¶ 31 de Maio de 2006
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de maio 2006
¶ 30 de Maio de 2006
Só uma f(r)ase
J' aimais, Seigneur: Je voulais être aimée. Racine, in Bérénice.
¶ 28 de Maio de 2006
You deserve what you accept
Há muito, muito tempo, ainda a vida podia ser outra todas as manhãs, aprendi a importância da constância do tempo longo contra o imediatismo romântico, do silêncio em vez do ruído superficial, da percepção das diferenças no lugar do relativismo onde, num vórtice de desimportância e desisteresse, tudo se equivale e nada conta. A vida levou todas as voltas que as circunstâncias encorajaram, os ventos sopraram para novos rumos, mas a bagagem não se perdeu na viagem. É esse o inestimável valor dos clássicos. O que é um «clássico»? Qual a força motriz da sua persistência ao longo dos tempos, através das línguas e das sociedades em constante transformação? O que é que autoriza as batidas da bengala branca do cego Homero na Dublin de Joyce? Eu defino um «clássico», seja na literatura, na música, nas artes ou na filosofia, como uma forma significante que nos «lê». Lê-nos mais do que nós o lemos (ouvimos, percepcionamos). Não há nada de paradoxal, muito menos de místico, nesta definição. De cada vez que entramos nele, o clássico questiona-nos. Desafia os recursos da nossa consciência e do nosso intelecto, da mente e do corpo (grande parte da resposta estética primária, e até intelectual, é física). O clássico perguntar-nos-á: «compreendeste?» «re-imaginaste com responsividade?»; «estás preparado para agir sobre as transformações, sobre as possibilidades de uma outra existência, mais enriquecida, que eu formulei?» George Steiner, in Errata: Revisões de uma vida, trad. Margarida Vale de Gato, ed. Relógio D'Água.
¶ 28 de Maio de 2006
Mise en abîme
«De repente apercebi-me, numa espécie de exultante mas também aterradora revelação, de que nenhum inventário, nenhuma enciclopédia heráldica, nenhuma summa de animais fabulosos, inscrições, marcas nobiliárquicas, por mais exaustiva que fosse, poderia jamais ser completa.» George Steiner, in Errata: Revisões de uma vida, trad. Margarida Vale de Gato, ed. Relógio D'Água.
¶ 28 de Maio de 2006
Não
Longes se aglomeram Em torno aos meus sentidos, Nos quais prevejo erguidos Paços reais de mistérios. Cinjo-me de cor, E parto a demandar. Tudo é Oiro em meu rastro - Poeira de amor... Adivinho alabastro... Detenho-me em luar... Lá se ergue o castelo Amarelo de medo Que eu tinha previsto: As portas abertas, Lacaios parados, As luzes, desertas - Janelas incertas, Torreões sepulcrados... Vitória! Vitória! Mistério é riqueza - E o medo é Mistério!... Ó paços reais encantados Dos meus sentidos doirados, Minha glória, minha beleza! ( - Se tudo quanto é dourado Fosse sempre um cemitério?... ) Heráldico de Mim, Transponho liturgias... Arrojo-me a entrar Nos Paços que alteei, Quero depôr o Rei Para lá me coroar. Ninguém me veda a entrada, Ascendo a Escadaria - Tudo é sombra parada, Silêncio, luz fria... Ruiva, a sala do trono Ecoa roxa aos meus passos. Sonho os degraus do trono - E o trono cai feito em pedaços... Deixo a sala imperial, Corro nas galerias, Debruço-me às gelosias - Nenhuma deita pra jardins... Os espelhos são cisternas - Os candelabros Estão todos quebrados... Vagueio o Palácio inteiro, Chego ao fim dos salões... Enfim, oscilo alguém! Encontro uma Rainha, Velha, entrevadinha, A que vigiam dragões... E acordo... Choro por mim... Como fui louco... Afinal Neste Palácio Real Que os meus sentidos ergueram, Ai, as cores nunca viveram... Morre só uma rainha, Entrevada, sequinha, Embora a guardem dragões... - A Raínha velha é a minha Alma - exangue... - O Paço Real o meu génio... - E os dragões são o meu sangue... (Se a minha alma fosse uma Princesa nua E debochada e linda...) Mário de Sá-Carneiro
¶ 27 de Maio de 2006
Provide, Provide
The witch that came (the withered hag) To wash the steps with pail and rag, Was once the beauty Abishag, The picture pride of Hollywood. Too many fall from great and good For you to doubt the likelihood. Die early and avoid the fate. Or if predestined to die late, Make up your mind to die in state. Make the whole stock exchange your own! If need be occupy a throne, Where nobody can call you crone. Some have relied on what they knew; Others on simply being true. What worked for them might work for you. No memory of having starred Atones for later disregard, Or keeps the end from being hard. Better to go down dignified With boughten friendship at your side Than none at all. Provide, provide! Robert Frost Nota: duas mil entradas em cerca de ano e meio, desde a partida da casa antiga, onde ficaram sinais dos tempos aí vividos. Também aqui há, mais difuso embora, vai soprando um reflexo do ar respirado nos dias que passam (para) sempre.
