sobretudo do que se procurou construir com ele, é um momento de dor, mas certamente condição sine qua non para se cumprir plenamente quem se é. Cada um terá a percepção dos seus tempos, do ritmo de aprendizagem de si mesmo, de maturação, da medida das suas forças, do tamanho da esperança que o anima, da saturação face à inegável impossibilidade dos seus desígnios. Só a soberba mais extrema pode permitir o atrevimento de julgar as pessoalíssimas opções dos outros neste labirinto.
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¶ 13 de Maio de 2004
Opostos
Can a mote of sunlight defeat its purpose
When thought shows it to be deep or dark?
See sun, and think shadow.
Louis Zukofksky (1904-1978)
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¶ 12 de Maio de 2004
Mais agradecimentos
À Alice Gomes e à Rita Maltez, que me mandou um presente:
UM POEMA
Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...
Miguel Torga, Diário XIII.
E também, pelo apreço tantas vezes manisfestado por correio, pela atenção na leitura, pela consideração, obrigada à Soinico e à Helena.
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¶ 12 de Maio de 2004
Pesadelo
(em forma de diálogo recorrente)
- Complicas tudo. Dás importância exagerada a coisas insignificantes.
- Não complico. Explico. Explico por que não sei settle for less, por que não quero aprender nunca a perder a esperança, o desejo.
- Isso não importa. Nunca dei importância a isso. Não sei sequer o que é isso a que chamam "uma relação". Vivo várias vidas em paralelo e todas se equivalem.
- É natural. Não chegas a ver para além de ti mesmo. Se não vês sequer o outro ou, mesmo que o vejas em alguns instantes, é-te de tal forma irrelevante que não sabes nomeá-lo; como poderias perceber o que é considerar alguém em ligação connosco? Uma relação é isso. Não é só pragmatismo, acção, corpo. É muito mais, durante muito mais tempo. É saber a densidade do olhar do outro. É ter-lhe o nome inscrito na alma.
- Hum, hum.
- Exacto.
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¶ 12 de Maio de 2004
Questão de saúde
Não permitir que o desapontamento, mal tratado, se converta em desilusão crónica.
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¶ 12 de Maio de 2004
Quando
(tudo já foi dito)
The sunlight on the garden
Hardens and grows cold,
We cannot cage the minute
Within its nets of gold,
When all is told
We cannot beg for pardon.
Our freedom as free lances
Advances towards its end;
The earth compels, upon it
Sonnets and birds descend;
And soon, my friend,
We shall have no time for dances.
The sky was good for flying
Defying the church bells
And every evil iron
Siren and what it tells:
The earth compels,
We are dying, Egypt, dying
And not expecting pardon,
Hardened in heart anew,
But glad to have sat under
Thunder and rain with you,
And grateful too
For sunlight on the garden.
Louis MacNeice (1907-1963)
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¶ 12 de Maio de 2004
Agradecimentos
Os parabéns pelo aniversário do Modus, que chegam por correio ou estão à janela de vizinhos, são acompanhados de palavras de apoio, de expressões amigas, de atenção. Obrigada a todos. Um agradecimento expresso é ainda devido, como segue, e por desordem:
Pedro Lomba
M. (Piano drunk)
Carla Hilário de Almeida Quevedo
A.M. (Azul Cobalto)
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¶ 11 de Maio de 2004
Para começar
(de novo)
Paisagem pelo telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
João Cabral de Melo Neto
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¶ 11 de Maio de 2004
Aniversário
Um ano de Modus. Um ano a escrever para outros lerem o que durante anos ficava em folhas soltas, em guardanapos de café, em margens de cadernos de outras notas. Um ano a escolher palavras de outros, a colocá-las como quem enfeita a casa onde vive. Um ano que me trouxe pessoas dentro.
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¶ 11 de Maio de 2004
Outro presente
(de C., que me é muito querido e não gosta de me saber assim)
Encomenda
Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê - como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.
