¶ 30 de Novembro de 2015
Richard Tuschman
outra luz
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 30 de Novembro de 2015
Cada dia é mais evidente que partimos Sem nenhum possível regresso no que fomos, Cada dia as horas se despem mais do alimento: Não há saudades nem terror que baste. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 29 de Novembro de 2015
A paixão tem sapatos altos e bicudos, a paixão tem uns ombros larguíssimos. A paixão nunca é pequena (já muitos falaram de pequenas paixões, mas [das duas três] ou eram todos tontos ou de português pouco sabiam). A paixão é pouco dada a regras (no dar-se sempre) ou a compromissos; A paixão é pouco tolerante e nunca é razoável (a noção de equidistância ou de regular partilha de custos e benefícios é parte de calendários mais práticos a outras sabeduras). A paixão é esquisita como tudo. A paixão não falece, a paixão nunca descansa em paz: Há toda uma violência de açúcar verde, na paixão, um compromisso com o sangue, um desafio à espinha (a paixão é um peixe antigo e asiático), uma excitação como se Bach viesse tomar uma canjinha lá a casa. A paixão vê o teu lindo vestido e o teu leque no chão (e não vê vestido nem leque nem chão) a paixão ouve-te em hora de ponta (e não percebe que chamam para sair do metro), a paixão é mais salgada que os teus dois joelhos (qualquer que seja o seu sabor, e é bom seguramente o sabor dos teus joelhos), a paixão é veludo a rasgar as noites e os dias (a paixão tem dedos de cinzel, meiga como Caravaggio ou Ulisses Brandão), a paixão cheira-me a ti e a todos os Oceanos (nem mais). A paixão tem todos os sentidos, e pelo menos mais um. A paixão é uma Mãe a olhar o filho no dia em que nasceu Rui A.
¶ 28 de Novembro de 2015
A verdade é que nós somos sempre não uma mas várias pessoas e deveria ser norma que a nossa assinatura acabasse sempre por não conferir. Todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, mas o mais triste é ter mesmo que escolher. Mia Couto
¶ 27 de Novembro de 2015
Dizem, do silêncio, que pode ter todas as esferas, e mais uma - a cortar arestas, dessas que rasgam as manhãs mais fevereiras, a encurtar musgos e danças. Dizem, do silêncio, que é flor de Maio no sonho mais perto, que é grito, que é lança, que é todo um manifesto contra a ortografia; Dizem, do silêncio, que tem mais que sete mil metáforas (e cinquenta alegorias), e margens tão largas, tão largas, que nelas cabem os sonhos imensos de vários meninos azuis, os caracóis de Laura, na curva da escada (nunca entendi os degraus de Laura, ou as suas farpas, mas é certo que não estive em África); os dias à espiga, mais que à espingarda. No silêncio tudo pode ser tudo, e tudo pode ser nada - o silêncio é assim. Será? Mais que dezassete palavras. Mais, muito mais. O silêncio pode ter o mundo - dizem que tem almofadas. Que mais queres? Rui A.
¶ 26 de Novembro de 2015
Insensível ou discreto É nele que se movem as paixões Em busca de uma entrada É nele que as estações se encontram Semelhante a musgo com sangue Fundido nas nuvens O futuro um certo mapa Quando a pálpebra se fecha É um reflexo É uma fieira O esquerdo e o direito Indistinguíveis Charles Wright, trad. Vasco Gato
¶ 25 de Novembro de 2015
Ao corpo é dado desejo jogo joio sina destino desejos desenvolvem o sentido da entrega na conquista. ao desejo é dado o corpo consentido: não consentir martiriza a carne. Pedro Du Bois
¶ 23 de Novembro de 2015
Há atentados e outros projectos por essa Europa fora, temos um presidente que nos preocupa e as pessoas estão pouco prevenidas. Há fome diária nas calçadas (e quando assim é, é sempre inverno, falar disso é outro texto), eleitores, abstencionistas, trapezistas, engenheiros, imigrantes, muitos taxistas a conhecer Lisboa e a inventar tarifas, gente a fazer pela vida, gente calada e gente em silêncio. Nas ruas vê-se pouca poesia, e revolução népias. Mas há cada vez mais percursos urbanos e teatros à vela, pessoas retidas… e moscas. A cidade continua a ter poucos afectos para quem está só, e há quem consiga ter calma e quem se exaspere; há pessoas bastante fora de moda e muitos ignorantes, uns quantos espertos, e algumas traições. Punhais, poucos. Há pequenas confianças, novelas, trocas, desenganos. E o país segue, visível e a meia-dose (sobretudo na zona Sul e na região Centro). Notoriamente, há menos cães na rua. Em Xabregas o gato Sebastião continua imperturbável, como se não fosse nada com ele. Sonha-se, em Novembro. E esta carta, como sabes, é uma carta de amor. Rui A.