¶ 27 de Maio de 2006
bodies
i like my body when it is with your body. It is so quite a new thing. Muscles better and nerves more. i like your body. i like what it does, i like its hows. i like to feel the spine of your body and its bones, and the trembling -firm-smooth ness and which i will again and again and again kiss, i like kissing this and that of you, i like,, slowly stroking the, shocking fuzz of your electric fur, and what-is-it comes over parting flesh....And eyes big love-crumbs, and possibly i like the thrill of under me you quite so new e.e. cummings
¶ 27 de Maio de 2006
If
If you can keep your head when all about you Are losing theirs and blaming it on you; If you can trust yourself when all men doubt you, But make allowance for their doubting too: If you can wait and not be tired by waiting, Or, being lied about, don't deal in lies, Or being hated don't give way to hating, And yet don't look too good, nor talk too wise; If you can dream---and not make dreams your master; If you can think---and not make thoughts your aim, If you can meet with Triumph and Disaster And treat those two impostors just the same:. If you can bear to hear the truth you've spoken Twisted by knaves to make a trap for fools, Or watch the things you gave your life to, broken, And stoop and build'em up with worn-out tools; If you can make one heap of all your winnings And risk it on one turn of pitch-and-toss, And lose, and start again at your beginnings, And never breathe a word about your loss: If you can force your heart and nerve and sinew To serve your turn long after they are gone, And so hold on when there is nothing in you Except the Will which says to them: "Hold on!" If you can talk with crowds and keep your virtue, Or walk with Kings---nor lose the common touch, If neither foes nor loving friends can hurt you, If all men count with you, but none too much: If you can fill the unforgiving minute With sixty seconds' worth of distance run, Yours is the Earth and everything that's in it, And---which is more---you'll be a Man, my son! Rudyard Kipling
¶ 26 de Maio de 2006
Do interesse
Leio, passo meu tempo a ler. Sou uma criatura do livro, mas tenho um bom número de outras paixões. (...) A solidão é, sem dúvida, a grande prova. Valerá a pena viver-se, viver consigo próprio? De uma maneira que sou incapaz de formular, redescobrimo-nos sós no mais fundo do amor e da sexualidade. Como na morte. As sociedades de consumo e as utopias igualitárias tentaram fazer com que o esquecêssemos. Pelo meu lado, foi uma coisa que sempre me pareceu evidente. A morte, sinto que será uma coisa interessante. Receio que não seja um interesse a partilhar. Georges Steiner, entrevista por Ronald A. Sharp, in Os Logocratas, ed. Relógio D'Água, trad. Miguel Serras Pereira.
¶ 26 de Maio de 2006
Do amor, ainda
(gentileza de Amélia Pais) Como é vil o coração que não sabe amar, que não pode embriagar-se de amor! Se não amares, como poderás apreciar a deslumbrante luz do sol e a doce claridade do luar? Omar Khayyam, tradução Fernando Castro.
¶ 26 de Maio de 2006
Quatro
Nesse tempo ainda as raparigas não tinham sido inventadas. Éramos só nós, o bando dos andróginos, a correr atrás dos gatos. Amoras e ameixas acenavam-nos atrás de gradeados. Quem mijava a cinco metros empunhava o caduceu. A ordem natural era seguida com feroz habilidade. Nenhum de nós sabia o decálogo de cor. À força e ao arrojo chamávamos humano. Entrávamos em Tróia de joelhos esfolados. E uma pedra, bem lançada, valia um argumento. O pior que nos podia acontecer era sermos exilados, condenados a brincar ao invisível com a raça das escuras raparigas, aprender a passajar o verso heróico. Só mais tarde o gineceu saiu à rua; trazendo laçarotes, mandamentos, aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe, é outra história. José Miguel Silva
¶ 25 de Maio de 2006
As sombras do amor
(gentileza de Amélia Pais) Quem arranca de noite o coração do peito deseja a rosa. Pertencem-lhe a sua flor o seu espinho. A esse põe ela a luz no prato, com o seu sopro enche-lhe os copos, só para ele sussurram as sombras do amor. Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto: não falha o alvo, apedreja a pedra, a esse bate-lhe o sangue fora do relógio, o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora: pode brincar com bolas mais bonitas e falar de ti e de mim Paul Celan, tradução de João Barrento.
