Arquivo de março 2004
¶ 31 de Março de 2004
Love Is Not All
Love is not all: it is not meat nor drink
Nor slumber nor a roof against the rain;
Nor yet a floating spar to men that sink
And rise and sink and rise and sink again;
Love can not fill the thickened lung with breath,
Nor clean the blood, nor set the fractured bone;
Yet many a man is making friends with death
Even as I speak, for lack of love alone.
It well may be that in a difficult hour,
Pinned down by pain and moaning for release,
Or nagged by want past resolution's power,
I might be driven to sell your love for peace,
Or trade the memory of this night for food.
It well may be. I do not think I would.
Edna St. Vincent Millay
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¶ 30 de Março de 2004
un' anno dopo
I can protect you from everything except myself, escreveu, na sua caligrafia difícil, negra e de contornos imprecisos.
I can protect you from nothing except yourself, she whispered, as in a dream.
And those words never said were bigger than fear and stronger than pain. They were timeless and true.
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¶ 30 de Março de 2004
Mais depressa ainda...
A chegada à blogosfera de um coxo mentiroso é, no mínimo, curiosa: quem apanha quem, mais depressa? Bem vindo, Manuel. Obrigada pela citação do Modus, em sentido idêntico ao enunciado.
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¶ 30 de Março de 2004
Dharma
(ainda a arte de olhar)
De todos os telhados
se contempla a mesma Lua
que se reflecte toda
em cada gota de água
Dogen (1200-1254)
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¶ 30 de Março de 2004
Love Song
I lie here thinking of you:—
the stain of love
is upon the world!
Yellow, yellow, yellow
it eats into the leaves,
smears with saffron
the horned branched the lean
heavily
against a smooth purple sky!
There is no light
only a honey-thick stain
that drips from leaf to leaf
and limb to limb
spoiling the colors
of the whole world—
you far off there under
the wine-red selvage of the west!
William Carlos Williams (1883-1963)
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¶ 29 de Março de 2004
Sons
Sonnet
I am in need of music that would flow
Over my fretful, feeling finger-tips,
Over my bitter-tainted, trembling lips,
With melody, deep, clear, and liquid-slow.
Oh, for the healing swaying, old and low,
Of some song sung to rest the tired dead,
A song to fall like water on my head,
And over quivering limbs, dream flushed to glow!
There is a magic made by melody:
A spell of rest, and quiet breath, and cool
Heart, that sinks through fading colors deep
To the subaqueous stillness of the sea,
And floats forever in a moon-green pool,
Held in the arms of rhythm and of sleep.
(1928)
Elizabeth Bishop (1911-1979)
Ao som deWolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), Horn Concertos nºs 1-4, Dennis Brain, dir. Herbert von Karajan, ed. EMI.
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¶ 29 de Março de 2004
Recitativo
Jedoch dein heilsam Wort, das macht
mit seinem süssen Singen,
das mein Brust,
der vormals lauter Angst bewusst,
sich wieder kräftig kann erquicken.*
Bartholomäus Ringwaldt, 1588, in Bach, Kantate zum 11. Sonntag nach Trinatis, dir. John Eliot Gardiner, The English Baroque Solists.
* Mas a tua palavra de salvação faz,
pela doçura do seu canto,
que o meu peito, antes somente
conhecedor da angústia
possa de novo reviver em força.
(tradução da autora, feita por gosto e mero atrevimento).
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¶ 29 de Março de 2004
Da irrelevância
Tour
Near a shrine in Japan he'd swept the path
and then placed camellia blossoms there.
Or -- we had no way of knowing -- he'd swept the path
between fallen camellias.
Carol Snow
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¶ 28 de Março de 2004
Mantra
"Se eu tomasse as asas da madrugada
Para residir no mar mais remoto
Também aí me guiaria a tua mão (...)"
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¶ 28 de Março de 2004
Troca
(ou a arte de olhar)
A verdade simples em lugar do orgulho. A entrega liberta do sentir em lugar do restrito domínio. A coragem de fazer do outro fiel depositário de parte essencial de si mesmo.
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¶ 28 de Março de 2004
Les tendres liens
Dolcissimi legami
Di paroli amorose
Che mi legò da scherzo e non mi scioglie,
Così
Egli dunque scherza e così coglie?
Così l'alme legate
Sono ne le catene insidiose;
Almen chi si m'allacia,
Mi legh' ancor fra quelle dolce braccia!
Torquato Tasso
in Claudio Monteverdi (1567-1643), secondo libro de' madrigali, Concerto Italiano, dir. Rinaldo Alessandrini, ed. OPUS 111
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¶ 28 de Março de 2004
Hope
"There is hope in honest error
None in the icy perfection of the mere stylist"
Charles Rennie Mackintosh (1868-1928)
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¶ 28 de Março de 2004
Samyak
(ou da totalidade, para além do jogo)
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
Chico Buarque de Holanda
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¶ 27 de Março de 2004
Hoje
Por circunstâncias festivas, hoje o tempo para o Modus é pouco. Ainda assim, uma certeza: antes de tudo, depois de tudo, o essencial varre o acessório. Mais cedo ou mais tarde. Sempre.