¶ 22 de Novembro de 2015
vento jazz noite versos gestos gatos sofás verdes lugares comuns bares telhados memórias sem importância? Rui Esteves
¶ 21 de Novembro de 2015
Ao partir, ficam-me coisas por acabar, ao partir. Salvei a gazela da mão do caçador mas continuou desmaiada, sem recuperar os sentidos. Colhi a laranja do ramo, Mas não consegui tirar-lhe a casca. Reuni-me com as estrelas, mas não as consegui contar. Tirei a água do poço mas não pude servi-la nos copos. Coloquei as rosas na bandeja, mas não pude esculpir as taças de pedra. Não saciei os meus amores. Ao partir, ficam-me coisas por acabar, ao partir. Nazim Hikmet, trad. Carlos Loures
¶ 20 de Novembro de 2015
Estou a amar-te como o frio corta os lábios. A arrancar a raiz ao mais diminuto dos rios. A inundar-te de facas, de saliva esperma lume. Estou a rodear de agulhas a boca mais vulnerável A marcar sobre os teus flancos o itinerário da espuma Assim é o amor: mortal e navegável. Eugénio de Andrade
¶ 20 de Novembro de 2015
Tive amigos que morriam, amigos que partiam Outros quebravam o seu rosto contra o tempo. Odiei o que era fácil Procurei-me na luz, no mar, no vento. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 19 de Novembro de 2015
Os anos passam. Gastaste-os, eles gastaram-te e ainda não escreveste o poema. Não te esqueças de que uma paisagem é mais poética do que uma janela do outro lado da rua. Mas dentro de casa também é poético: um cinzeiro cheio pode assemelhar-se a um vulcão antes de entrar em erupção, um livro por abrir em cima de uma mesa é um nevoeiro matinal, a chávena de café uma gruta ou uma lagoa, a máquina de escrever uma colónia de aves, as palavras pedras num ermo. Há cascatas que ninguém ouve mas que competem com aspiradores, rios torrenciais que correm por salas de estar, margens de musgo verde que enfrentam uma máquina de lavar louça, um sossego que invade as casas com cheiros do litoral e a lufada de asa das aves da charneca. Numa janela do outro lado da rua existe um farol de porcelana que fica aceso toda a noite para que os bêbedos não se percam e por trás da casa há um quintal com caixotes do lixo cinzentos, um jornal amarelecido, um muro adornado com caca de pombo, uma árvore miserável, um tordo assustado e um gato cruel. Tudo para nos recordar de como a vida é poética. Jóhann Hjálmarsson, versão de Vasco Gato
¶ 18 de Novembro de 2015
Sou culpado, Mas não como pensais. Deveria ter reconhecido o meu dever mais cedo; Deveria ter sido mais veemente a chamar mal ao mal; Contive demasiado tempo o meu julgamento. Lancei avisos, Mas não foram suficientes, nem claros; E hoje sei do que é que fui culpado. Albrecht Haushofer, trad. Vasco Gato
¶ 17 de Novembro de 2015
Escreveu-se uma nova solidão no cobertor e no meu rosto debaixo do cobertor e na pestana que me adorna a face como um brinco que não há quem o tire à noite e de manhã o faça penetrar na carne Yaara Shehori, versão de Vasco Gato
¶ 16 de Novembro de 2015
A treva disfarça; as luzes recuam Ao acaso; surgem Pontinhos brilhantes; válvulas que assobiam e descontraem — Isolado, longínquo, como respiração Que foge, o afluxo de sangue Vai esmorecendo em várias câmaras... Entretanto, prosseguem imparáveis As enxaguadelas, como um oceano, Derramando-se na carne, esfregando As suas orlas espumosas contra o veio. Já não há retirada, Pois estas são as águas que queimam, Os ácidos que escaldam; São estas as chamas que pediste. Charles Wright, trad. Vasco Gato
¶ 15 de Novembro de 2015
Estremece a película dos olhos frente à finitude de um rosto que julgávamos íntimo com o nosso prazo. Nome próprio, tantas vezes sussurrado, pequeníssimo lugar de transparência elidido sem remorsos. Ver agora entrar uma flor sossegada, um risco a alastrar pela ganga do esquecimento, e claro que nada sobra: é só o tumor da inteligência que nos leva, por vezes, a imaginar uma procissão de gestos salvos onde nem mesmo o amor, rara interferência no descaso, tem socorro. Vasco Gato
¶ 13 de Novembro de 2015
Se eu pudesse, escrevia dos ventos, escrevia dos verbos em que estivesse. Se eu pudesse, dizia-te mil cento e quatro palavras numa só, e cantava-te a música que pode ir nas palavras e nos números; Se eu pudesse, mergulhava nos teus olhos, e não só (mas também), a tentar espantos e esperas (sem atletismos, que não calham à espátula). E procurava as tuas rugas de marfim (forma pouco interessante de um dizer da tua pele, todo um jeito por aprender), e o tanto mais entre elas. Se eu pudesse, prescindia de todo e qualquer poema (mesmo dos que fazes e fizesses, em cores e pontos), para viver mais perto os dias menos interessantes, de mercado e sombra; E fugia dos princípios deste texto (pobre, reconheço, nem por isso), para os que houvesse. Se eu pudesse, escapava a toda a noção do dever, e a todos mas todos os conceitos por trás da nobre inquirição das almas (da cultura judaico-cristã pouco percebo, mas fica sempre bem lembrá-la - nomeadamente em salões de baile, a fingir cultura). Se eu pudesse contava-te de alguns nenúfares que rimam com os teus cabelos. E escutava-te em todo o teu silêncio (quando quisesse, quando quisesses), quem sabe até falávamos, inclusivamente, dos dias. Em forma de berlinde Rui A.
