Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de outubro 2012


30 de Outubro de 2012

Marsden Hartley

marsden%20Hartley1.jpg natureza (quase) viva


30 de Outubro de 2012

O quarto

Quem te pôs a mão no ombro, a faca que te atravessou o coração, são feridas alheias, talvez algo que leste; entretanto partiste para lugares menos iluminados e corações menos vulneráveis, pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui se já cá não estás. A hora havia de chegar em que nos perderíamos um do outro. E acabaríamos necessariamente assim, mortos inventariando mortos. Morrer, porém, não é fácil, ficam sombras nem sequer as nossas, e a nossa voz fala-nos numa língua estrangeira. Apaga a luz e vira-te para o outro lado e acorda amanhã como novo, barba impecavelmente feita, o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita. Manuel António Pina


29 de Outubro de 2012

William Zorach

william%20zorach.jpg em busca de outras cores


29 de Outubro de 2012

Canção de Outono

(gentileza de Violante Grilo) Hoy siento en el corazón un vago temblor de estrellas, pero mi senda se pierde en el alma de la niebla. La luz me troncha las alas y el dolor de mi tristeza va mojando los recuerdos en la fuente de la idea. Todas las rosas son blancas, tan blancas como mi pena, y no son las rosas blancas, que ha nevado sobre ellas. Antes tuvieron el iris. También sobre el alma nieva. La nieve del alma tiene copos de besos y escenas que se hundieron en la sombra o en la luz del que las piensa. La nieve cae de las rosas, pero la del alma queda, y la garra de los años hace un sudario con ellas. ¿Se deshelará la nieve cuando la muerte nos lleva? ¿O después habrá otra nieve y otras rosas más perfectas? ¿Será la paz con nosotros como Cristo nos enseña? ¿O nunca será posible la solución del problema? ¿Y si el amor nos engaña? ¿Quién la vida nos alienta si el crepúsculo nos hunde en la verdadera ciencia del Bien que quizá no exista, y del Mal que late cerca? ¿Si la esperanza se apaga y la Babel se comienza, qué antorcha iluminará los caminos en la Tierra? ¿Si el azul es un ensueño, qué será de la inocencia? ¿Qué será del corazón si el Amor no tiene flechas? ¿Y si la muerte es la muerte, qué será de los poetas y de las cosas dormidas que ya nadie las recuerda? ¡Oh sol de las esperanzas! ¡Agua clara! ¡Luna nueva! ¡Corazones de los niños! ¡Almas rudas de las piedras! Hoy siento en el corazón un vago temblor de estrellas y todas las rosas son tan blancas como mi pena. Federico García Lorca


28 de Outubro de 2012

Marsden Hartley

Marsden%20Hartley.jpg um belo outono, no início do século passado


28 de Outubro de 2012

Neste preciso tempo, neste preciso lugar

No princípio era o Verbo (e os açúcares e os aminoácidos). Depois foi o que se sabe. Agora estou debruçado da varanda de um 3° andar e todo o Passado vem exactamente desaguar neste preciso tempo, neste preciso lugar, no meu preciso modo e no meu preciso estado! Todavia em vez de metafísica ou de biologia dá-me para a mais inespecífica forma de melancolia: poesia nem por isso lírica nem por isso provavelmente poesia. Pois que faria eu com tanto Passado senão passar-lhe ao lado, deitando-lhe o enviesado olhar da ironia? Por onde vens, Passado, pelo vivido ou pelo sonhado? Que parte de ti me pertence, a que se lembra ou a que esquece? Lá em baixo, na rua, passa para sempre gente indefinidamente presente, entrando na minha vida por uma porta de saída que dá já para a memória. Também eu (isto) não tenho história senão a de uma ausência entre indiferença e indiferença. Manuel António Pina


27 de Outubro de 2012

Pamela Colman Smith

pamela%20c%20s.jpg sombras distintas


27 de Outubro de 2012

A um Homem do Passado

Estes são os tempos futuros que temia o teu coração que mirrou sob pedras, que podes recear agora tão fundo, onde não chegam as aflições nem as palavras duras? Desceste em andamento; afinal era tudo tão inevitável como o resto. Viraste-te para o outro lado e sumiram-se da tua vista os bons e os maus momentos. Tu ainda tinhas essa porta à mão. (Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.) Agora já não é possível morrer ou, pelo menos, já não chega fechar os olhos. Manuel António Pina


