¶ 28 de Fevereiro de 2011
Dod Procter
um leve toque de melancolia
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
¶ 28 de Fevereiro de 2011
Do fim do mundo - a rua – vejo traçados os limites do passeio na distância necessária à passagem do corpo - o transitar no espaço esvaziado – na concretização do traço: coberto em pedras na massa cimentada o passeio se oferece ao corpo: estanca a passagem. Pedro Du Bois
¶ 28 de Fevereiro de 2011
All or Nothing at All Tudo ou todo nada, pedra ou furo d'água, feito cada palavra, lança, dardo, ferida, em cheio nada. De nada em nada, o se-dizer do tudo, feito risco na água, onda, contorno, reflexo de nada. Nada feito nada, no poema não há termo meio, meio-amor, meia-palavra. Do sem sentido intenso se faz um tudo atento, feito a palavra em cantada, nada feito nada. Frederico Barbosa
¶ 27 de Fevereiro de 2011
(gentileza de Amélia Pais) Tiro os óculos e recua o mundo: torno à mais árdua intimidade. Diónisos ou Penteus, antes do sangue pesa já a vinha sobre as colinas de Outubro. As bodas místicas do deus e da noviça, meu destino branco, minha face nocturna, não os preserva a ciência dos três livros, nem figurariam, por certo, na cinza dos restantes. Sei, entre névoas e azul, de uma biblioteca deserta, cujas estantes, por desnudas, não enjeitam a mais discreta sabedoria. Em sua transparência se inscrevem, como a luz à luz se sobrepõe. Trago na pele e nos olhos, sobre a língua e o palato, a memória escaldante de uma mulher. Devora-me um álcool lento e sedicioso. De todas as mortes sofridas, só esta temo e não desejo. Rui Knopfli
¶ 27 de Fevereiro de 2011
A terra leva-nos por terra; mas tu, mar, levas-nos pelo céu. Juan Ramón Jiménez
¶ 27 de Fevereiro de 2011
(dedicado a uma das autoras publicadas no modus, Bibi Pereira, assinalando com carinho o dia 2 de Março que aí vem) Aqui vão algumas coisas das melhores que aprendi contigo: Não, nunca fazer mal aos animais Amar quando é de amar, sem rodeios e sem floreados Passar na passadeira com as crianças, sempre Agitar o copo, antes de o beber inteiro "Um homem que não respeita as mulheres não vale nada" Laurear a pevide, consistentemente Abrir a porta e a casa, sempre contente Parecer-me o mais possível com o que sou Evitar o trânsito e as filas Rasgar papéis que não interessam, pagando as contas indispensáveis, Exigir sempre de mim primeiro, que os outros conheço menos bem Irritar autoridades com alfinete de Dama Regressar, quando é preciso Amar sempre, sem intermitências - quando é de amar Beliscar o Afonso, para que acorde bem disposto Invadir jardins com bom humor Brincar com a crise, que há sempre um chouriço Iluminar a noite com um sorriso Plantar flores nas cidades, e não o contrário Estudar não mais que o necessário Rasgar o calendário que oprime Existir nos dias do bairro Imitar quem merece ser imitado Roncar quando apetece, se possível sem incomodar, depende Amar sem pudor e sem receio - quando é de amar Água no vinho, é engano Rolhas, estão bem no caixote Vejamos quem quer vir à festa Oxalá dure a mesma a noite inteira Regressar a casa não é nada mau Encontrar um amigo é porém do melhor que há Desenhar cidades como Niemeyer Enviar desejos aos astros e aos outros Fazer coisas giras para quem queira Revolucionar na exacta medida os dias desta terra inteira Usar do maior cuidado com as pessoas Tornar possível sonho e vida Ousar amar - quando é de amar Rui A.