¶ 25 de Maio de 2006
To love can be desert
And therefore if to love can be desert, I am not all unworthy. Cheeks as pale As these you see, and trembling knees that fail To bear the burden of a heavy heart,— This weary minstrel-life that once was girt To climb Aornus, and can scarce avail To pipe now 'gainst the valley nightingale A melancholy music,—why advert To these things? O Beloved, it is plain I am not of thy worth nor for thy place! And yet, because I love thee, I obtain From that same love this vindicating grace, To live on still in love, and yet in vain,— To bless thee, yet renounce thee to thy face. Elizabeth Barrett Browning
¶ 24 de Maio de 2006
Snapshots Of A Daughter-In-Law
(...) "To have in this uncertain world some stay which cannot be undermined, is of the utmost consequence." Thus wrote a woman, partly brave and partly good, who fought with what she partly understood. Few men about her would or could do more, hence she was labeled harpy, shrew and whore. (...) Adrienne Rich
¶ 24 de Maio de 2006
Contra os optimistas
Chamam destino ao rifão do acaso e chamam à fraude boa fortuna. Crêem no Batman e na Virgem Maria. Duvidam do frio, não da polícia e nunca dão crédito àquilo que vêem. Reservam a tempo um lugar na geral, põem o pé entre duas ciladas e ficam a rir-se nas fotografias. Sujam a roupa tal como nós, mas mandam-na sempre a lavandarias que sabem tratar dos casos difíceis. Nunca dão ponto sem antes o nó, mas fazem um laço por cima do nó. Compram revistas de aval científico em cujos artigos se prova o seguinte: é quase impossível determinar se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira. Depois, jantam em grupo, falam dinheiro, guiam a vida por grandes veredas e ouvem sininhos, muitos sininhos de música sacra. José Manuel Silva
¶ 23 de Maio de 2006
I was made to love magic
(em memória de uma rapariga que incensou a madrugada) A manhã com as suas proibições na tua fala. A claridade estava a crescer numa cama que já se tinha atravessado no escuro como uma nave enfileirando para a guerra. Eu não tinha ficado para conhecer a vista das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas mas não cheguei a levantar as persianas. Talvez fosse um sítio ao qual não se pudesse regressar porque quando falávamos os nossos olhos não coincidiam com nenhuma palavra. Teria gostado de te levar comigo outra vez mas era difícil recuperar as razões para o desejo. E no caso de nos ter acontecido uma mudança onde é que havíamos de procurar os seus indícios? Estavas a dar de comer aos peixes e eu só falava em livros. Rui Pires Cabral
¶ 23 de Maio de 2006
Miracles
Each time that I switch on the light A Miracle it seems to me That I should rediscover sight And banish dark so utterly. One moment I am bleakly blind, The next--exultant life I find. Below the sable of the sky My eyelids double darkness make. Sleep is divine, yet oh how I Am glad with wonder to awake! To welcome, glimmery and wan The mighty Miracle of Dawn. For I've mad moments when I seem, With all the marvel of a child, To dwell within a world of dream, To sober fact unreconciled. Each simple act has struck me thus-- Incredibly miraculous. When everything I see and do So magical can seem to me, How vain it is to seek the True, The riddle of Reality . . . So let me with joy lyrical Proclaim all Life a Miracle! Robert Service
¶ 22 de Maio de 2006
Morte de Arquimedes de Siracusa
(gentileza de amélia Pais) Os equilíbrios dos planos, as quadraturas das parábolas, os cálculos da areia, das esferas, dos cilindros e das estrelas: nada do que realizei se encontra à altura do que há por fazer. A matemática é longa, a vida breve; e logo agora Siracusa, sitiada, quer alavancas, catapultas, dispositivos catóptricos, cuja obra suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre, hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago intuições por formular: áspero e amargo pássaro engasgado. Nas paredes não cabe mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo, na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos! Antônio Cícero
¶ 21 de Maio de 2006
Pedradas
Também eu tentei falar. Sem talvez saber a língua. Todas as frases erradas. Em resposta, só pedradas. Giorgio Caproni, trad. David Mourão-Ferreira, in Vozes da Poesia Europeia, Colóquio Letras nº 165.