¶ 13 de Novembro de 2015
Encher os olhos gota a gota deste silêncio desta humanidade em cotovelo a atravancar a porta dos outros Ao fundo entrevisto um recorte que conviria salvar saia triste suspensa entre assentos como vela frustrada no balanço monótono das ondas Alto não é saia é lenço que pende de um pescoço brioso da sua coleira — preferir a gosma que ainda assim dá brilho à lisura da pele desastradamente viva — Mas é triste e vespertino seja o que for que segue aqui arrumado entre aconchegos de ferro úlceras e o hálito dos desolhados Próxima paragem BALDIOS cuidado com o intervalo entre o nascimento e a morte Vasco Gato
¶ 11 de Novembro de 2015
À sua passagem a noite é vermelha, E a vida que temos parece Exausta, inútil, alheia. Ninguém sabe onde vai nem donde vem, Mas o eco dos seus passos Enche o ar de caminhos e de espaços E acorda as ruas mortas. Então o mistério das coisas estremece E o desconhecido cresce Como uma flor vermelha. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 10 de Novembro de 2015
(gentileza de um outro escritor) O senhor Ulme sentou-se e levou as mãos à cabeça. Perguntei-lhe se queria um chá. Recusou. Um bolo? Recusou. - Sabe porque não somos felizes? - perguntou ele. - Desespero, solidão, medo? - Não. Por causa da realidade. Afonso Cruz, in Flores
¶ 10 de Novembro de 2015
almejo a vida: alvejo a caça descanso sob a árvore a ser derrubada no ar a sensação da perda apedrejo a vidraça e em cacos reflito ao dia: vida condensada em alvos inatingíveis. Pedro Du Bois
¶ 9 de Novembro de 2015
Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Mia Couto, in Terra Sonâmbula
¶ 8 de Novembro de 2015
Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão. Eles não têm pouso nem porto; alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhado espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti... Mário Quintana
¶ 8 de Novembro de 2015
Tanta coisa depende de um carrinho de mão vermelho reluzente de gotas de chuva ao lado das galinhas brancas. William Carlos Williams
¶ 7 de Novembro de 2015
Quem ficará suspenso desse olhar quando as nuvens transitórias dissiparem a exactidão das formas, quem recordará o riso as pontes altas do sonho os corpos descampados as palavras perdidas. Quem por essas mãos caminhará dentro da madrugada, que rasto guardará a lucidez. Victor L.
¶ 7 de Novembro de 2015
Agora falarei dos olhos gregos de Ariane, que não são de Ariane nem são gregos, desses olhos que se fossem música seriam a música de água dos oboés, falarei apenas dos olhos do meu amor, desses olhos de um azul tão azul que são mesmo o azul dos olhos de Ariane. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 6 de Novembro de 2015
Cada coisa tem direito a ser uma palavra. Cada palavra tem o dever de não ser nenhuma coisa. Mia Couto
¶ 5 de Novembro de 2015
Os segredos fugazes ainda cá estão e regressou a claridade. A palavra lembrar toca-me a mão, Mas sacudo-a e fico a ver o acumular dos urubus que rodopiam No céu obstruído. Os pequenos nomes precipitam-se todos, sobrecarregados com o que é invisível, Mas ninguém os pronunciará, ninguém lhes alisará o cabelo desgrenhado. Não há muito tempo, de qualquer modo. Não há muito já de que falar ao esvaziar-se o ano. Não há muito a acrescentar. Fatigados da viagem, cor-de-dezembro, aglomeram-se como anjos sem encanto Onde quer que apareça uma coisa, Flagrante e não dita, indizível Charles Wright, trad. Vasco Gato
¶ 4 de Novembro de 2015
Lembro que havia uma espécie de homem com uma espécie de raiva naquela espécie de bairro Lembro que o chão não era de escadas nem propício para patinagens, lembro que havia filtros bastante esquisitos, ângulos estranhos, naquele filme (não eram de Griffith nem Riefenstahl, mas exquisit quand même*) do século sete depois de alguma coisa. Não tinha propriamente um nome, que propriamente quisesse dizer (preferia ser chamado em forma de contexto, “aquele que, o tal”) aos que passavam, sobretudo aos mais contentes, que o irritavam um pouco, e não por inveja. Era assim uma espécie de homem assim dado a todas as espécies de fortuna com que todos sonham (espécie rara de europeu em milhões), - uns quantos, poucos, para lá da pré-reforma. Lembro que havia uma espécie de homem com uma espécie de raiva naquele pouco engraçado labirinto. Na sua crueza e falta de jeito para a espécie, amava os gatos e os cães, que por seu turno o tratavam como um igual. E ensaiava-lhes uns números de Eric Burdon, a atravessar rios (it’s such a drag to be on your own, dizia-lhes, fazendo figas) em direcção onde nem ele sabia. Lembro que ria, no pior da piada; como se no riso fosse a escada, o poço, os filhos que não teve, a dor no pescoço (de não o dobrar) e tantas e tantas outras conquistas. Não foi à tropa, tinha umas inconveniências no sangue. Saudável, morreu inteiro. Até ao fim. * Nasdrovia, nem mais nem menos Rui A.