Cecília Meireles
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¶ 11 de Maio de 2004
Da insolvência
O novo código da Insolvência e Recuperação de Empresas prevê um instituto notável. Não, não me enganei no local de escrita, nem estou a sucumbir a um fulminante ataque de confusão; a verdade é que me calhava muitíssimo bem a aplicação de um princípio ali previsto para os devedores singulares se poderem libertar de algumas das suas dívidas. Chama-se, significativamente, fresh start, e significa que, uma vez tendo feito, de forma séria e recta, tudo o que estiver ao seu alcance para cumprir as suas obrigações, o insolvente pode ser exonerado do passivo restante.
Meu Deus, não se pode pedir uma aplicação extensiva aos insolventes afectivos?
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¶ 11 de Maio de 2004
Vontade
Away, melancholy,
Away with it, let it go.
Are not the trees green,
The earth as green?
Does not the wind blow,
Fire leap and the rivers flow?
Away melancholy.
The ant is busy
He carrieth his meat,
All things hurry
To be eaten or eat.
Away, melancholy.
Man, too, hurries,
Eats, couples, buries,
He is an animal also
With a hey ho melancholy,
Away with it, let it go.
(...)
Speak not to me of tears,
Tyranny, pox, wars,
Saying, Can God
Stone of man's thoughts, be good?
Say rather it is enough
That the stuffed
Stone of man's good, growing,
By man's called God.
Away, melancholy, let it go.
Man aspires
To good,
To love
Sighs;
Beaten, corrupted, dying
In his own blood lying
Yet heaves up an eye above
Cries, Love, love.
It is his virtue needs explaining,
Not his failing.
Away, melancholy,
Away with it, let it go.
Stevie Smith (1902-1971)
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¶ 10 de Maio de 2004
Será assim?
When it rains on Sunday and you are alone,
open to the world but no thief comes
and neither drunkard nor enemy knocks at the door,
when it rains on Sunday and you're deserted
and can't imagine living without the body
or not living since you have it,
when it rains on Sunday and you're on your own,
don't think of chatting with yourself.
Then it's an angel who knows, and only what's above,
then it's a devil who knows, and only what's below.
A book is in the holding, a poem in release.
Vladimir Holan (1905-1980)
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¶ 10 de Maio de 2004
Prémio
(de consolação, também oferta da MJF)
O Verme e a Estrela
Agora, sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela te supus.
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!
E eras assim...Porque não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! Enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver!
Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela, nunca te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! Ceguei da tua luz!
P. Kilkerry (1885-1917)
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¶ 10 de Maio de 2004
Sugestão
A minha amiga Maria João Figueiras, que me presenteia de vez em quando com um café a horas um pouco insanas de tão matinais, acaba de, na sequência de uma conversa tida "ao raiar da bela aurora" (enfim, quase...), me escrever um mail com uma sugestão que me vejo forçada a considerar: diz ela, e tendo em conta a minha experiência, analisada pela sua condição de doutora em Psicologia, que eu devia escrever histórias, não sobre Kronos, mas sobre... Kromos! Sempre lúcida, brilhante e oportuna; com amigas assim...
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¶ 10 de Maio de 2004
Do olhar petrificado
The stone.
The stone in the air, which I followed.
Your eye, as blind as the stone.
We were
hands,
we baled the darkness empty, we found
the word that ascended summer:
flower.
Flower - a blind man's word.
Your eye and mine:
they see
to water.
Growth.
Heart wall upon heart wall
adds petals to it.
One more word like this word, and the hammers
will swing over open ground.
Paul Celan
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¶ 9 de Maio de 2004
Caminho
(para a sabedoria, descalça e sem fonte à vista)
Aprender a dar cada vez menos importância ao que não tem nenhuma. Aprender a dar cada vez menos importância a quem não a souber ter. Aprender a não sofrer em nenhum desses processos. Encurtar o caminho entre desejo e realidade. Preencher o vazio do desapontamento com o prazer da música, com o enleio da literatura, com a ficção dos filmes, com o sorriso nos olhos que fizemos, que nos fizeram. Esquecer o resto, não pensar em quem não nos vê, ou vê mas não distingue, ou distingue mas se nos esqueceu do nome. Esperar que a vida mude, ou esperar que se deixe de desejar a mudança. Aprender, acima de tudo, a deixar de lado a esperança, como fez, e bem (há-de ter tido as suas razões...), a senhora da Casa dos Este.