¶ 21 de Maio de 2006
Ouve
Ouve bem o que faz A pólvora explodindo. Ouve bem o que faz O frágil violino. Guillevic, trad. David Mourão-Ferreira, in Vozes da Poesia Europeia, Colóquio Letras nº 165.
¶ 19 de Maio de 2006
Sempre distante
Sempre distante amor e perto anseio, e triste descambar do adeus e a ida em promessa que apenas prometida tanto levou do ser que o fez alheio. De outra morte morrer, opõe receio? Morre um morto após si, já em seguida à perda ao largo de alma tão perdida? Mortos são os que morrem vida em meio. São os vivos de amor, que amor esquece, e, súbito, na morte amadurece antes de tudo mais que vai morrendo. Feridos numa dor que está vivendo no arrastar em gemido e em passo tardo, ter sido, mais que ser, terrível fardo. Maria Ângela Alvim
¶ 18 de Maio de 2006
Rústica
(gentileza de Amélia Pais) Ser a moça mais linda do povoado, Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, Ver descer sobre o ninho aconchegado A bênção do Senhor em cada filho. Um vestido de chita bem lavado, Cheirando a alfazema e a tomilho... Com o luar matar a sede ao gado, Dar às pombas o sol num grão de milho... Ser pura como a água da cisterna, Ter confiança numa vida eterna Quando descer à "terra da verdade"... Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! Dou por elas meu trono de Princesa, E todos os meus Reinos de Ansiedade... Florbela Espanca
¶ 18 de Maio de 2006
Questão
Immanuel Kant - o mais saudável, o mais comedido e equilibrado dos espíritos - acreditava no mal encarnado, e não simplesmente "no mal ausência de bem" de Aristóteles, que nos deixa em paz. Por isso Kant não entendia um ser dotado de cornos e cauda, mas simplesmente que o mal é uma força encarnada, um agente positivo. Não vejo como poderemos compreender de outro modo que as nossas mais belas iniciativas se transformem em infernos(...). Porque é que, sem falta, as nossas melhores intenções, as nossas compaixões, as nossas utopias se transformam no inferno? É uma questão que vale a pena pormos. George Steiner, in Os Logocratas, ed. Relógio D'Água, trad. Miguel Serras Pereira.
¶ 18 de Maio de 2006
Surprise
My heart went fluttering with fear Lest you should go, and leave me here To beat my breast and rock my head And stretch me sleepless on my bed. Ah, clear they see and true they say That one shall weep, and one shall stray For such is Love's unvarying law.... I never thought, I never saw That I should be the first to go; How pleasant that it happened so! Dorothy Parker
¶ 18 de Maio de 2006
A Grave
Man looking into the sea, taking the view from those who have as much right to it as you have to it yourself, it is human nature to stand in the middle of a thing, but you cannot stand in the middle of this; the sea has nothing to give but a well excavated grave. The firs stand in a procession, each with an emerald turkey— foot at the top, reserved as their contours, saying nothing; repression, however, is not the most obvious characteristic of the sea; the sea is a collector, quick to return a rapacious look. There are others besides you who have worn that look— whose expression is no longer a protest; the fish no longer investigate them for their bones have not lasted: men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave, and row quickly away-the blades of the oars moving together like the feet of water-spiders as if there were no such thing as death. The wrinkles progress among themselves in a phalanx— beautiful under networks of foam, and fade breathlessly while the sea rustles in and out of the seaweed; the birds swim through the air at top speed, emitting cat-calls as heretofore— the tortoise-shell scourges about the feet of the cliffs, in motion beneath them; and the ocean, under the pulsation of lighthouses and noise of bell-bouys, advances as usual, looking as if it were not that ocean in which dropped things are bound to sink— in which if they turn and twist, it is neither with volition nor consciousness. Marianne Moore
¶ 17 de Maio de 2006
Algumas horas outras
(gentileza de Amélia Pais) 1 algumas horas outras invadiram as sedas, os perfumes ácidos da louça, não serão recordadas. ou quanto mais as recordarmos, mais a ignorância deitará os corpos no tapume de vidros, para que em torno se conciliem as vontades singulares, as particularidades de um impetuoso alarme. ou seja: deixarão as esplanadas baças, os garfos encolhidos, para que um amplo destino os atravesse. considerem, por exemplo, o paquete que ao meio-dia digere as minuciosas palmeiras sobre a alta insensatez dos aquedutos. ou ainda a ilusão dos alicates ao lado da água, e o seu reflexo do outro lado das vidraças: azul, não é? assim estas algumas outras horas: como esquecê-las? 2 e ainda o sossego das interrogações não se deixa facilmente esborratar, ou a qualidade das tintas, assim no meio do lençol, o impediu até agora. algumas são as horas do vasto almofadão translúcido onde as janelas germinaram, e são as solenes sardinheiras ardidas na boca do início. soçobrando a música produzimos os locais inamovíveis, as persianas corridas sobre o papel meticuloso das suas amenas enseadas. não olhes, outras algumas horas que a madeira se parte e os carinhosos garfos se encolhem na gengiva. 