¶ 26 de Fevereiro de 2011
Hoje deitei-me junto a uma jovem pura como se na margem de um oceano branco, como se no centro de uma ardente estrela de lento espaço. Do seu olhar largamente verde a luz caía como uma água seca, em transparentes e profundos círculos de fresca força. Seu peito como um fogo de duas chamas ardia em duas regiões levantado, e num duplo rio chegava a seus pés, grandes e claros. Um clima de ouro madrugava apenas as diurnas longitudes do seu corpo enchendo-o de frutas estendidas e oculto fogo. Pablo Neruda
¶ 26 de Fevereiro de 2011
retrato da vitoriana Elizabeth Barrett Browning, inspiração do pintor
¶ 26 de Fevereiro de 2011
Um beijo em lábios é que se demora e tremem no abrir-se a dentes línguas tão penetrantes quanto línguas podem. Mais beijo é mais. É boca aberta hiante para de encher-se ao que se mova nela. É dentes se apertando delicados. É língua que na boca se agitando irá de um corpo inteiro descobrir o gosto e sobretudo o que se oculta em sombras e nos recantos em cabelos vive. É beijo tudo o que de lábios seja quanto de lábios se deseja. Jorge de Sena
¶ 26 de Fevereiro de 2011
Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito. O vento da vida pôs-te ali. A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha boca, floresceram comigo. Pablo Neruda
¶ 26 de Fevereiro de 2011
Não passo de uma fecha disparada para o ar Que desce de novo, insegura do seu alvo Abou-t-Tayyib Ahmad ibn al-Husayn al-Mutanabbi
¶ 25 de Fevereiro de 2011
Não me peças palavras, nem baladas, Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio, Deixa cair as pálpebras pesadas, E entre os seios me apertes sem receio. Na tua boca sob a minha, ao meio, Nossas línguas se busquem, desvairadas... E que os meus flancos nus vibrem no enleio Das tuas pernas ágeis e delgadas. E em duas bocas uma língua..., - unidos, Nós trocaremos beijos e gemidos, Sentindo o nosso sangue misturar-se. Depois... - abre os teus olhos, minha amada! Enterra-os bem nos meus; não digas nada... Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce! José Régio
¶ 25 de Fevereiro de 2011
Aceitarás o amor como eu o encaro ?... ...Azul bem leve, um nimbo, suavemente Guarda-te a imagem, como um anteparo Contra estes móveis de banal presente. Tudo o que há de melhor e de mais raro Vive em teu corpo nu de adolescente, A perna assim jogada e o braço, o claro Olhar preso no meu, perdidamente. Não exijas mais nada. Não desejo Também mais nada, só te olhar, enquanto A realidade é simples, e isto apenas. Que grandeza... a evasão total do pejo Que nasce das imperfeições. O encanto Que nasce das adorações serenas. Mário de Andrade
¶ 24 de Fevereiro de 2011
O mar é longe,mas somos nós o vento; e a lembrança que tira,até ser ele, é doutro e mesmo,é ar da tua boca onde o silêncio pasce e a noite aceita. Donde estás,que névoa me perturba mais que não ver os olhos da manhã com que tu mesma a vês e te convém? Cabelos,dedos ,sal e a longa pele, onde se escondem a tua vida os dá; e é com mãos solenes,fugitivas, que te recolho viva e me concedo a hora em que as ondas se confundem e nada é necessário ao pé do mar. Pedro Tamen
¶ 24 de Fevereiro de 2011
Sendo apenas a voz no discurso incompleto engloba verbos substantivados: às vozes cabem sons exemplificados (não atos concretados) a voz sobre a aversão aos fatos. Pedro Du Bois
¶ 23 de Fevereiro de 2011
"Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes." Johann Wolfang Goethe
¶ 22 de Fevereiro de 2011
Já lentamente sofro a tua água,o sopro da memória nas colinas. deste-me um corpo,a casa onde acordar o vento,e a terra,e a paz desconhecida. nesta cave de pele te implorei os dias o óleo da manhã nas mãos desertas. a cada instante me devora o gume embotado da tua luz sonora. afasta do meu rosto a tua vã promessa.deixa que seja brando o sono sem lembrança, um chão de terra nua. do teu jardim de chamas me despeço. António Franco Alexandre