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¶ 9 de Maio de 2004
Estragos do tempo
Ter um dom e perdê-lo, ainda que pelo mero, incontornável e somente natural decurso implacável do tempo, pode ser vivido de forma dramática, quando a vida está esvaziada de quase tudo o resto. É a descrição dessa realidade funesta que se encontra em Callas, de Franco Zeffirelli (2002), com Fanny Ardant e Jeremy Irons em desempenhos tão bem sucedidos quanto se esperaria de qualquer deles. Para constatar, uma vez mais, como a vida nada tem a ver com justiça.
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¶ 9 de Maio de 2004
Nolli me tangere
(ordem ou mera súplica?)
Nolli me tangere
Perché sono già
Com' una balsamina
A maturità.
Già tocco il cielo
Con un dito tuo
Un dito che mi sfiora
Con abilità
Ne me touche pas
E la febbre viene
E la febbre va
E se ne tornera
Quando sarai tu
A maturità.
Dimmi, dimmi giù
Bocca, bocca mia
Ne me touche pas
Ne me touche plus !
Nolli me tangere
Perché sono già
Com' una balsamina
A maturità.
Quando nasce la febbre
E mi dici : "ti amo"
Ti spalmo di balsamo
Il petto che ti bruccia.
Ne me touche pas
Ne me touche plus !
Thomas Fersen
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¶ 9 de Maio de 2004
Retrato
Maria Filomena Mónica deu uma entrevista muito interessante a Anabela Mota Ribeiro (in DNa, 7/5/04). Interessante e curiosa, porque (ao menos para mim), pontuada de declarações inesperadas. MFM é uma intelectual que admiro pela honestidade do trabalho que apresenta, pelo rigor, pela inteligência implacável e tantas vezes duríssima das suas crónicas. É uma mulher muito bonita, muito inteligente, muito culta. Se há elite, no sentido de conjunto de pessoas com uma formação claramente superior à média, com um pensamento sobre o mundo e com capacidade de acesso aos diferentes meios para publicitar esse produto de si e das suas circunstâncias, então, goste-se ou não da pessoa que parece ser, MFM é parte integrante (e até liderante) dessa elite, tão pequena, mesmo proporcionalmente, no Portugal dos dias de hoje.
Mas esta realidade não é a parte curiosa da entrevista: para quem a observa, nos colóquios em que participa, nas crónicas que escreve, MFM parece gélida, um ser entronizado em si mesmo. Afinal, tem a dignidade suprema de expor problemas estruturais, como a difícil relação com a sua mãe, as suas dúvidas, a fragilidade face ao sentimento de culpa. Acima de tudo, é senhora de si, do seu passado, do seu presente. Tive orgulho nela, naquela entrevista, apesar de, não a conhecendo pessoalmente, nem sequer ter simpatia pela pose com que me tinha cruzado. Até ontem.
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¶ 9 de Maio de 2004
Mais um dia
i carry your heart with me (i carry it in
my heart) i am never without it (anywhere
i go you go, my dear;and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate (for you are my fate,my sweet) i want
no world (for beautiful you are my world,my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you
here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart
i carry your heart (i carry it in my heart)
e. e. cummings (1894-1962).
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¶ 8 de Maio de 2004
Tempus fugit
O Modus Vivendi está quase a fazer um ano. Precisamente nesta altura, no ano passado, estava em Nápoles, e alguém inominável mostrava-me como me poderia ser útil ter um blogue "para comunicar com os meus alunos", dizia, bem intencionado e algo ingénuo. Como de costume, o feitiço virou-se (um pouco, só um pouco) contra o feiticeiro, e o Modus nunca me serviu para ensinar fosse o que fosse, mas sim para me ajudar a perceber o que não aprendi (não digo que não aprendo, que não aprenderei; somente que, até este preciso instante, não aprendi, ou não sei ainda que sei, mas deixemos esse detalhe perverso).