3 quem nelas arde mastigando o musgo fluvial, ou as longas cortinas inundadas, dificilmente evitará outras incertas mesas onde dorme. observem como estão cobertas pela (metáfora da) nuvem sobre o fundo de actos responsáveis, gracejos gratuitos, animais de pequeno porte. eles mesmos se esquecerão, no solene rebordo das horas, de quem foram, de quem teriam sido as campânulas inamovíveis, e essas feridas precocemente supuradas. então outros se cobrem com (a metáfora das) sedas mais cruéis, algumas outras horas que adivinham em garfos naufragados, o silêncio, a secura. 4 observem como rapidamente esquecem, mudando de cor a cada rotação das ventoinhas. e ainda a imagem é pouco fiel, dada a distância e o sucessivo afastamento das delicadas membranas. observem como se dividem, no instante anterior à queda. não se encontra explicado o sombrio abcesso de cólera, ou de timidez, quando as nódoas estalam ao frio pouco vulgar nesta estação do mês. ou será isto, e nada mais, o que esquecemos? António Franco Alexandre
¶ 16 de Maio de 2006
Palavras em desalinho para uma despedida
Para onde foi o amor, anuncia a rádio, com a Bette Davis, num cinema de subúrbio, e também eu pergunto, inutilmente te pergunto, para onde - se alguma vez, entre nós, realidade teve. lndomada a solidão firma as suas raízes e, canção que vem com o vento, irmana-nos no ódio. Porque podem o cavalo e a serpente dois anos conviver que nem por isso há-de ter neles morada a ternura, a noite guardará os seus relances de insónia e destruição. "Quand vous serez bien vieille", escreveu Ronsard, e Henry Cristophe suicidou-se com uma bala de prata, formoso e absurdo gesto: palavras que só a Beleza selará. Nunca a mesquinhez ou o engano serão vencidos pela idade, nem prevalecerá a prata sobre o sangue no desesperado estertor final. Para onde foi o amor, oh tu, que sempre amaste, donzela pura confiada às presas da fera. E dias deixaste passar, e horas transparentes, onde cada sílaba exumou o seu peso de verdade. Ilusório domínio da tua vida, não quiseste então, nem uma só vez o quiseste, o tutano último das palavras, o que nu e virgem se levantava entre elas. Mais cómodo e alegre foi aprender aquilo que fácil se oferecia com valor bastante para ser leiloado numa festa. Triste é ser juiz e mais ainda ser verdugo. Como um cego, agora, vagueio ria memória tacteio os frágeis muros onde a sombra derramaste, esbarrando na tua lembrança, mesmo à beira do que já não existe, infantil e torpe. Treme nas minhas mãos um punhal. Para onde foi o amor. Eis as palavras para uma despedida. Juan Luis Panero
¶ 15 de Maio de 2006
Paradoxos
Humanity i love you because you would rather black the boots of success than enquire whose soul dangles from his watch-chain which would be embarrassing for both parties and because you unflinchingly applaud all songs containing the words country home and mother when sung at the old howard Humanity i love you because when you're hard up you pawn your intelligence to buy a drink and when you're flush pride keeps you from the pawn shops and because you are continually committing nuisances but more especially in your own house Humanity i love you because you are perpetually putting the secret of life in your pants and forgetting it's there and sitting down on it and because you are forever making poems in the lap of death Humanity i hate you e.e. cummings
¶ 14 de Maio de 2006
Estava eu sentado
Estava eu no segundo passo da ditosa via sacra da contracultura - charros, beatniks, Guy Debord - quando dei comigo a ler um poeta conservador e a pensar na beleza enigmática das suas imagens, na mesa posta com autoridade; uma força que me remetia para a precisão do mal e para a contraposta redenção estética da vida. Nessa altura conheci um rapaz que me dizia as coisas mais desagradáveis, por exemplo: "nem oito nem oitenta" ou "cuidado com as vírgulas nos olhos". Foi ele que me ensinou a não confundir a fome com a pressa de comer. A condição natural do jovem lobo, dizia, está na via sinuosa. As paredes de neve cada vez mais alta, a vida retirada... José Miguel Silva
¶ 11 de Maio de 2006
Fases (III)