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¶ 27 de Março de 2004
Da permanência
(soneto favorito, noutra versão)
Não haja impedimentos à união
de almas fiéis; amor não é amor
se se alterar ao ver alteração
ou curvar a qualquer pôr e dispor.
Ah, não, é um padrão sempre constante
que enfrenta as tempestades com bravura;
é estrela a qualquer barco navegante,
de ignoto poder, mas dada altura.
Do Tempo o amor não é bufão, na esfera
da foice curva em bocas, róseos rostos;
com breve hora ou semana não se altera
e até ao julgamento fica a postos.
E se isto é erro e em mim a prova tem,
nunca escrevi e nunca amou ninguém.
Shakespeare, trad. Vasco Graça Moura, ed. Bertrand, 2002.
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¶ 26 de Março de 2004
Wild at heart*
(da coragem maior, ou do risco por dentro da pele)
"If you are truely wild at heart, you'll fight for your dreams . . . Don't turn away from love, Sailor . . .
Don't turn away from love . . . Don't turn away from love."
David Lynch, 1990.
*inspirado no post de hoje de Digitalis
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¶ 26 de Março de 2004
Outra Provença
Attente "Au pays de Provence"
Je ne sais à quoi je rêve
Depuis que tu n´es plus là.
Je vais, morne et seul, sans trêve
Et comme un qui s´exila.
Le soleil succède à l´ombre
Et la nuit chasse le jour:
Moi, je reste toujours sombre
Avec un immense amour.
Parfois, fiévreux, j’ écoute,
Croyant entendre tes pas,
Tes petits pas sur la route
Rèsonner soudain tout bas.
Et c´est la brise qui passe,
Et c´est un oiseau qui fuit,
Une branche qui se casse
Ou mon pauvre coeur qui bruit.
Je ne sais à quoi je rêve
Depuis que tu n´es plus la.
Je vais, morne et seul, sans trêve
Et comme un qui s´exila.
Porquoi donc es-tu partie,
Toi qui connais ma langueur,
Toi qui sais toute ma vie,
Toi, son charme et sa douceur?
Philippe d´Ohsson
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¶ 26 de Março de 2004
Em dia...
Creio ter conseguido colocar em dia as respostas ao correio electrónico, na maior parte dos casos pura simpatia de leitores já antigos. E quero agradecer à Maria a generosidade do destaque dado ao Modus.
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¶ 26 de Março de 2004
Devil is in the details...
(ou da rigorosa prevenção)
The Spring And The Fall
In the spring of the year, in the spring of the year,
I walked the road beside my dear.
The trees were black where the bark was wet.
I see them yet, in the spring of the year.
He broke me a bough of the blossoming peach
That was out of the way and hard to reach.
In the fall of the year, in the fall of the year,
I walked the road beside my dear.
The rooks went up with a raucous trill.
I hear them still, in the fall of the year.
He laughed at all I dared to praise,
And broke my heart, in little ways.
Year be springing or year be falling,
The bark will drip and the birds be calling.
There's much that's fine to see and hear
In the spring of a year, in the fall of a year.
'Tis not love's going hurt my days.
But that it went in little ways.
Edna St. Vincent Millay
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¶ 25 de Março de 2004
Sentido(s)
Há palavras mágicas a que devemos dar um uso muito, muito rigoroso, medido, exacto. E, por isso mesmo, raro. Essas palavras só valem se a escassez da sua formulação significar o sentido profundo que lhes atribuímos. Mais do que quaisquer outras, as palavras que dizem do amor, tão frágeis e voláteis à vista do que designam, perdem todo o sentido se usadas sem critério. Só se diz que se ama quando essa é uma verdade do sangue, que invade os sonhos, dispersa a poeira dos dias, vence a distância fantástica da pele, ignora ventos e marés. Só se diz que se ama quando o amor venceu até a resistência dessa formulação sempre insuficiente, quando essa verdade invisível é tão óbvia e incontornável como o ar que se respira. Amar é sempre, mesmo que apenas de modo implícito, uma jura de fidelidade, um pacto de certa forma inquebrável (de certa forma porque a vida pode fazer converter em imanência o que não permite viver em acto,e apenas nessa medida).
Pode-se estimar, gostar, apreciar, e isso, desejavelmente, acontece com alguma frequência e é afirmado sem reservas. Amar é outra coisa.
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¶ 25 de Março de 2004
Às vezes
(em dias de luz perfeita e exacta)
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.
Que difícil ser próprio e não ser senão o visível!
Alberto Caeiro
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¶ 24 de Março de 2004
Tempo infinito
(ou da desmesura do tempo ausente)
because i love you
last night
clothed in sealace
appeared to me
your mind drifting
with chuckling rubbish
of pearl weed coral and stones;
lifted,and(before my
eyes sinking)inward,fled;softly
your face smile breasts gargled
by death:drowned only
again carefully through deepness to rise
these your wrists
thighs feet hands
poising
to again utterly disappear;
rushing gently swiftly creeping
through my dreams last
night,all of your
body with its spirit floated
(clothed only in
the tide's acute weaving murmur
e.e. cummings
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¶ 24 de Março de 2004
Liberdade
(Ji Yuu, ou de acordo consigo mesmo)
A máxima expressão de liberdade: procurar o caminho em si mesmo, não de um ponto de vista hedonista, nem sequer egocêntrico, mas no sentido de se tornar quem profundamente se é. Crescer em consonância com o que queremos de nós mesmos.