¶ 22 de Fevereiro de 2011
Era uma vez um rapaz que andava assustado quem não o conhecia pensava ora ali vai um tipo calmo mas não era bem o caso afinal o rapaz andava a sentir-se ultimamente demasiado órfão e o tamanho dos seus olhos diminuía, diminuía, diminuía pois mais que serem janelas os seus olhos se iam habituando à falta de luz e as pestanas eram meras persianas mais que janelas os seus olhos eram diques barragens e barreiras andava o rapaz tão embrenhado no seu assustamento que pouca atenção dava ao que à sua volta se passava o rapaz andava perdido perdido o rapaz andava perdido o rapaz não andava à procura o rapaz andava perdido não sabia o rapaz de tão baralhado que andava que há muitas formas de ter saudade que nem todas se conformam com mapas com fronteiras nem todas se sossegam na contabilização das perdas no apuramento de culpas e de inocências que a saudade não cabe numa cesta ou numa conversa não cabe sequer num segredo ou numa adivinha a saudade é algo que não precisa de ser explicado de razão para aparecer ou ir embora mas disso nada sabia este rapaz como não sabia que a saudade não precisa para ser inteira de ter peso forma ou volume a saudade é saudade de qualquer maneira e metia-se o rapaz em trabalhos à procura das gavetas dos frascos onde pudesse arrumar tudo aquilo que o perturbava a dor do que tinha a dor do que lhe faltava não sabia o rapaz que a saudade pode ser acrescento e continuar a não ter tamanho pode aparecer hoje com força e depois ir dar uma volta como se fosse passear ao parque não precisava o rapaz de estar parado mas isso só veio a saber depois para que as memórias o encontrassem não haveria o rapaz de andar apardalado - pudera é que é no trilho dessas saudades dessas memórias que se escrevem os melhores dos nossos passos os passos que por não terem tamanho estão à altura dos nossos sonhos Rui A.
¶ 22 de Fevereiro de 2011
caminha pelo sangue,na pele rugosa do amanhecer, a tão pequena tosse do outro lado das palavras:como se se dividissem os sentidos, a visão,o tacto animal, o veneno riscado,arrancado às paredes da luz, e sobre o flanco abrisse uma doença uma razão meticulosa de existir, uma secreta ausência perdoada. António Franco Alexandre
¶ 21 de Fevereiro de 2011
Julgavas,então,que a poesia era um discurso de palavras em sentido?Sei quanto a musa aprecia glória,poder e uniforme,quanto aguarda o cavaleiro que produz. A vida,afinal,anda lá fora,antes da folha ter passado a prensa; a mais pequena árvore é verde eterna,comparada ao arbusto que,mal tocada a haste,se desvai em fumo. Por isso eu fico lendo as crónicas,as lendas, o jornal que,bem ou mal,cruza as palavras com o tempo, e contudo!quando o lábio se engana,solta a mais aguda fífia do trombone, e de repente o corpo sabe a gente,e então se diz:eis e pura poesia verdadeira a!pois seria,talvez, somente a tua mão,cobrindo a folha. António Franco Alexandre
¶ 21 de Fevereiro de 2011
À tua saúde: levanto o braço e bebo. Onde estarás ó rapariga que vieste visitar-me algumas vezes no verão passado? Como tudo se vai transformando em outra coisa. Como falarei de mim num tempo que há-de vir? Estarei pobre de quê e há-de faltar-me quem? Terei aprendido a privar-me de mais alguma coisa)? Quem sabe se não serei apenas mais feliz. As páginas brancas de livros que talvez sejam meus e se não forem há-de ter pouca importância. hei-de escrever cartas se não escrever romances. E terei em que pensar aconteça o que acontecer. De todas as voltas que o mundo pode dar nenhuma que me ponha a cabeça no