25 de Outubro de 2012

Estendais

Em alguns invernos mais chuvosos, em Miragaia que foi a Madragoa de Pedro Homem de Mello, o Douro salta a margem e entra pelos arcos onde se demora no rés-do-chão das casas, por duas madrugadas. Mas são os estendais, à janela agitados pelo vento nas abertas da chuva, que nos trazem a urgência e a constância dos corpos, nas mangas pendentes de camisas, camisolas ou na roupa interior, última margem dos íntimos rios, onde os poliesteres aboliram os felpos, os linhos as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol e à memória de obscuras lavadeiras, que faziam heróicas barrelas na espuma inocente do sabão. Inês Lourenço


25 de Outubro de 2012

Idea Vilariño

Idea%20Vilari%C3%B1o.jpg o rosto à frente das palavras


25 de Outubro de 2012

Onde estás

Escrevo penso leio traduzo vinte páginas ouço o noticiário escrevo escrevo leio. Onde estás onde estás. Idea Vilariño


24 de Outubro de 2012

Dizer não

Dizer não dizer não atar-me ao mastro mas desejando que o vento o vire que a sereia suba e com os dentes corte as cordas e me arraste ao fundo dizendo não não não mas seguindo-a. Idea Vilariño


23 de Outubro de 2012

Georgia O'Keeffe

Georgia%20O%E2%80%99Keeffe.jpg da delicadeza


23 de Outubro de 2012

O fim do tempo

Escrevo cada palavra como se fosse um oráculo uma profecia para o Livro dos Mortos ou para um capítulo da Bíblia que não fale de assassinatos e idolatria de alguma forma o Labirinto também é um livro cuja entrada é a mesma saída e decifrar seu segredo é ficar vivendo ali como se se tratasse do corpo do amado antes de matá-lo com o fio de um olhar e não se arrepender Ler Homero agora por exemplo é assistir a um filme que nunca se acaba cidades que viraram pó e cinzas amores e suas copulações criminosas medo e dor pois todo mito é um lugar comum hoje em dia e os lugares comuns são uma maneira de falar sobre a morte sem mencioná-la por isso todo cemitério é um livro e um labirinto assim como também o oceano o céu e o corpo bonito do amigo antes da traição que é apaixonar-se pois então já não há nada mais que a vontade de morrer juntos como se este adversário transitório não fosse mais que você mesmo Beberei o dia todo e ao cair a noite sairei para trocar os poemas escritos por garrafas de cerveja que também ficarão inéditas porque não me lembrarei delas vão esfumaçar-se como uma miragem em um banheiro úmido e sujo onde um garoto piscará um olho para você e nunca vai querer saber seu nome mais tarde veremos pela última vez as estrelas e será necessário seguir esquecendo Os poemas desejam o corpo de sua arte precisam desta vida que se escapa gole a gole noite a noite incontáveis e mais além destes instantes que não voltarão apresente-se o fim como uma lembrança para depois do meu tempo este poema Héctor Hernández Montecinos, trad. Ricardo Domeneck


22 de Outubro de 2012

A época seguinte

Há uma época e a época seguinte sobre qual época gostaríamos de conversar? Horst Bienek, trad. Ricardo Domeneck


21 de Outubro de 2012

Kate Moross

Screen%20shot%20Kate%20Moross.png sharp as hell, but certainly less colourful


21 de Outubro de 2012

Miscasting

“So you think salvation lies in pretending?” Paul Bowles estou entregando o cargo onde é que assino retorno outros pertences um pavilhão em ruínas o glorioso crepúsculo na praia e a personagem de mulher mais Julieta que Justine adeus ardor adeus afrontas estou entregando o cargo onde é que assino há 77 dias deixei na portaria o remo de cativo nas galés de Argélia uma garrafa de vodka vazia cinco meses de luxúria despido o luto na esquina um ovo feliz ano novo bem vindo outro como é que abre esse champanhe como se ri mas o cavaleiro de espadas voltou a galope armou a sua armadilha cisco no olho da caolha a sua vitória de Pirro cidades fortificadas mil torres escaladas por memórias inimigas eu, a amada eu, a sábia eu, a traída agora finalmente estou renunciando ao pacto rasgo o contrato devolvo a fita me vendeu gato por lebre paródia por filme francês a atriz coadjuvante é uma canastra a cena da queda é o mesmo castelo de cartas o herói chega dizendo ter perdido a chave a barba de mais de três dias vim devolver o homem assino onde o peito desse cavaleiro não é de aço sua armadura é um galão de tinta inútil similar paraguaio fraco abusado soufflé falhado e palavra fútil seu peito de cavalheiro é porta sem campainha telefone que não responde só tropeça em velhos recados positivo câmbio não adianta insistir onde não há ninguém em casa os joelhos ainda esfolados lambendo os dedos procuro por compressas frias oh céu brilhante do exílio que terra que tribo produziu o teatrinho Troll colado à minha boca onde é que fica essa tomada onde desliga Hilda Machado