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¶ 24 de Março de 2004
Sobre o tempo
(ou da irreversibilidade)
Four Quartets 1: Burnt Norton
Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.
What might have been is an abstraction
Remaining a perpetual possibility
Only in a world of speculation.
What might have been and what has been
Point to one end, which is always present.
Footfalls echo in the memory
Down the passage which we did not take
Towards the door we never opened
Into the rose-garden. My words echo
Thus, in your mind.
(...)
T. S. Eliot (1888–1965)
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¶ 23 de Março de 2004
Work in process
(ou a negação da inflexibilidade)
"A vida de cada homem é um caminho em direcção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o esboço de uma vereda. Nenhum homem chegou a si mesmo totalmente; no entanto, cada um aspira chegar, uns às cegas, outros com mais luz, cada um como pode. Todos levam consigo, até ao fim, os restos do seu nascimento, viscosidades e cascas de um mundo primário".
Herman Hesse, in Demian.
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¶ 23 de Março de 2004
Vinicius
(na manhã, exconjuro com brilho)
Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
Que eu sempre procurei em vão
Você é o que resiste
Ao desespero
E à solidão
Nada existe
E o tempo é triste
Sem você
Meu amor
Meu amor
Nunca te ausentes de mim
Para que eu viva em paz
Para que eu não sofra mais
Tanta mágoa assim
No mundo sem você
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¶ 22 de Março de 2004
Primavera
(ou além da natura)
Alleluia
J'avais douté de votre amour
Et de ma constance elle-même,
Mais voici qu'avec le retour
Du joyeux printemps, je vous aime!
Le printemps, qui rit dans mon coeur
Comme um soleil dans une eau pure,
M'a rendu mon passé vainqueur
Et son ivresse à la nature.
(...)
Paul Mariéton (1862-1911)
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¶ 22 de Março de 2004
Lente festina
(ou da constância no desejo)
"Alma, hás-de procurar-me em ti, encontrar-te-ás em mim."
Juan de la Cruz
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¶ 22 de Março de 2004
Olhar e ver(-te)
Olho com cuidado.
Desponta uma flor
pelas frinchas do muro.
Bashô, Matsuo Munefusa (1644-94).
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¶ 22 de Março de 2004
Em absoluto
(ou do amor, luz essencial)
"Não me procurarias, se não me tivesses encontrado".
Agostinho de Hipona
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¶ 22 de Março de 2004
Never a dull moment
(ou da contenção construtiva )
My love is strengthened, though more weak in seeming;
I love not less, though less the show appear;
That love is merchandized, whose rich esteeming
The owner's tongue doth publish everywhere.
Our love was new, and then but in the spring
When I was wont to greet it with my lays,
As Philomel in summer's front doth sing,
And stops her pipe in growth of riper days—
Not that the summer is less pleasant now
Than when her mournful hymns did hush the night,
But that wild music burthens every bough,
And sweets grown common lose their dear delight.
Therefore like her I sometime hold my tongue,
Because I would not dull you with my song.
William Shakespeare
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¶ 21 de Março de 2004
Da vida
(ou da complexa verdade)
The big fish, de Tim Burton, ainda em exibição em vários cinemas de Lisboa, não é filme para encher uma grande sala, à antiga. É uma obra belíssima, intimista mas viva, acerca da verdade, da sua mistura com a imaginação (não com a mentira, note-se), da complexa teia de afectos entre um homem que toda a vida amou realmente a mulher que escolheue o filho de ambos, o qual se reconcilia com o pai no momento da morte deste. O papel da mãe é desempenhado por Jessica Lange, uma mulher a envelhecer muito bem; lembro-me dela, fantástica, no filme de culto "O carteiro toca sempre duas vezes", há uns bons dezoito anos - e hoje não está menos bela, só mais madura, serena, com profundida no olhar; e isto é uma verdadeira satisfação "por interposta pessoa", tranquilizadora para qualquer mulher acima dos quarenta...
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¶ 21 de Março de 2004
No...
No: non vacillerà la mia costanza.
in La secchia rapita - Atto II, scena 4
Antonio Salieri / Boccherini
Começar um dia azul com a voz límpida e poderosa de Cecilia Bartoli, no Salieri Album (Decca, 2003). Comprado em Roma há pouco mais de um mês, o tempo tem sido escasso para deixar entrar plenamente a bravura destas treze árias, um belo intróito para o despertar da primavera.
Lungi da te ben mio,
Se viver non poss'io,
Lungi da te, che sei
Luce degl'occhi miei,
Vita di questo cor;
Venga, e in un dolce sonno
Se te mirar non ponno
Mi chiuda i lumi Amor.
in Armida - Atto II, scena 2
Antonio Salieri / Marco Coltellini
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¶ 21 de Março de 2004
Em falta
Um agradecimento especial ao Paradoxo e ao Azul, pelo acolhimento dado ao Modus, antes e depois do mês de retiro (ou da ida às termas, como diz, com graça, a Carla). A correria não justifica tudo, e por isso aproveito para pedir desculpa pelo atraso na resposta ao correio, mas a saída de um novo livro (não, não é poesia, não é ficção - é mesmo sobre o direito e a regulação do mercado...) impediu a minha estadia mais demorada na blogosfera. Entretanto, quando acabar outra tarefa que me come horas a fio, prometo responder a todas/todos (mas agradeço desde já os comentários de estímulo e simpatia... e as críticas à suspensão temporária do Modus!).