chão e os pés no ar. Sou eu que me o permito às vezes para divertir-me e fazer circular o sangue nas veias mais cimeiras. Entretanto que dizer? Não chove nem há sol, não é um dia particular nem um mês de férias. Estar aqui à espera é apenas estar aqui e esperar. rapariga que hei-de voltar a ver levanto o copo e é à tua saúde que entorno o vinho dentro. Quero ir contigo e ver os teus olhos contentes E um dia talvez hei-de explicar-te o que se sente. Por ora digo: bolas! E que estás longe. E que chatice. E que nunca mais decido. Mas que importa o que tu fazes e o que eu digo: Tu estás aí e eu aqui, é longe e é difícil. Há tantas maneiras de passar o tempo. E entretanto a vida continua e eu digo adeus, levanto o braço de novo e vou agitando o lenço. João Camilo
¶ 20 de Fevereiro de 2011
É na morte mais ousada Que encontrarei os olhos Do tempo que não conheci Que desenho as loucuras azuis Dos meus sossegos escondidos. Perco agora a terra que me prende E procuro o outro lado perdido de mim Sempre valente, apegado ao sonho Aos ventos libertários que hão-de vir Descanso o olhar nesta espera E tolero tudo o que navega em minha direcção Os vazios que procuram os cantos cansados Os medos que já perderam a sua força inicial A sua coragem dolorosa e quase tenebrosa. É neste cansaço já milenário no meu tempo Que procuro as palavras que nunca soube dizer Os gemidos de um canto triste num fim de tarde Que num velho piano desafinado me segredam a dor Fico Ou vou ficando Tanto faz Porque já parti nas minhas loucuras azuis Bibi Pereira
¶ 20 de Fevereiro de 2011
Eu penso os sinais da perseverança, O sopro da submissão nunca te alcançou. Quem sabe se não respiramos Alternadamente o mesmo ar. Tu vês o mundo De um lado e eu do outro. A varanda era um espaço vazio junto às árvores, o tecto branco não conservou a humidade e o calor da tua respiração. O teu corpo faz sombras na parede, a tua existência afasta-se na direcção sem fim do espelho. Os nossos pontos de vista nunca se influenciaram. Se sabemos alguma de Milhaud é segredo. Na mesa a que te sentas para escrever há cabelos ainda da tua adolescência, desconhecida. João Camilo
¶ 19 de Fevereiro de 2011
Levanta-te e deixa-me entrar, diria se pudesse, junto a esta cama onde a dor te contempla, sob este tecto frio que não inventa qualquer paisagem, qualquer lembrança de barcos ancorados no vazio da nossa alma, diria que lá fora escuto a sirene que se aproxima e a chuva que bate com as suas gotas de angústia na pedras da estrada, diria que essas quatro rodas vão levar-te,ao longo do pânico e da noite, para outras paredes onde nenhum crucifixo redime a desolação das casas, diria que se afastaram para sempre os dias antigos, as suas laranjas,a sua água, uma cerejeira breve onde os melros cantavam. José Agostinho Baptista
¶ 19 de Fevereiro de 2011
Eu sou o espelho que reflete o mundo Descodificando a coletiva sensação Mas também espelho O que reflete ao mundo O meu interno e plácido Estampado Reflexões num espelho plano... Adriana Sampaio
¶ 18 de Fevereiro de 2011
de seu nome Jessie Caroline Dunbar Blyth, uma pintora da primeira metade do século passado
¶ 18 de Fevereiro de 2011
(gentileza de Amélia Pais) Eu te desejo, não pela alegria da recompensa, como se espera dos eleitos; desejo-te para meu castigo. Já abandonei todos os dons que sonhei desejar, menos o êxtase de estar contigo na hora de meu suplício. Al- Hallaj
¶ 17 de Fevereiro de 2011
Montei ligeiro aquela hora arrancada aos deuses distraídos E coloquei uma flor uma trepadeira no teu nome. As minhas mãos estão já precisas e seguras São os olhos que me doem ainda de tanto espanto. Em cada canto repousam fantasmas Embalados na incerteza e no mistério do nosso futuro. Rui A.