20 de Outubro de 2012

Cabo Frio

Nuvens passageiras miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste queda de folhagem muda retórica O Sudoeste dá rédeas à repulsa nuvens erráticas devoram rivais Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor Em dia sem vento a falta de engenho permite purezas de sabão e macieiras em flor talco no chão do banheiro sorvete marca Aristófanes Mas quase sempre ele pisa seus véus Duas mãos de cinza desmaiado sobre fundo esmaltado é perícia renda luxo magnífico e corrupto realização elegante de algum mandarim leque de plumas de avestruz tintas de rosa levemente agitado diante da luz Hilda Machado


19 de Outubro de 2012

Pamela Colman Smith

pamela%20c%20smith.jpg A Onda, pintada em 1903


19 de Outubro de 2012

Do desejo

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância. Antes, o cotidiano era um pensar alturas Buscando Aquele Outro decantado Surdo à minha humana ladradura. Visgo e suor, pois nunca se faziam. Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo Tomas-me o corpo. E que descanso me dás Depois das lidas. Sonhei penhascos Quando havia o jardim aqui ao lado. Pensei subidas onde não havia rastros. Extasiada, fodo contigo Ao invés de ganir diante do Nada. Hilda Hilst


18 de Outubro de 2012

manchas de tinta fogem céleres sobre o conceito da tarde de setembro um Miró de 1931 com o título Silence o poço dos pássaros migratórios está em movimento a lâmpada da escrivaninha resolve enigma nenhum em vão Miró estica seus braços de Heidegger a Wittgenstein a amarelada luz pluvial da tarde de setembro cola-se ao vidro da janela os braços amarelados da tarde de setembro aconchegam -me a si a amarelada luz de setembro da tarde chuvosa golpeia como um projétil de silêncio Helmut Heissenbüttel, trad. Ricardo Domeneck


17 de Outubro de 2012

Pamela Colman Smith

pcs2.jpg pensando as sombras


17 de Outubro de 2012

Legado

A minha vida chega ao fim, Escrevo pois meu testamento; Cristão, eu lego aos inimigos Dádivas de agradecimento. Aos meus fiéis opositores Eu deixo as pragas e doenças, A minha coleção de dores, Moléstias e deficiências. Recebam ainda aquela cólica, Mordendo feito uma torquês, Pedras no rim e as hemorroidas, Que inflamam no final do mês. As minhas cãimbras e gastrite, Hérnias de disco e convulsões – Darei de herança tudo aquilo Que usufruí em diversões. Adenda à última vontade: Que Deus caído em esquecimento Lembre de vós e vos apague Toda a memória e sentimento. Heinrich Heine, trad. André Vallias


15 de Outubro de 2012

Marcel Duchamp

marcel%20Duchamp.jpg


15 de Outubro de 2012

Fim dos manuscritos

Ultimamente quando quero escrever algo Uma frase um poema um ditado Minha mão rebela-se contra a vontade de escrever Que minha cabeça tenta forçar sobre ela A letra torna-se ilegível Só a máquina de escrever Mantém-me pairando sobre o abismo do silêncio Que é o protagonista do meu futuro Heiner Müller, trad.Ricardo Domeneck


14 de Outubro de 2012

Pamela Colman Smith

pcs1.jpg uma estrela distante


14 de Outubro de 2012

Estranhas são as vias do Amor

Estranhas são as vias do Amor: e bem o sabe quem as quer seguir: muitas vezes ele perturba o coração seguro: quem ama não encontra constância. Aquele a quem a Caridade toca no fundo da alma conhecerá muita hora de desolação. Ora ardendo, ora frio, agora tímido e ainda há pouco ousado, numerosos são os caprichos do Amor. Mas a toda a hora ele nos lembra a nossa imensa dívida para com o seu alto poder, que nos atrai e só a Ele nos destina. Ora gracioso, ora terrível, agora próximo e ainda há pouco distante: para quem o conhece e nele confia isto mesmo é alegria maior. Como Amor num só acto fere e abraça! Ora humilhado, ora exaltado, agora escondido, manifesto ainda há pouco, para se ser um dia atingido pela dilecção é preciso arriscar muita aventura – antes de alcançar aquele ponto em que se desfruta da pura essência do Amor. Ora leve, ora pesado, sombrio agora e claro ainda há pouco, na doce paz, na sufocante angústia, dando e recebendo – dupla vida, serve aos espíritos que se perdem no amor. Hadewijch de Antuérpia, trad. João Barrento