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¶ 21 de Março de 2004
Voz
(na noite)
Anita Lane é uma mulher que canta, a voz gravada num CD chamado Sex o' Clock. Dizem-me que é na fronteira do jazz vocal; pode ser que sim, mas em boa verdade pouco importa o género - importa, sim, aquela voz sem fragilidade, a lírica (de que é autora na maioria das canções), a música de Mick Harvey. Este disco, gravado em Londres, não é de lançamento recente (foi editado em 2001) mas ainda oferece uma descoberta curiosa. Mesmo perante temas clássicos, já muito cantados, como "A light possession", Lane consegue recriar e emprestar densidade interpretativa pessoal e dotada de uma expressão que (ao menos a alguém meramente amador, como é o meu caso), impressiona.
The next man that I see
(...)
You're not here, that's my atmosphere
I am the scream tethered to routine
And I long to leave my body and stalk your dreams
And go onto my master work
The thinking of you
The creation of you
And who you will be
And how you will complete me
But I am as I am, as I am, as I am
(...)
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¶ 21 de Março de 2004
Lugar onde
(ou das areias movediças)
"Peut-on jamais savoir par où commence
et quand finit l'indifférence"
Serge Gainsbourg
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¶ 20 de Março de 2004
Soneto
(para uma manhã perfeita)
Tempo é já que minha confiança
Se desça dũa falsa opinião;
Mas Amor não se rege por razão;
Não posso perder logo a esperança.
A vida, sim; que ũa áspera mudança
Não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho a salvação?
Sim, mas quem a deseja não a alcança.
Forçado é, logo, que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que não consente
Quietação nũa alma que é cativa!
Se hei-de viver, enfim, forçadamente,
Pera que quero a glória fugitiva
Dũa esperança vã que me atormente?
Luís de Camões
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¶ 20 de Março de 2004
Nota bene
(ou da precisão paradoxal em conceitos imprecisos)
"O pensador sem paradoxo é, como o amante sem paixão, uma bela mediocridade."
S. Kirkegaard.
Às vezes, na imprecisão dos tempos que correm, o eclectismo é visto como um desvalor, confundido com relativismo, ou seja, em última análise, com a fraqueza valorativa de um politicamente correcto incapaz de fazer escolhas, levando tudo à equivalência - que assim se torna em verdadeira indiferença, a mais letal das desconsiderações.
Ora, em bom rigor, o eclectismo não é, ao menos na origem, um fim, mas um método, uma vontade de apre(e)nder o mundo, uma curiosidade activa e enérgica. É uma atitude de "ver o máximo possível para escolher" (não por acaso, ecléctico vem do grego eklektikós, que significa "apto a escolher, o que escolhe", de acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado).
Em suma: abertura ao novo, sem ignorar o antigo; não estabelecer equivalências por comodismo, desatenção ou cobardia. Escolher, sempre. Se isto não se chama eclectismo, pode bem ser que tenha outro nome. Mas é estar vivo.
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¶ 20 de Março de 2004
Para saborear
(ou da vida com luz dentro)
Na Primavera, flores
e no Verão, rouxinóis.
No Outono, a Lua.
E, no frio Inverno,
a frescura da neve.
Dogen (1200-1254).
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¶ 20 de Março de 2004
Espaço
(para fechar o inverno)
Dar importância aos silêncios, às margens, aos gestos, ao não dito na messagem e gritado no olhar, ao toque.
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¶ 19 de Março de 2004
Canções
Grown Backwards, o mais recente conjunto de canções de David Byrne (editado já este ano), reúne um acervo notável de poemas, servido por composições de grande maturidade expressiva. Dialog Box e (sobretudo) The other side of this life, as minhas favoritas, mostram arranjos orquestrais muito interessantes, mas são as palavras que não deixam respirar fundo; vale a pena ouvir este songwriter com um passado visível na densidade presente. Um outro olhar vindo da América.
"(...)Sometimes it seems as if things, like writing a group or songs or getting groceries, are dealt with more or less on a day-to-day basis, as they come up, each reacted to only at the time as they demand to be, and that there is no plan or direction or overall consideration of where things are leading. But of course that's not true - there are little decisions made every minute, and the cumulative effect is to define what happens later to be a conscious plan, with an emotional center and compass.
During all this time there was love, anger, sadness and frustration. There were two wars, one out of revenge and the second to consolidate oil interests. Along with many others, I did may best to stop the second, but it seemed inevitable and the misdirect legacy of a nation still reeling.
During all this time I dreamt."
David Byrne, Grown Backwards, Nonesuch Records, NY, 2004.