¶ 17 de Fevereiro de 2011
Não quero o mundo Nas minhas mãos Nem as palavras enganosas Muito menos as esperanças Que não são as minhas Não quero esse caminho Essa estrada está viciada E anda em espiral Sem braços que me agarrem Não quero ser tudo Prefiro ser sempre nada E não esperar as verdades E as mentiras Ambas iguais Não quero Não quero Estar parada no absurdo Que sempre fui Esse produto inacabado Podre Vazio de alegria E crença Esta é a minha dor A de existir Ter pernas e braços Olhar e esperar sempre a olhar O que nem sei se quero Ou se sei É o sabor do vento quente que quero As asas das aves flutuantes Perder o rumo dos dias Das horas E não ser nada Uma partícula Talvez De coisa nenhuma E que ninguém saiba Bibi Pereira
¶ 17 de Fevereiro de 2011
Isso é uma declaração de amor: Declaro que te quero E isso é claro como meu desejo. Declaro que te admiro Todo ato teu me é visível, claro. Declaro que cresço a cada passo Que nossas mãos, dadas, acompanham. Declaro que sou tua Livremente e espontaneamente tua, Como só meu sentimento puro Pode lindamente me levar a ser. Declaro que sou uma, única E que és igualmente único para mim Como derivados da mais pura diversidade. Declaro toda inspiração a que me inspiras Levando-me através da mais completa fantasia. Declaro minha loucura Que assim retorna mansamente E torna essa declaração Declaração de independência. Adriana Sampaio
¶ 17 de Fevereiro de 2011
"Gaivotas crocitavam, como se chorassem por uma ilha natal há muito perdida, e Lev pensou como devia ser duro viver perto do mar e ouvir aquele som de melancolia, durante toda a vida." Rose Tremain, in Regressar a casa, trad. Fernando Dias Antunes
¶ 16 de Fevereiro de 2011
Se me sentasse agora no teu olhar, podia ver as aves, os incêndios incontroláveis, as tempestades e todas as forças que não nos pertencem. Porém tu corres e a tua velocidade é a tua certeza mais clara, levas os restos dos meus cabelos, os meus olhares escondidos, as histórias mais incríveis que me contaste. Pressinto o tempo que há-de vir e que começa no teu rosto. E na tua ausência. E se um verão vier e entrar na minha casa, hei-de aproveitar a luz das manhãs e mudar para a janela a jarra de malmequeres e estender o olhar ao sol. Hei-de descobrir que a luz tambémé redonda. Bibi Pereira
¶ 15 de Fevereiro de 2011
Nos caminhos da escrita, procurar o habitar de uma terra não prensada Por belas palavras Ou ambições de génio e belo Sem paralelo nos olhares E nos dias que queremos nossos Tempo de procurar a terra no voo E novas pátrias com gente lá dentro Com cáries e outros problemas E não as palavras que se resolvem, plenas No verbo e na literatura. Regressar. Ir Partir Chegar Rui A.
¶ 14 de Fevereiro de 2011
(gentileza de Zeferino Silva) Nascemos para o sono, nascemos para o sonho. Não foi para viver que viemos sobre a terra. Breve apenas seremos erva que reverdece: verdes os corações e as pétalas estendidas. Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal. "Poesia Mexicana do Ciclo Nauatale", em "O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português", Herberto Hélder.
¶ 14 de Fevereiro de 2011
Vénus e Adónis
Even as the sun with purple-coloured face
Had ta'en his last leave of the weeping morn,
Rose-cheeked Adonis hied him to the chase;
Hunting he loved, but love he laughed to scorn.
Sick-thoughted Venus makes amain unto him,
And like a bold-faced suitor 'gins to woo him.
William Shakespeare
¶ 14 de Fevereiro de 2011
Venho te oferecer meu coração como o cansaço se oferece aos amantes o suor aos corpos exaustos depois de definitivo abraço Venho te oferecer meu coração como a lua se oferece à noite e o vento à tempestade Venho te oferecer meu coração como o peixe se oferece à captura no engano do anzol Laura Amélia Damous
¶ 13 de Fevereiro de 2011
Ouço o corpo em lembranças, estremeço; penetro a música e me expando em cantos: letreiros iluminam as ruas, a dor opaca o caminho: em mesas reunidos homens desdenham a farsa da novidade. O corpo alenta o desejo; entrevejo o fogo apagado. Danço o terminar da hora; esqueço ao atormentar espíritos. A ultimação do fato transfigura o papel em desenhos. Pedro Du Bois