14 de Outubro de 2012

Sem retorno

O que é este suave peso do Amor e seu jugo de suave sabor? Será a nobre carga do espírito com que o Amor toca a alma amante e a une a ele numa só vontade e em um só ser, sem retorno? Hadewijch de Antuérpia


13 de Outubro de 2012

Jean Jacques Henner

Jean_Jacques_Henner_-_Solitude.jpg solidão, disse o pintor


13 de Outubro de 2012

O poder do amor

Quem conquista o Amor é ele mesmo conquistado; assim ele é servido; e quando acalenta quem quer que seja ele consuma em nova moldura tudo o que possui. Assim, sendo velho, aprende através do poder do Amor conquistar a paz, onde ele descobre que o preço do Amor é a miséria. Hadewijch de Antuérpia


12 de Outubro de 2012

Kate Moross

Kate%20Moross1.jpg fácil de descodificar, como toda a realidade


12 de Outubro de 2012

Tão longe no absurdo

Quando alguém vai, como eu, tão longe no absurdo palavras tornam-se de novo interessantes: Algo soterrado que se revolve com pá de arqueólogo: A pequena palavra tu talvez miçanga que um dia enfeitara um pescoço A grande palavra eu talvez quartzo em lasca com que um sem-dentes qualquer desfiara sua carne dura. Gunnar Ekelöf , trad. Ricardo Domeneck, em colaboração com Pontus Ahlkvist


11 de Outubro de 2012

Da maneira mais simples

É apenas o começo. Só depois dói, e se lhe dá nome. Ás vezes chamam-lhe paixão. Que pode acontecer da maneira mais simples: umas gotas de chuva no cabelo. Aproximas a mão, os dedos desatam a arder inesperadamente, recuas de medo. Aqueles cabelos, as suas gotas de água são o começo, apenas o começo. Antes do fim terás de pegar no fogo e fazeres do inverno a mais ardente das estações. José Fontinhas, ou Eugénio de Andrade


11 de Outubro de 2012

Jean Jacques Henner

Jean_Jacques_Henner.jpg luz em perfil


11 de Outubro de 2012

Contra a morte

Arranco-me as visões e os olhos a cada dia que passa. Não quero – não posso! – ver morrerem os homens a cada dia. Prefiro ser pedra, ser treva, a suportar o asco de abrandar-me por dentro e sorrir a torto e a direito para prosperar em meu negócio. Não tenho outro negócio senão estar aqui dizendo a verdade no meio da rua e a todos os ventos: a verdade de estar vivo, unicamente vivo, com o pés na terra e o esqueleto livre neste mundo. O que queremos disso de saltar de até o sol com nossas máquinas à velocidade do pensamento. Demônios! O que queremos com o voar além do infinito se continuamos morrendo sem esperança alguma de viver fora do tempo das trevas? Deus não me serve. Ninguém me serve para nada. Porém respiro. E como. E até durmo pensando que faltam uns dez ou vinte anos para ir-me de bruços, como todos, a dormir sob dois metros de cimento. Não choro – não mesmo! Tudo há de ser como deve ser, porém, não posso ver caixões e mais caixões passarem, passarem, passarem, a cada minuto cheios de algo, recheados de algo, não posso ver ainda quente o sangue nos caixões. Toco esta rosa, beijo as pétalas, adoro a vida, não me canso de amar as mulheres – alimento-me de gerar o mundo nelas. Porém, tudo é inútil! Pois eu mesmo sou uma cabeça inútil pronta para ser cortada por não entender o que é isso de esperar outro mundo deste mundo. Falam-me do Deus ou da História. Rio-me de irem buscar tão longe a explicação da fome que me devora, a fome de viver como o sol na graça do ar, eternamente. Gonzalo Rojas, trad. Fabiano Calixto