Três anos, toda a diferença, na vida e no modus, espelho esbatido de um percurso interior. A vida pessoal é outra bem diversa da que assistiu ao início desta escrita (melhor seria dizer que é "diversa para bem", superados a desertificação e o desgaste espúrio da desrazão de uma década) os afazeres são agora outros, inovadores e mais gratificantes, muitas interacções mudaram. A vida, em vez de descrita, perpassa através dos enfeites da poesia e da imagem, de palavras citadas de discursos alheios com ressonâncias próprias. Este espaço é a clareira onde se faz a partilha de eventuais afinidades electivas, e não é pouco. Bem perto, anteontem: Da ordem aparente Tecia horas a benefício de uma ordem aparente que pudesse mascarar a subversão que é a colagem dos corpos, a respiração, o apego das almas. Em tempos antigos, devia ter sonhado que havia um amor assim, mas esqueceu esse sonho durante muitas luas para poder sobreviver, loba à solta em florestas nevadas. Depois chegou o mar, trazido na corrente daquele rio verde onde se encontrou com a vida, levada para uma dimensão sublime - naquelas mãos que, segurando palavras, lhe mostraram o infinito. Publicado por Ana Roque às 01:59 PM, janeiro 24, 2005
¶ 10 de Maio de 2006
Fases (II)
Houve depois um tempo em que a esperançase tornou a medida de todas as coisas. Os dias voltaram a ser contados em luas e marés, as cores do mundo evocavam o azul de uma madrugada única, o frio e o calor passaram a depender do movimento de translação entre dois corpos que, atraídos, procuravam atónitos a elipse sob a luz de outro olhar. Poeira ainda (bem) visível Da transmutação Amar sem ser possível viver inteira nesse universo, colocado à distância intangível do retorno pleno, tinha sido a sua experiência máxima na aprendizagem de vida. Depósito de expectativas no mínimo, exigência no máximo, impunha-se ele, farto de uma vida nómada no deserto disfarçado de sexo disfarçado de amor, eco-sistema letal para a vida sensível. Acabaram a cultivar em conjunto um campo de certezas, pleno de frondosas expectativas tão elevadas quanto as exigências, corpos celestes dotados de luz própria e cintilante movendo-se no espaço da descoberta em contínuo. Olhando com atenção para um ponto distante, ela ainda viu derrubado o muro que tinha construído contra si com determinação defensiva, tornado lago verde entre o dia e a noite, dissipado em nuvem à luz da madrugada. - Ana, 12/24/2004 09:46:09 AM
¶ 9 de Maio de 2006
Fases (I)
No princípio, o verbo preenchia o lugar da encenação. Era um exercício quente e sobrerreal, inflamado, tornado excessivo e esquecido mal virava costas e a vida real começava. O modus serpenteava por entre os dias, declamava a insatisfação da alma, o desapontamento do corpo, a desilusão tornada protesto vestido de palavras. Resignação, nunca. Inconfidente, dizia, ante uma força que desconhecia, uma liberdade que tinha sugerido, confiante, e não controlava. Mas nada havia a temer, afinal -"A organização da personalidade, um certo número de mitos e metáforas, e a expressão dramática de tudo isso: eis uma excelente definição de literatura." (Pedro Mexia, in Um certo número de mitos e metáforas, DN 6ª, ed. 5 Maio 06). Pó dos arquivos: Domingo, Maio 25, 2003 O lugar da vontade Non fu amore di altri e non il mio non fu il rigore di cui ti vanti. Devi alla cura dell'esistente l'arida scelta dell'addio. Gabriella Leto Para além da liberdade de conteúdo, de que falei em (IN)dependências, outra das vantagens da comunicação através dos blogues é a total capacidade de gestão dos tempos de participação (ou de escolha do silêncio). Esta é uma autêntica benção, porque escrever a horas certas deve ser, presumo, uma incontornável maçada quando, simplesmente, não apetece escrever e se tem esse compromisso. Acresce, no meu caso, uma terceira margem de liberdade, porque o meu blogue não é lido se não por duas ou três pessoas que acharam graça às referências aqui usadas e que, por isso mesmo, já são para mim uma espécie de destinatários implícitos. Não estou cotada em bolsas, não sou colunável, não serei nunca juiz do supremo, nem empregada certa de partidos ou confrarias, e pago com gosto o reverso dessa liberdade (posso escrever o que quiser, aqui, em livros, em artigos, que, como outsider, serei sempre desconhecida e inelegível). Por isso, vejo com alguma curiosidade o modo como algumas pessoas se mostram julgando esconder-se, e manobram como se fosse possível, por obra e graça de algum sobrehumano poder, controlar sempre tudo (o seu grau de exposição, o dos outros, os factos, as ideias sobre os factos). Os hábitos de poder e a perversidade da tentação ditatatorial podem ser, na verdade, ensaiados na mais indiscutível aparência libertária. Mas o lugar da vontade é inexpugnável. Nem que seja pelo recurso ao silêncio. AmAtA - Ana, 5/25/2003 06:30:48 PM
¶ 8 de Maio de 2006
Onde?