Um ano que me permitiu o exercício frequente de uma escrita muito diferente da que torno pública noutros contextos, mas que, sobretudo, me trouxe pessoas por detrás de outros blogues (e que hoje me conforta e alegra saber que existem, que as posso ouvir e ver). Até um ou outro pequeno dissabor, uma ou outra decepção, deram mais sentido à "pessoalidade" deste meio só aparentemente virtual.
Se tivesse mais tempo para estar por aqui, leria certamente mais do que outros escrevem, mas não escreveria mais - procuro que caiba no Modus o registo residual dos dias, que transpareça o diário de bordo do que me perturba, intriga, alegra, encanta. E tudo isso tem a importância que tem, no decurso do tempo. Ou seja, nenhuma.
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¶ 8 de Maio de 2004
Do secreto domínio
To see a world in a grain of sand,
And a heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand,
And eternity in an hour.
William Blake (1757-1827).
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¶ 7 de Maio de 2004
In nomine
(metadiálogos em insónia dormente)
"Para eles eu inventei os números, a primeira das ciências, mas também ensinei os homens a combinarem as letras, memória de todas as coisas, mãe de todas as artes."
Ésquilo, in Prometeu agrilhoado
- Pelo modo como me nomeias, no meio de tantos nomes, de tantas letras possíveis, não é a mim que dimensionas; dimensionas-te face a mim, traças a exacta fronteira entre nós; alargas ou restringes a tua 'zona de influência' dentro de quem sou, dentro do que, em mim, te poderia pertencer.
- Pelo modo como me nomeias ou te escondes do meu nome, me iluminas como estrela no firmamento do teu olhar ou me apagas como um fósforo breve e inútil, como usas a música das letras ou te resguardas atrás delas, feitas biombo para um anonimato lento e letal, invocas ou exconjuras a chama do amor.
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¶ 7 de Maio de 2004
O tempo
(necessário e suficiente))
Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.
How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.
Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.
Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.
W. H. Auden
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¶ 7 de Maio de 2004
On the other hand
(na ausência do nome)
A esperança no ouro encoberto sob a penumbra do que não se escolheu nem queria, que tomou anos de vida à revelia da vontade. Só ter as mãos nuas para o procurar e tentar resgatar da terra ardente. A certeza dos dias cada vez mais curtos, a luz sedenta e breve, quase relâmpago a afastar ainda a noite iminente. O medo, sim, a faca longa e fria do medo a trespassar vezes sem conta o fantasma da perpétua distância, inelutável sentença sem recurso. A força da gravidade obrigando a ficar, vencendo no último limite da coragem a tentação de partir, de ser ainda de outro modo. Sonhar em trazer a glória da morte à expectativa inútil, à pequenez sem espaço do presente sempre e só translúcido. A dúvida doendo no limiar incerto de cada madrugada a mais.
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¶ 7 de Maio de 2004
Legado
(ou do amor no tempo)
Viver um amor o tempo suficiente para adormecer a prudência dos gestos, para despir o olhar até cada vez mais dentro do abismo. O tempo justo para as cores mudarem. O tempo bastante para o desejo crescer muito para além dos corpos e tornar-se luz em volta. O tempo necessário para ter valido a pena tudo o que doeu.
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¶ 6 de Maio de 2004
Fiat
(não, não é a marca)
Por indicação expressa de C., a que nunca teria vontade de desobedecer, aqui fica o que mandou publicar:
É proibida a entrada a quem não estiver espantado de existir.
José Gomes Ferreira
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¶ 6 de Maio de 2004
Aniversário
Para o Abrupto, que hoje faz um ano de intensa actividade na blogosfera, with craft and art, exercised in the still night.
In my craft or sullen art
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms,
I labour by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages
But for the common wages
Of their most secret heart.