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¶ 19 de Março de 2004
Terror
(ou do espanto acerca da morte)
Não sendo particular apreciadora do género, porque o sobressalto é em mim (quase sempre) um efeito plenamente conseguido, vi um filme* que, sendo de terror, aborda de forma bem interessante uma questão central: o pavor e a desorientação (no verdadeiro sentido...) face à morte inesperada, súbita e violenta (no caso, um tristemente banal acidente de viação), a sua inescapabilidade, a suspensão aleatória face a um dos passageiros (que é, durante um tempo de coma que o espectador ignora, o narrador indirecto de toda a acção, vivida como uma "experiência de quase morte"). Pelo meio, os diálogos vão revelando a verdade e a mentira que delinearam a vida de uma família comum, os segredos até então guardados, a tensão, os atritos, os afectos. Os projectos são varridos no meio dos destroços, a continuidade é cortada cerce, a perda surge irreparável. Apesar de a vida parecer ganhar à brutalidade da morte, pelo resgate de uma jovem mulher grávida, no último plano a temporalidade desse resgate é lembrada. A morte, apesar de tudo, espera sempre. O tempo come as coisas, Ovídio dixit.
* Dead End, de Fabrice Canepa, com Alexandra Holden, Lin Shayne, Ray Wise, 2003.
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¶ 19 de Março de 2004
Desafio
(sem medo, com esperança q.b.)
De dia correm nuvens, flutuantes!
De noite vivem estrelas, cintilantes!
Se ousares subir tocando em cordas puras,
Entoarás a eterna música das esferas.
Johann Wolfgang Goethe, in O jogo das nuvens, trad. e selecção João Barrento, ed. Assírio & Alvim.
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¶ 18 de Março de 2004
Dueto
(ou uma outra versão de amor omnia vincit)
"Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho,
Tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado,
Está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz
Mas se a ciência provar o contrário,
E se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios,
Tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro,
Mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz
Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás amor a minha paz
Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis
Consta no Pravda, na vodca..."
Chico Buarque
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¶ 17 de Março de 2004
Original
A pedido de uma das mais atentas leitoras do Modus, Márcia Maia, a quem agradeço as visitas tão frequentes, aqui fica a versão original do poema Mar e Lua, cuja tradução em castelhano, de Ana Belén, foi ontem publicada.
Mar e lua
Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar
E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
e à beira-mar.
Chico Buarque de Hollanda
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¶ 16 de Março de 2004
Sedna
(ou da expectativa)
A redefinição do espaço exterior, tão imprevisível como o fundo de cada um de nós.
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¶ 16 de Março de 2004
Desalento
(hipótese superada pela vida)
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou
Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos
Chico Buarque - Vinicius de Moraes
1970
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¶ 16 de Março de 2004
Mar y luna
"Amaron el amor urgente
las bocas saladas por la marejada
las costas dañadas por las tempestades
en aquella ciudad
tan distante del mar
amaron el amor sereno
de nocturnas playas
se alzaban las faldas
y se emborrachaban de felicidad
en aquella ciudad
sin brillo lunar
amaron el amor prohibido
pues hoy es sabido
todo el mundo cuenta
que una iba preñada
con hambre de luna
y otra iba desnuda
con hambre de mar.
Y fueron quedando marcadas
oyendo las risas temblando de frío
mirando hacia el río
tan lleno de luna
y que continúa
corriendo hacia el mar.
Y fueron corriente abajo
rodando en el lecho
tragándose el agua
flotando con algas
arrastrando con flores
hasta naufragar
se fueron volviendo peces
volviendo conchas
volviendo piedras
volviendo arena
plateada arena
con luna llena
cerca del mar."
Ana Bélen
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¶ 16 de Março de 2004
Acerca da guerra, sob qualquer forma
(ou da incompreensível natureza humana)
Apostrophe To Man
(On reflecting that the world
is ready to go to war again)
Detestable race, continue to expunge yourself, die out.
Breed faster, crowd, encroach, sing hymns, build
bombing airplanes;
Make speeches, unveil statues, issue bonds, parade;
Convert again into explosives the bewildered ammonia
and the distracted cellulose;
Convert again into putrescent matter drawing flies
The hopeful bodies of the young; exhort,
Pray, pull long faces, be earnest,
be all but overcome, be photographed;
Confer, perfect your formulae, commercialize
Bacateria harmful to human tissue,
Put death on the market;
Breed, crowd, encroach,
expand, expunge yourself, die out,
Homo called sapiens.
Edna St. Vincent Millay
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¶ 15 de Março de 2004
O brinco de pérola
(ou da beleza contida)
O filme de Peter Webber, Rapariga com brinco de pérola, retrata um curto período da vida do pintorJan Vermeer e recria a história à volta do quadro com o mesmo nome. A cidade de Delft no século XVII foi reconstituída a partir da Veneza actual, com uma beleza pesada e imensa. Tudo é realmente pesado e medido com rigor obstinado - os olhares, os gestos, as cores. O olhar de Vermeer/Colin Firth faz-se denso, num mutismo de palavras eliminado pela profundidade da expressão (há de facto olhares assim, homens com um olhar assim, que suprem as palavras, são mais fortes do que todas elas, do que os gestos, do que os elementos). A rapariga é bela, o rosto jovem e a inteligência visível no olhar, nos gestos, tocante, de uma pureza autêntica. O detalhe da fotografia não nos deixa ignorar quase nada: a maldade num outro olhar ainda quase infantil mas já cruel, o desespero do ciúme na mulher desgastada, a preocupaçãoo face às dificuldades do pouco dinheiro para um certo padrão de vida, a brutalidade do desejo aliado ao poder do mecenas, a cor das nuvens. Mas o que verdadeiramente toca é a descrição da diversidade de registos amorosos, sem que uns anulem os outros. Pungente, a inutilidade inexorável de um desses registos, entre Vermeer e Griet. Há amores condenados na sombra, antes das palavras, esboçados em movimentos incompletos, fechados para sempre. Impossíveis mas grandiosos, imaculados porque verdadeiros na essência onde se limitam a ser sonhados. Pérolas.