¶ 3 de Novembro de 2015
Há três anos, durante a tarde, eu costumava sentar-me aqui atrás a tentar Dar resposta à aritmética singela da minha vida, Sem nunca a resolver: Este objecto e aquele objecto Nunca continham a paisagem nem todas as suas implicações, Esta árvore e aquele arbusto Nunca satisfaziam por completo o somatório ou o quociente Do qual eu retirava ou ao qual juntava, nem agora o fazem, Embora eu esteja de novo aqui atrás, apostado em fazer contas, Em tentar perceber o que bate certo. Tudo vem de algo, só o algo vem do nada, Diz Lao Tsé, mais ou menos. Eminentemente sensato, digo eu, Enquanto esfrego uma mínima concha de caracol entre o polegar e dois dedos. Delicada como um brinco, transporta o seu vazio como um filho Do qual se livraria. Esfrego-a no sentido dos ponteiros do relógio e contra, na esperança de encontrar Algo resplandecente no seu vocabulário ou disfarce — Mas um e um são nada, acrescenta ele, infindável e em toda a parte, A sombra que tudo projecta. Charles Wright, trad. Vasco Gato
¶ 3 de Novembro de 2015
Vem de longe o teu medo em tão alta torre recolhido, tu dizes que não sabes viver ao pé de ti, mas repara na amplitude das pontes quando aceitas os gritos que te cercam, a tenebrosa noite. Repara nos filhos que te dão à luz pela permanência de uma pétala, uma pétala apenas da flor que recita o teu caminho. Victor L.
¶ 2 de Novembro de 2015
Às vezes, o poema revela-se Nega o seu destino humano E morre antecipadamente Nas contracções dos vocáculos. O poeta Com o seu destino incerto de sílabas em sangue Procura vencer a sua resistência. Não concede que as palavras Ignorem o que sente. Produz-se o divórcio Entre o homem e o poema. Uma muralha se levanta Entre o desejo de dizer E o acto da concreção. Por isso, estes versos que hoje Nascem sem pele e sem olhar Têm a tristeza Dos dias em crise. Desabitado, afundo-me no meu naufrágio Desde a vergonha e a decepção, Sem mais companhia Que o lento sacrifício Dos meus voos abortados. Sozinho, nesta infecundidade de lágrimas, Que me dilui pouco a pouco E me desceluliza, Vejo morrer o tempo do meu tempo, Nestes versos sem pele nem olhar, Enquanto a vida segue O seu simulacro de triunfo. Victor Hugo Tissera, trad. Tiago Nené
¶ 1 de Novembro de 2015
Era vermelha a rosa que a minha mulher cortou para pôr junto ao retrato de minha mãe, que fazia anos ontem. era de um fulgor surdo e recatado, a implodir tantas coisas já sem nome para o interior macio das pétalas. "Pus uma rosa do jardim junto ao retrato da tua mãe", disse ela então ao telefone, "uma rosa vermelha muito bonita", acrescentou com uma leve sombra na voz e era sombria a rosa, mesmo ao telefone, por ser o dia dos seus anos. e era sombrio recordá-la. Uma flor pode ser de uma obscura incandescência junto de alguém. prende-se a delicados filamentos da memória como a cabelos enredados. era sombria a rosa sobre a cabeça branca, o olhar bondoso, as feições plácidas, o que de minha mãe não se desfigurou e a rosa iluminava devagar, junto ao retrato. Vasco Graça Moura