Not for the proud man apart
From the raging moon I write
On these spindrift pages
Nor for the towering dead
With their nightingales and psalms
But for the lovers, their arms
Round the griefs of the ages,
Who pay no praise or wages
Nor heed my craft or art.
Dylan Thomas (1914-1953)
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¶ 6 de Maio de 2004
As a token
(for a probable visit)
You were my death:
you I could hold
when all fell away from me.
Paul Celan (1920-1970)
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¶ 5 de Maio de 2004
The Sea And The Man
You will not tame this sea
either by humility or rapture.
But you can laugh
in its face.
Laughter
was invented by those
who live briefly
as a burst of laughter.
The eternal sea
will never learn to laugh.
Anna Swir
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¶ 4 de Maio de 2004
Erauma vez...
...um rei que tinha livros à solta como cavalos e palavras contidas, destinadas a servi-lo e a protegê-lo sem falhas nem devaneios, exército luciferino vigilante e vigiado. Era um homem brilhante, de olhar forte e profundo, que tinha visto muitas coisas e pensado bastante sobre os outros homens. Quem o via, quem o ouvia, não poderia nunca adivinhar que era o vassalo leal de Kronos, um deus austero, rigoroso e possessivo, com quem fizera um pacto mais exigente do que qualquer suserano terreno poderia imaginar: era Kronos que dizia ao rei quem deveria ter perto e em que exacta medida, e quem manter longe mesmo amando, sacrificando apenas escassos grãos de areia escorrendo em medida invisível e sagrada. O rei sabia que era assim, e julgava que era o preço a pagar pelo poder que pensava manter. Não via que as palavras que não dizia no tempo que não tinha se tornavam em gelo no fundo da alma, cada dia aumentado até todo o sangue se tornar um imenso rio gelado, correndo parado sob o riso de Kronos.
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¶ 4 de Maio de 2004
Resumo
(Nejar e Pessoa, ou a construção de um motto)
"O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco."
"Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada"
"Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres."
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¶ 4 de Maio de 2004
Do tempo
(ainda e sempre)
So, Time
(The same thought resumed)
So, Time,
Royal, sublime;
Heretofore held to be
Master and enemy,
Thief of my Love's adornings,
Despoiling her to scornings: -
The sound philosopher
Now sets him to aver
You are nought
But a thought
Without reality.
Young, old,
Passioned, cold,
All the loved-lost thus
Are beings continuous,
In dateless dure abiding,
Over the present striding
With placid permanence
That knows not transience:
Firm in the Vast,
First, last;
Afar, yet close to us.
Thomas Hardy (1840-1928)
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¶ 3 de Maio de 2004
Das aparências
(e um pouco mais além)
Lunalva
Se quiserem saber quem sou
- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e se amam
Loucamente
Se quiserem saber do meu destino
- Não sei do meu destino
- Não sei do meu nome
Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada
Se quiserem saber donde venho
- Não sei donde venho
Talvez venha do vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das madrugadas
Não
Não me amem tão depressa
"Não me compreendam tão depressa"
Não me julguem tão fácil
Por favor
Não me julguem tão mesquinho
Tão quotidiano
O pão que trago comigo
- Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
- Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
- Todos hão de beber
Do Fogo e do Sangue
Carlos Nejar
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¶ 2 de Maio de 2004
Do poder
Elizabeth, um filme de Shekhar Kapur com Cate Blanchett na protagonista, é uma bela estória retirada da história. Para além de outros aspectos mais ou menos interessantes acerca da ambição, da corrupção, da traição ou da vingança, mostra bem como o poder, o verdadeiro poder sobre a vida e a morte de outros, aniquila uma parte da alma; se é para aproximar o indivíduo da essência do divino ou para o arrastar na mais completa aridez infra-humana, ficará dependente do olhar. Mas que é uma via sacrificial, duríssima, não há como negar.
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¶ 2 de Maio de 2004
Da esperança
(em resposta a A.M.)