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¶ 15 de Março de 2004
Reckless
(contra o medo, a esperança)
Amavisse
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
Hilda Hilst (1930-2004)
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¶ 15 de Março de 2004
Rita
(aniversário)
Às vezes, a magia é enunciada de forma breve e lapidar por quem ainda está próximo da flexibilidade máxima do olhar. A ilustrar este facto, a Rita, filha de alguém de quem gosto muito (bem mais do que é visível nos pequenos gestos de um quotidiano sempre - demasiado? -cheio), disse há poucos dias, entrando em plena conversa de adultos observada com atenção: "A alma é um desejo".
A Rita faz hoje seis anos, é linda, irrequieta como a fada Sininho, e já decidiu o que fazer com a vida: a partir de agora, quer saber...tudo. Daqui a décadas, esse arrojo voluntarista há-de ter construído uma mulher muito interessante. Para já, tem o modelo da mãe, inteligência vibrante, olhos de verde infinito, sorriso pronto, coragem à flor da pele. Um dos meus orgulhos na vida.
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¶ 14 de Março de 2004
Outras palavras II
(mais ecos)
Mudança de atitute
Tudo, neste mundo, precisa de ter uma forma. Mas num relacionamento, o mais importante é a luz interior que existe para lá da nossa aparência. A vontade de querer conhecer a vida que se está a manifestar através da forma móvel que é o corpo do outro e a máscara com que ele se vê a si mesmo.
Maria José Costa Félix, Outra porta, in Xis, ed. de 13 de Março 2004.
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¶ 14 de Março de 2004
De certo modo
Milagre não é tanto o momento da epifania como a persistência traduzida em constância construtiva. E, acima de tudo, de si mesmo.
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¶ 14 de Março de 2004
Gravitas
(ou da valia das hipóteses prováveis)
É a probabilidade, e não a promessa, o motor da vida toda.
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¶ 14 de Março de 2004
Sons
( ou da adivinhação solar)
Os sons luminosos de Antonio Vivaldi (1678-1741), na fluência harmónia dos Concerti con Molti Strumenti (Ensemble Matheus, dir. Jean-Christophe Spinosi, ed. Pierre Verany). A beleza a completar o azul.
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¶ 14 de Março de 2004
Outras palavras
(ecos)
"(...) e eu nunca te quis possuir, sabendo que tu, de onde vinhas, de onde fosse, trazias um caminho que corre atrás de ti, ou tu à frente dele, dois diabos correndo, tu e o caminho, a maldição vai à frente ou a ânsia, quem?, trouxeste esse caminho contigo, com o alforge cheio de areias para teres pó que atirar aos teus próprios passos - antes de os dares (...).
De que tribo surgiste, de que vento nasceste, qual a lenda por que lutas, que estepes cortaram as tuas rugas, quantos sóis tem o teu dia, quantos deuses tem o teu medo, quantas contas tem o teu rosário?"
Faíza Hayat, Crónica, in Xis, ed. 13 de Março 2004.
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¶ 14 de Março de 2004
Do tempo
(ou do genuíno fulgor)
"Venho de tempos antigos. Nomes extensos:
Vaz Cardoso, Almeida Prado
Dubayelle Hilst... eventos.
Venho de tuas raízes, sopros de ti.
E amo-te lassa agora, sangue, vinho
Taças irreais corroídas de tempo.
Amo-te como se houvesse o mais e o descaminho.
Como se pisássemos em avencas
E elas gritassem, vítimas de nós dois:
Intemporais, veementes.
Amo-te mínima como quem quer MAIS
Como quem tudo adivinha:
Lobo, lua, raposa e ancestrais.
Dize de mim: És minha."
Hilda Hilst (1930-2004)
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¶ 14 de Março de 2004
Do amor
(ou o motor da vida toda)
"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."
Hilda Hilst (1930 - 2004)
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¶ 13 de Março de 2004
Inquietação
Si tu m'en veux quand même malgré mes explications et les raisons que ton imagination sait reconstituer avec tant de vivacité quand elle le veut, si malgré cela tu m'en veux vraiment, dis-le franchement, ne laisse pas ton sentiment infiltrer le ton général de tes paroles.
Pasternak para Tsvétaïeva, 14.6.1962, in idem.
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¶ 13 de Março de 2004
Correspondência(s)
(ou da demonstração da máxima virgiliana acerca do amor)
Nous nous touchons, comment? Par des coups d'aile,
par les distances mêmes nous nous effleurons.
Un poète seul vit, et quelquefois
vient qui le port au-devant de qui le porta.
Rainer Maria Rilke, maio de 1926
in Correspondance à Trois - Rainer Maria Rilke - Boris Pasternak - Marina Tsvétaïeva, Ed. Gallimard, 1983.