o centro da ilha é no mundo onde um prumo se ergue a fazer de centro de mundo e de ilha o prumo que se desloca e faz da ilha o centro do mundo que por tanto girar se fez ilha nossa vontade de esvaziar o centro do mundo banhado por ilhas moventes rodeado por todos os lados menos por um que é o lado oculto e mutante onde hoje nasce o sol a iluminar o centro do mundo da ilha e de nós à beira da treva que é amanhã na rotação imprevista do centro da ilha de nós no mundo. Carlos Alberto Machado
¶ 7 de Maio de 2006
Três anos, um dia destes
(como o Kukicha ou chá de inverno, agora que é de novo quase verão) A vida é simples. Escolhe-se um caminho e não se olha para trás. O que é um blogue? O que é isto de ter um diário exposto, o que éisto de publicar para (não) ser lido de modo visível, para ter um exconjuro de vidas semi reais? O que é isto de se dar cores imaginadas a sentidos proibidos, o que é isto a que disse sim, numa tarde quente, numa cidade a sul, à vista de um vulcão hoje tão extinto que parece nunca ter sido? O que são três anos de dias a fio trespassados pela metralha do teclado, palavras cada vez mais alheias a descrever paisagens que só eu vejo? O que é esta vaidade a que chamam bondosamente partilha, esta pretensão de que o gosto é menos vão se for mostrado, de que o caminho é menos escuro no meio da vida se o iluminam as palavras escritas sobre o branco quase obsceno quase puro, tão simples como a vida toda?
¶ 7 de Maio de 2006
Do nome
O nome parece a infância. Quando na velhice é termos vindo Sem pressa Para dentro Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai É um fruto. O nome é ainda O modo como chamas. O nome é a arma contra mim. O maior perigo. Com os teus lábios podes destruir-me. Daniel Faria
¶ 7 de Maio de 2006
Hearthside
Half across the world from me Lie the lands I'll never see- I, whose longing lives and dies Where a ship has sailed away; I, that never close my eyes But to look upon Cathay. Things I may not know nor tell Wait, where older waters swell; Ways that flowered at Sappho's tread, Winds that sighed in Homer's strings, Vibrant with the singing dead, Golden with the dust of wings. Under deeper skies than mine, Quiet valleys dip and shine. Where their tender grasses heal Ancient scars of trench and tomb I shall never walk: nor kneel Where the bones of poets bloom. If I seek a lovelier part, Where I travel goes my heart; Where I stray my thought must go; With me wanders my desire. Best to sit and watch the snow, Turn the lock, and poke the fire. Dorothy Parker
¶ 5 de Maio de 2006
Da espera
sucedem-se os dias húmidos por dentro da minha espera adio o arco-íris o salto montês da cabra que trago no peito grande a náusea perfuma a dor dos verões suspensos cegos se aquece a alma erguida na ponta dos pés do desassossego arredondam-se as estações neste gesticular incerto de índio largo coração galego esqueço-me com coisas livres minúsculas vermes róseos longos braços barcos à deriva que tenho do mar espreito a fundo as horas que me separam do jazigo ou berço de boca amarga à gargalhada empreendo a lágrima lúcida solar se verte o sangue no circo dos ágeis dedos de não voar queria-me eu apto e louro com olhos de maçã cheios de amor já pestanejo as emoções seguintes que se anunciam verdes no chegar do veado friorento que vem comer as ervas litorais dobro-me à mulher à página ao morto inesperado e para quê? Dórdio Guimarães
¶ 5 de Maio de 2006
O tempo ou a distância
O tempo ou a distância nos mantiveram assim, desconhecidos os rostos encostados à paisagem as nossas lágrimas nestes vidros de inverno violentados, sós mas sem a hipocrisia dos natais A adolescência ainda me dói como o vermelho dos órgãos submersa, corno numa cave sons e imagens desfocadas Em que país te sinto estremecer tocar música como o teu olhar magoado? Olha é tudo transitório o amor, o clima, os filhos as marés até os hábitos Cada momento é uma semente que germina mesmo que seja do desencanto José Carlos Teixeira
¶ 4 de Maio de 2006
Do(s) discurso(s)
Ora, uma sobrecarga esteticizada torna-se ela própria em discurso, em afirmação, logo em comunicação (não interessa aqui se é efectiva). É a mensagem. Nada a opôr. Dos blogues, das escritas, das imagens e das coisas (em si e para nós). Aqui, certamente.