Alguém que põe grande atenção na leitura do Modus (e que tem a gentileza de me transmitir algumas apreciações, muito interessantes) encontrou, nos posts que coloquei ao longo da semana que findou, uma nota a que chamou de esperança. Não me tinha apercebido desse matiz visível, e, sobretudo, não se tratou de uma conotação consciente e deliberada; mas, em bom rigor, há uma qualquer branda expectativa face à vida, ao que, sem podermos realmente antever, nos pode surpreender, alegrar e ajudar a viver de outra forma, a realizar desejos que, de tão adiados, mais pareciam desaparecidos em combate, num percurso de anos rarefeitos, votado à (vã) tentativa de adaptação a algo que, por livre e espontânea vontade, nunca se teria escolhido como caminho. É verdade que mesmo essa via é sempre uma escolha, mas é muitas vezes "forçada", sobretudo por circunstâncias interiores que dominamos mal e percebemos pior; não é tanto uma opção, mas antes um certo determinismo que obriga a pisar vidros de pés nus, em vez de calçar, sensatamente, botas cardadas. Mas a vida pode ser um caminho cheio de bifurcações, se estivermos cientes de nós, do que queremos, do que podemos. E se aprendermos a resgatar o tempo, não o passado, que foi, mas o presente, que ainda agora era futuro. Basta ter a coragem de apostar no que se acredita, sabendo que o amor não é um passatempo, uma ocupação agradável e gratificante fruída em part time bem disciplinado, mas uma verdade existencial total, transparente, sem horários convenientes nem little boxes onde arrumar sem incómodo.
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¶ 2 de Maio de 2004
Da tirania
(do tempo passado)
"All time is unredeemable"
T. S. Eliot
É curioso como se pode ter esta frase há muito a ressoar e, de repente, perceber-lhe um novo significado: a condenação pelo tempo que não se teve,ou em que não se esteve, não por escolha ou hesitação sequer, mas somente por mero efeito aleatório das circunstâncias. O efeito do acaso, em si mesmo, é tão óbvio e banal que nem se chega a oferecer como matéria de reflexão - excepto quando essa pura alea se torna sentença: modela o presente, restringe o movimento, fecha o arco de possibilidades do futuro. "Pagar" pelo que se escolhe é o risco do jogo; ficar condenado pelo que sucedeu numa determinada ordem e não noutra, por simples caso fortuito, é mais difícil de aceitar. Todo o tempo é irremível, irresgatável. E não adianta apontá-lo como uma arma - o tempo não aprisiona, nós é que nos desculpamos com ele.
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¶ 2 de Maio de 2004
Permanências
Uma das mais constantes leitoras do Modus é autora de poemas, com livros publicados na sua Pátria, onde se fala um português temperado pelo hemisfério sul. Aqui fica um presente que me ofereceu, para partilhar.
Impertinência
sei de tantos descaminhos
desolhares, desistências;
sei como é estar sozinho
sem nenhuma indulgência,
sem nunca pedir clemência.
sei de mim: um ser marinho,
perdido a meio caminho
do deserto, na iminência
de esquecer o mar, vizinho
de abismo e insolvência.
mas não será desse espinho
que hei de morrer. paciência.
a tal vil redemoinho,
ofereço a impertinência
de quem conhece a ciência
do sobreviver: sem vinho,
herói, quixote ou moinho,
sigo adiante. e de ausência,
cinjo-me, enquanto escrevinho
meus versos de inexistência.
Márcia Maia
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¶ 2 de Maio de 2004
Qualificação
Não venham com razões
e palavras estreitas.
O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.
E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.
O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.
Carlos Nejar, in Danações, 1969.
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¶ 1 de Maio de 2004
(Des)esperança
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
Fernando Pessoa
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¶ 1 de Maio de 2004
Poema de Maio
(pela pura beleza das palavras, sem mais)
Maio maduro Maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul
Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era o dia da festa
Maio de amores
Era o dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar
Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar
Numa rua comprida
El-rei pastor
Vende o soro da vida
Que mata a dor
Venham ver, Maio nasceu
Que a voz não te esmoreça
A turba rompeu
José Afonso
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