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¶ 12 de Março de 2004
Requiem
(recortado no silêncio)
Caligaverunt oculi mei a fletu meo: quia elongatus est a me, qui consolabatur me. Videte, omnes populi. Si est dolor similis sicur dolor meus . O vos omnes qui transitis per viam, attendite et videte. Si est dolor similis sicur dolor meus.
As mesmas palavras, numa língua antiga, proferidas por tantos, tão perto.
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¶ 12 de Março de 2004
Álea
Aquel momento que flota
nos toca con su misterio.
Tendremos siempre el presente
roto por aquel momento.
Toca la vida sus palmas
y tañe sus instrumentos.
Acaso encienda su música
sólo para que olvidemos.
Pero hay cosas que no mueren
y otras que nunca vivieron.
Y las hay que llenan todo
nuestro universo.
Y no es posible librarse
de su recuerdo.
José Hierro (1922-2002).
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¶ 11 de Março de 2004
Da esperança
(ou da constância autêntica)
For shame deny that thou bear'st love to any,
Who for thy self art so unprovident.
Grant, if thou wilt, thou art beloved of many,
But that thou none lov'st is most evident:
For thou art so possessed with murderous hate,
That 'gainst thy self thou stick'st not to conspire,
Seeking that beauteous roof to ruinate
Which to repair should be thy chief desire.
O! change thy thought, that I may change my mind:
Shall hate be fairer lodged than gentle love?
Be, as thy presence is, gracious and kind,
Or to thyself at least kind-hearted prove:
Make thee another self for love of me,
That beauty still may live in thine or thee.
Willaim Shakespeare
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¶ 9 de Março de 2004
Para hoje
(Para A.)
"Azul forte
(...)
O prazo para reinventar a alegria expira hoje
e a cada esquina o homem de tronco nu olha
expectante
Eu saio agora com os bolsos cheios de pólvora
Vou encontrar-te do outro lado do tempo
primeiro entre cristais
depois no terraço alto de gelo
depois no cais azul de onde partiremos
para um outro crimeum outro entendimento
oculta trovoada na noite do nosso
desejorealexplícitonu
E o teu corpo será a súbita casa, coluna
de pedra ao fundo dos dias"
Vasco Gato, in Imo, Ed. Quasi,2003.
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¶ 9 de Março de 2004
Da realidade
(ou da fortuna improvável)
Às vezes, no meio do caminho que escolhemos deserto para melhor respirar, alguém improvável vem e, com doçura a esconder a firmeza, arranca o cenário que, de tão longamente conhecido, julgávamos pano de fundo de uma incontornável realidade; esse movimento solta-nos da condição (tão marcada, tão bem conhecida que era tomada por eterna, tão "respeitável" até) de vítima poderosa no jogo sombrio do (des)amor: com solidez flexível, quase diria feminina (ai, os padrões herdados, os estereótipos aprisionantes, os preconceitos castradores, as lentes unifocais para ler o mundo...), com paciência firme. Com o corpo disponível atrás da chama do olhar. Sem medo das palavras e da sua missão (incompleta) iluminante das coisas.
Mas a questão, aqui, estará porventura no grau de petrificação, de resolução inflexível, de quem se descobre amada: pode ter-se instalado uma "defesa" automática que esconde o novo, um cansaço persistente no olhar, provindo de uma coisa simples e magoante chamada desconsideração. Pode ter-se ficado exausta no esforço despendido a dançar às escuras, de encontro às paredes da indiferença mascarada de desejo. Só uma força última, arrancada ao que sobrou da coragem de estar viva, deixará enfim ver a fogueira nos olhos do outro e, resistindo embora, estender a mão. Tomar balanço, resistir ainda, mas já em voo.
O único perigo, invisível e letal, é o da distância intransponível entre a vítima antiga e o calor da chama. Se for demasiado tarde, se o frio gélido do desespero longo e o sol ardente do deserto em fuga, juntos, tiverem chegado ao centro, nem essa fogeira ardente fará o milagre. Não será ouvida a palavra, essa única, demiúrgica palavra, levada pelo vento sem remédio. Não se pode ressuscitar quem quer estar morto, não há liturgia salvífica para quem não encontra outro ponto de aglutinação do real que lhe afaste o olhar do que a matou. E, injustiça habitual nesta selva escura, pode-se soçobrar por estúpido acidente na tentativa.
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¶ 9 de Março de 2004
De facto
"(...) cansava-se para salvar aquela união, obstinando-se num erro clássico: esperava que ele mudasse, que deixasse aquele tom de permanente troça, (...) que um belo dia ele baixasse as armas e que pudessem então ter uma verdadeira relação terna e sincera. Ora ele nunca se cansou de troçar de tudo, e dela em particular. A simplicidade sem defesas é um luxo que não se pode esperar de toda a gente."
Anny Duperey, in Allons voir plus loin, veux -tu?, Ed. Seuil, 2002 (há uma tradução portuguesa, ed. Asa, 2003).