10 de Outubro de 2012

George Frederic Watts

George%20Frederic%20Watts%20Dorothy%20Tennant2.jpg retrato de Dorothy Tennant


10 de Outubro de 2012

Despedida do viajante cerimonioso

Amigos, creio que para mim seja melhor começar a descer a bagagem. Embora não saiba a hora da chegada, nem conheça que estações antecedem a minha, seguros sinais me dizem, pelo que me chegou aos ouvidos desses lugares, que em breve deverei deixá-los. Queiram-me perdoar qualquer incômodo que causo. Com vocês fui feliz desde a partida, e muito lhes sou grato, acreditem, pela boa companhia. Queria ainda conversar bastante com vocês. Mas seja. O local da transferência eu desconheço. Sinto, porém, que me lembrarei de todos na nova sede, enquanto meu olho já vê pela janela, além do vapor úmido da neblina que nos envolve, o disco vermelho de minha estação. Me despeço de todos sem poder ocultar-lhes, leve, uma consternação. Era tão bom conversar juntos, sentados de frente: e tão bom confundir os rostos (fumar, trocando nossos cigarros), e todo aquele falar de nós (aquele inventar fácil, ao dizer dos outros), até poder confessar o que, mesmo postos nas cordas, jamais teríamos ousado (por engano) confiar. (Me desculpem. A mala é pesada embora não guarde grande coisa: tanto que me pergunto por que a trouxe comigo e qual ajuda me possa dar depois, quando desembarcar. Contudo devo levá-la, nem que seja pelo costume. Por favor, me deixem passar. Pronto. Agora que está no corredor, me sinto mais solto. Queiram desculpar.) Como disse, era bom estarmos juntos. Conversar. Tivemos, sim, algumas rusgas, é natural. Inclusive _e é normal isso também_ nos odiamos em mais de um ponto, e só paramos por cortesia. Mas o que importa? Seja como for, torno a agradecer, de coração, pela boa companhia. Me despeço do senhor, doutor, e de sua facunda doutrina. Me despeço de você, menina franzina, e de seu leve fedor de recreio e de campo no rosto, cuja tinta branda, de tão leve, incita. Me despeço, ó militar (ó marinheiro! Tanto em terra quanto em céu e mar), à paz e à guerra. E também do senhor, sacerdote, me despeço, que me indagou se eu (me zombava!) tive em dote a crença no vero Deus. Me despeço da sapiência e também do amor. Me despeço até da religião. Já cheguei à destinação. Agora que sinto intenso ranger o freio, os deixo de fato, amigos. Adeus. De uma coisa estou certo: eu alcancei um desespero calmo, e sem tormento. Desço. Bom prosseguimento. Giorgio Caproni, trad. Maurício Santana Dias


9 de Outubro de 2012

Justyna Kopania

justynakopania.jpg melancolia ou serenidade?


9 de Outubro de 2012

Às vezes despedimo-nos tão cedo

Às vezes despedimo-nos tão cedo que nem lágrimas há que nos suportem o peso da voz à solidão exposta ou de lisboa no corpo o peso triste Às vezes é tão cedo que nos vemos omitidos enquanto expõe o peso insuportável do amor a despedida É tão cedo por vezes que lisboa estende sobre os corpos o desgosto Com os dedos no crânio despedimo-nos Gastão Cruz


8 de Outubro de 2012

Kate Moross

kate-moross-1.png a cada um o seu labirinto


8 de Outubro de 2012

o caos das folhas

Os ouvidos produzem o som há muito decomposto entre as folhas dos dentes E pode um filho ouvir o mesmo mar que nada mais será o caos das folhas Tens em torno de ti o mar descrito és o filho que escuta os meus ouvidos Gastão Cruz


7 de Outubro de 2012

Ócio

Ela dorme. A hora em que os homens já estão despertos, e pouca luz entra por ora a feri-los. Com tão pouco temos tanto. Apenas o sentimento de duas coisas: a terra gira, mulheres dormem. Reconciliados, seguimos direto ao fim do mundo, que não requer a nossa ajuda. Gabriel Ferrater


7 de Outubro de 2012

Justyna Kopania

4-river-justyna-kopania.jpg tons outonais


6 de Outubro de 2012

To the harbormaster

I wanted to be sure to reach you; though my ship was on the way it got caught in some moorings. I am always tying up and then deciding to depart. In storms and at sunset, with the metallic coils of the tide around my fathomless arms, I am unable to understand the forms of my vanity or I am hard alee with my Polish rudder in my hand and the sun sinking. To you I offer my hull and the tattered cordage of my will. The terrible channels where the wind drives me against the brown lips of the reeds are not all behind me. Yet I trust the sanity of my vessel; and if it sinks, it may well be in answer to the reasoning of the eternal voices, the waves which have kept me from reaching you. Frank O´Hara