¶ 13 de Fevereiro de 2011
"O sentimento de culpa, esse pequeno demónio devorador e debilitante, esse ladrão de vozes." Rabih Alameddine, in O Contador de Histórias
¶ 12 de Fevereiro de 2011
Não sei como exatamente Mas terá o meu semblante, Eu que sou todos os mundos Com cada um de seus instantes. Vou separá-lo do resto E isolá-lo entre meus braços; Quero adotar os seus gestos Antes que seja o que será. Já posso vê-lo à janela De uma casa que ainda não há. Tateio-o, toco-o com os dedos, Dou-lhe forma sem querer, Dou-o a mim, tiro-o de mim, Pois tenho pressa de o ver! Observo-o tanto, retardo-o Por melhor o conceber! Às vezes, informe, saltas, Te afastas e entras na noite Ou, crescido, tu me escalas E te tornas um gigante. Eu que a todo olhar me finto Quero-te ao longe visível, Eu que sou silêncio infindo Te ensinarei a palavra, Eu que não posso pousar Quero-te firme sobre os pés, Eu que estou em toda parte Quero-te num só lugar, Eu que estou em minha lenda Sozinho como um cordeiro Perdido na mata horrenda, Eu que não como nem bebo Quero-te à mesa assentado Com tua esposa ao teu lado, Eu que sou supremo sempre E desconheço o cansaço, Eu que de mim nada faço, Pois que não posso terminar - Quero que sejas perecível, Serás mortal, meu menino, E eu te embalarei no berço Da terra, onde árvores cresçam. Jules Supervielle, trad. Renato Suttana
¶ 11 de Fevereiro de 2011
Pouco a pouco vai canto claro dos galos clareando o dia Oldegar Vieira
¶ 11 de Fevereiro de 2011
Revoadas brancas sobre rochedos escuros: gaivotas e espumas. Oldegar Vieira
¶ 10 de Fevereiro de 2011
É flor esquecida, esta que resta no mármore, lembrando outra vida? Um fruto maduro, pendente, precisamente na linha do muro. Trapos do abandono — do espantalho — vai levando o vento do outono. Sob o anil do céu e ao sol — branco — um enxoval num varal, ao vento... Tê-las nas mãos quis, pois jamais alguém falara ao cego, de estrelas. Junquilhos envergam. Flores de neve pousando nas hastes, de leve. Na rua deserta — desperdício — eis que ela passa numa hora incerta. Flor de velho amor, expressiva? Só se for — morta — a sempre-viva. Serão. Ninguém fala. Somente os trilos dos grilos nos desvãos da sala. Grávida ela passa, e como vai cheia, cheia de Vida e de Graça. E o menino via: afinal, esse "natal"... não o merecia. Não mais florescentes, no lixo largadas, são flores — defloradas. Tatuagem móvel no pavimento: a ramagem ao luar e ao vento. Que Deus o proteja não pede. O que pede é pão na porta da igreja. Andorinhas: fusas na pauta dos fios, ou... ou semi-confusas? Pétalas levava — eram rosas — nas suas, outras mãos, nervosas. Sim, cantar mas sem — como a cigarra — pensar que a morte lhe vem. Musicalizado na folhagem, vai o vento, músico em viagem. Mudos nas estantes, são pacíficos soldados? Mudos mas prestantes. Quase um rei deposto. Não mais arde o sol da tarde. No espelho, o seu rosto. Auroralmagia! O canto claro dos galos clareando o dia. Lâmina de luz — a lagoa — estilhaçada sob a chuvarada. O mal da intriga sofre o mundo mas, ao monge, o silêncio abriga. Somente a ilumina — à imponente nave em sombras — uma lamparina. Brutos lenhadores mas bastante foi que vissem um ninho entre flores. Túmida e sangrenta, da escura folhagem surge lenta, lenta, a lua. Lavando e cantando, o riacho e as lavadeiras, cantando e lavando. Quebrado o relógio, fez-se eternidade o tempo desmecanizado. Por entre os telhados, mamoeiras, bananeiras — bem domesticados. Numa folha escrevo todo um poema: seu nome. Na folha de um trevo. Na concha rosada de uma pétala, uma pérola de orvalho, engastada. Bagunça, arruaça, nenhuma... a não ser dos pombos, os donos da praça. Sombra do seu corpo diz que sou, mas foge e faz sombra em minha vida. Seixo — ao léu rolado, rolarrolando... exilado peso-de-papel. Causa de desgosto, a mensagem vai no rosto como tatuagem. Na ramada nua pousado, um corvo, calado, vê nascendo a lua. Na clara do céu flutua — lua de fogo — a gema do sol. Acaso... um acaso? Ou proposital derrame de tintas no ocaso? Difuso e em surdina, o rumor de uma cascata dentro de uma neblina. Pétalas caídas ou borboletas dormidas que o vento desperta? Não lhe serve a prosa. Só em linguagem poética diga o nome "rosa". Oldegar Vieira