Esta "simplicidade", bem muito escasso no domínio dos afectos entre seres adultos, com um passado por lastro e medos vários a servirem de espartilho indesejável capaz de impor uma rigidez aflitiva, é de uma beleza inesperada. Surpreende, pode até assustar pelo desconhecimento, sempre perturbante, gerar reacções de recusa, mas ilumina. Basta abrir os olhos, respirar fundo e sair da cela de grades poderosas forjadas pelo nosso descontentamento. Devagar.
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¶ 8 de Março de 2004
Nascer do dia
(para A., em troca de certa palavra ontem adiada)
"Está bem, é dia - e que importância tem?
Ou, por isso, irás sair do meu lado?
Deveremos levantar-nos só porque está luz?
Deitámo-nos nós porque era de noite?
O Amor, que apesar do escuro nos trouxe aqui,
Deverá, a despeito da luz, manter-nos juntos.
A luz não tem língua, é toda só olhos.
Se pudesse falar tão bem quanto espia,
O pior que diria é que, estando bem,
Eu quero gostosamente continuar
E que amo tanto o meu coração e honra
Que, de quem os guarda, não me apartaria.
(...)"
John Donne, in Poemas eróticos, trad. Helena Barbas, ed. Assírio & Alvim, 1995.
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¶ 8 de Março de 2004
Sem limites
Ao contrário do que possa convir a quem controla os outros por necessidade imperiosa de sobrevivência do seu pequeno mundo, não há limites para a liberdade interior, para a possibilidade permanente, simples e existencial, de aprofundar o conhecimento. O mundo verdadeiro, enorme e cheio de coisas que nunca permitem o aborrecimento, é uma fonte inesgotável de receitas contra a angústia: há sempre mais para aprender, mesmo quando só se consegue ficar sabedor, erudito até, mas não sábio, já que esta condição implica mais do que memória, tempo e estudo; só se acede à sabedoria não renegando princípios, valores, afectos, consideração e respeito (por si próprio, pelo outro, pelo todo de que somos mínima parte).
A vida não deve ser nunca um lento e inexorável percurso de escravidão a uma realidade que não se muda por medo, vivendo a subalternidade por fraqueza moral, engolindo a amargura em doses homeopáticas. Não é a vaidade, a "modernidade inconsequente", a ausência de determinação ou a inconstância que produzem a liberdade de procurar a dignidade; é a coragem de escolher a construção contra a instabilidade do desgosto. É outra coisa.
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¶ 8 de Março de 2004
Carinho
(ou mimo, as he 'd say...)
Mal se tinham esgueirado para o Modus algumas palavras em busca do seu lugar efémero na luz trémula da virtualidade, já surgiam as boas vindas de quem não estava (ainda!) desabituado desta morada. Agradeço à Catarina e à Sónia essa inesperada alegria. É igualmente muito gratificante ler todo o correio recebido ao longo deste dia. E, é claro, não posso deixar de sorrir com a menção bombástica ditada pela generosidade amiga...
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¶ 8 de Março de 2004
Dúvida
(questão revelada a uma mulher ao espelho do dia)
E se a questão estivesse toda no ângulo do olhar? E se tudo fosse para ser lido de outro modo? E se difícil fosse aprender a ser amada, a deixar-se amar, a desprender-se da rigidez brutal de vítima confortável?
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¶ 8 de Março de 2004
Agora
(ou da pura inevitabilidade do movimento)
"Deixemo-nos agora, meu amor: mas não
seja amargo desastre. Houve no passado,
muito luar a mais e auto-compaixão:
acabemos com isso: já como nunca é dado
agora ao sol audaz atravessar o céu
e nunca aos corações deram mais ganas
de serem livres contra mundos, florestas; eu
e tu não os detemos, nós somos as praganas
a ver o grão partir e é para outro uso.
E tem-se pena. Sempre se tem alguma.
Mas não demos às vidas laço escuso,
como barcos ao vento, de luz molhada a crista,
desferram do estuário e cada um lá ruma:
separam-se acenando e perdem-se de vista."
Philip Larkin, in 366 poemas que falam de amor, org.Vasco Graça Moura, Quetzal, 2003.
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¶ 8 de Março de 2004
Noctem
(Nix)
Pedir à noite que lave a memória, a Hypnos que leve o que resta. Antes de Tanatos. Já.
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¶ 7 de Março de 2004
Tempo
Faz hoje dois meses que rasguei a pele, uma pele. Com dor, com ardor. Há um mês, sem descanso, parei o Modus por tempo indeterminado, à espera de começar a cicatrizar essa ferida invisível, inventada num tempo muito antigo, trazida no aconchego das coisas que confundimos com amor. Começar, digo, porque o processo é longo e será sempre, provavelmente, inconcluso. Mas um mês de termas, como diz a minha amiga Carla, com a graça inteligente que lhe é própria, às vezes chega para respirar fundo. Para voltar a escrever aqui. Para voltar a viver ali fora. Para voltar.
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¶ 7 de Março de 2004
Ciclos
(ou o poder da inevitabilidade)
Como Shelley fez notar, "quando é inverno, a primavera não pode andar longe".
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¶ 7 de Março de 2004
Talvez
(ou da reversibilidade aparente)
Talvez um dia volte a viver (também) no Modus, sim. Talvez no dia em que acorde, a memória seja outra até ao zénite, e exista uma verdadeira AmAtA, mulher sem medo nem culpa.
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