6 de Outubro de 2012

movimentos acidentais

Às vezes por quaisquer movimentos acidentais roça minha mão sua mão o dorso de sua mão ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa estes minúsculos movimentos quase vegetais seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito vagam no vazio sua pergunta logo de início interrompida aonde você viaja no verão o que você está lendo atravessam-me o peito em cheio e através da garganta como uma doce faca e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante Friederike Mayröcker, trad. Ricardo Domeneck


5 de Outubro de 2012

Hastear a bandeira

hastearbandeira.jpg ou o último 5 de outubro, 102 anos depois


5 de Outubro de 2012

de noite, encostado à parede, sentia uma força a penetrar-lhe nas mãos, um murro espalhando-se pela carne, afastava os móveis, e lançava contra o soalho as estrelas que lhe saíam dos bolsos. Fernando Luís Sampaio


4 de Outubro de 2012

Frans Pourbus, o Jovem

Frans_Pourbus%20Jovem_-_Princesa_Margarita_Gonzaga%20s%C3%A9cXVI.jpg Princesa Margarita Gonzaga, duquesa de Lorena por casamento


4 de Outubro de 2012

Envolto

Envolto em luas distraio fracas luzes e repasso a cena em cômodas e lentas metades: revolta latejada no tempo despreparado. O destino sela luzes aparentes. Envolto em luas desconsidero a farsa: lado revisto pelo espelho. Pedro Du Bois


3 de Outubro de 2012

Frans Pourbus, o Jovem

Frans%20%20pourbus%20%20o%20jovem.jpg retrato de senhora flamenga seiscentista


3 de Outubro de 2012

Polaroid

Pela tarde o céu a terra e mesmo tu formam uma densa pasta de nuvens. Recordo a tua boca, as tuas pernas em arco sobre o penedo quente. Os poços entram em colapso, o verão arrasta multidões para as ravinas do lugar comum. O chapéu descaído protege-te os olhos que se movem com translúcido torpor. Agora que passaram séculos sobre esse único beijo estou sem vontade de fingir a relutância do meu desejo. Esta polaroid, já seca, encena também a minha morte. Fernando Luís Sampaio


2 de Outubro de 2012

Clara Terne

Clara%20Terne.jpg cor(t)es


2 de Outubro de 2012

No parque da cidade

O parque desce sob o meu olhar instável desce para o lago onde florescem latas de cerveja, folhas e a névoa dos namorados. À superficie das coisas o pó aquietado da vida, a poalha dos impropérios da castiça, o fumo do monte branco a coroar, à hora da bica, a ave da juventude que assobia canções combatentes. Muita coisa começou assim, um punhal a esmagar os sonhos, uma pedra a torcer o primeiro amor contra o mundo. Mais tarde, é sempre mais tarde, a morte de amigos cuspiu de mim toda a cidade, as ruelas que iam para o fontelo escureceram também para sempre. O silêncio, como o inferno, começa sempre com os outros. Fernando Luís Sampaio


1 de Outubro de 2012

céu e mar

O mar, todo ele ainda rente aos dedos, sopra-me os indícios de leite ardido, esse crepúsculo que se incendeia ao contágio de águas retaliadas. Dele também o modo de deter uma frase abrindo-se numa trovoada de ternura, insurge-se pelos interiores da linguagem e envolve-se pela memória. Num lapso de páginas céu e mar escamoteiam-se, enfiam-se-me entre os lábios, irrompe meio lenta a língua nesta luta. A breve trecho sinto a infância à boca das vagas, também ela prestes a juntar-se às areias. Fernando Luís Sampaio


1 de Outubro de 2012

Julio Romero de Torres

julio-romero-de-torres.jpg centro de gravidade


1 de Outubro de 2012

Na margem do coração

Não voltes a perguntar se é isto o destino porque não sei o que essa palavra encobre, ou finta, ou derruba, sei pouco do mundo para dizer isto ou aquilo. Esta rua conduz a uma outra que é cruzada por outra ainda. E os ventos ali se cruzam, as vidas também, há sempre engarrafamentos. Mais abaixo fica o rio, apanhavas muitas vezes o barco já de madrugada, na manhã seguinte o percurso inverso. Por mais que não desejes o infinito prende-se a estes restos, vegetação rasteira, inquietações, e na margem do coração perguntas de novo por que, em tudo isso, ninguém te repete o corpo. Fernando Luís Sampaio