¶ 4 de Maio de 2006
Já os pesadelos
What a perfect day to think about myself. The The Os sonhos dos homens assemelham-se entre si. Já os pesadelos, cada um tem o seu. Durante muitos anos eu fui hóspede do frio. Enrolava cigarros para depois da chuva e não tinha sonhos, somente pesadelos. O mais recorrente era o do nevoeiro: ninguém me via, era inútil mandar vir uma caneca de cerveja, no café. O meu dinheiro ninguém o aceitava, ficava parado, fazia de mim um acumulador. Como nunca saía de casa, não sabia falar senão com mortos. Parecia-me magia saber responder boa tarde como vai à saudação dos vizinhos, pedir do vazio ao homem do talho, perguntar as horas. Tempos amargos esses, e hoje, a mesma coisa, a mesma solidão. Com a diferença de que sou mais forte agora, vou à piscina duas vezes por semana, escrevo poemas para não adormecer. José Miguel Silva
¶ 2 de Maio de 2006
Que se passa?
Claro que não, de maneira nenhuma. Estava sentada ao meu lado, o desejo agitava-lhe o ventre, ela semicerrava os olhos. De maneira nenhuma, assim não, ainda não. Debrucei-me sobre o seu rosto e beijei-a. Pousei a cabeça no seu peito e esperei pelas suas mãos. Continuava, lento, a ir devagar ao encontro do desejo. Não tinha pressa. Ela apertava-me contra si silenciosamente, parecia dormir e repousava o seu corpo como se a morte ou uma hibernação o tivessem Ocupado. A televisão passava um filme de John Ford. Ela ergueu-se subitamente, afastou-me. Que se passa, perguntei-lhe, surpreendido. Nada, respondeu ela, mas não é o filme de John Ford que acaba de começar? Não o quero perder. De acordo, pensei eu. Levantei-me, fui sentar-me na cadeira do outro lado da sala. Acendi um cigarro. Lá fora caíra a noite há muito tempo. Mas quem tinha vontade de pensar no que se passava lá fora? Um filme de John Ford, repeti em voz baixa. Apaguei o cigarro e concentrei-me na aventura irreal, nas cores magníficas do deserto. João Camilo
¶ 1 de Maio de 2006
Um amor como este
(gentileza de Amélia Pais) Um amor como este não pede mar ou praia: somente o vento leste erguendo a tua saia. O resto é o futuro além, à nossa espreita: doce fruto maduro na hora da colheita. Daniel Filipe
¶ 1 de Maio de 2006
Mais tarde
«Ninguém é feliz quando se adia um sonho sempre para mais tarde. Adiar é perder." Eduardo Sá, inNotícias Magazine, ed. 30 Abril 2006.
¶ 1 de Maio de 2006
Chão de palavras
A cidade é um chão de palavras pisadas a palavra criançaa palavra segredo. A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distânciae a palavra medo. A cidade é um sacoum pulmão que respira pela palavra águapela palavra brisa A cidade é um poroum corpo que transpira pela palavra sanguepela palavra ira. A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar. A palavra sarcasmo é uma rosa rubra. A palavra silêncio é uma rosa chá. Não há céu de palavras que a cidade não cubra não há rua de sons que a palavra não corra à procura da sombra de uma luz que não há. José Carlos Ary dos Santos