¶ 9 de Fevereiro de 2011
Tenho uma pedra No sapato E outra no coração A pedra do coração É a mais pesada Não sei se por ser maior Ou mais teimosa O médico disse-me Que tinha de aprender A atirar fora as pedras Como toda a gente Mas eu acho que as minhas estão coladas O médico não percebe nada de pedras Nem de corações Bibi Pereira
¶ 9 de Fevereiro de 2011
Cabelos ao vento, soltos, como vão revoltos — ah — seus pensamentos. Doze, compassadas, tangendo o silêncio e o tempo, doze badaladas... Fina e clara, a chuva, qual a janela que tem mais bela cortina? Nuvens e mais nuvens a passar, bem que me deite. Foi-se o ... meu luar. Uma flor no mato solitária, rubra, sangue no verde compacto. Não tem sul nem norte, nem oeste ou leste — é céu. Céu somente azul. Voltevolteiando no cristal do tanque, as carpas silenciosonhando... Sol da madrugada. Vai surgindo: dentro de uma teia iluminada! Uma borboleta. Nada mais, nem leve aragem. E a rosa é desfeita. Flor em que não vai a libélula pousar. Na espuma do mar. Por acaso a sua caminhada é a mesma, ou ela o acompanha, a lua? Ramagens crestadas reflorindo: borboletas nas cinzas, pousadas. Voz da cachoeira, ao viço da mata vai líquida poeira. Reflita: no espelho, aquele que o imita, quem será? Você? Lembradas jamais, as flores do morto vão mortas, muito mais. Tem cativo, o canto, mas o muda borboleta é livre, no entanto. Noite a dentro, um cão late, insone, a quem nem late, seu insone irmão. Ah, esse berreiro das cigarras no austero parque do mosteiro... Num céu claro e puro, um corvo paira sereno — feio, torvo, escuro. Cai a neve, e penso no quanto se deve ser puro como a neve. Que fazer com as mãos, não mais — não — senão guardar seu fugaz perfume? Ouracorrentado. Entre seios femininos, recrucificado. Espana a poeira de luz das estrelas, ou — no vento — é palmeira? Mudos edifícios permutando, permutando surdos malefícios. Fuçando em monturos, anjos andrajosos de presépios escuros. Chuva de verão, chuva de flores na chuva. Reflorindo, o chão. Os bois, pacientes. Mas as rodas, por que vão gemendo, gementes? Brancos, a igreja e o casario entre verdes, escorrendo ao rio. Na rua quieta, a flauta de um vagabundo — músicopoeta. Nas mãos de uma negra — noite-escrava —, uma urupemba peneirando estrelas. Oldegar Vieira
¶ 9 de Fevereiro de 2011
Gravura no vento. Pois é desacontecido o acontecimento. Em êxtase, vê-las... Uma a uma, todo o céu porejando estrelas. Pendentes de um fio, gotas de chuva — ou de sol — sob o sol do estio. Dentro do aranhol, de repente, frente a frente, uma aranha e o sol. Animal nasceu. Desanimalmente, agora, vive... num museu. Tarde longa e quente. Tange longe uma araponga seu grito fremente. Compensar sua ausência — evidente, este evidência! — só sua alegria. À pista vermelha de uma flor, vem uma rima e aflorissa: abelha. Incrível talento, o desse escultor das nuvens — genial! —, o vento. Ploc! Uma rã pula no silêncio da lagoa, e o silêncio ondula. Não metal de sinos. Vil-metal agora é a rima que canta o Natal. Nos cinzeiros jazem — antecipantes — as cinzas mortais dos fumantes. Seu corpo enriquece a terra. E a saudade é a flor que floresce. Ela — uma andorinha — vendo as outras que não estavam — nem uma — sozinha. Claro desafio: sete cores luminosas ante um céu sombrio. Fantasmagoria: uma borboleta preta em noite vazia. Interrogativo à beira de um charco, um velho coqueiro — pendido. Lenta, lentamente, um caleidoscópio gira. Gira-sol poente. Oca, ressequida, na carcassa da cigarra, em silêncio, a vida... Oldegar Vieira
¶ 9 de Fevereiro de 2011
Na minha bagagem cabem todas as estações que vivi Entre tantas outras coisas de duvidosa utilidade cabem ainda na minha bagagem as minhas memórias e os meus esquecimentos (sobretudo aqueles de que ainda me lembro) A minha bagagem parece-me muitas vezes enorme mas depois – quem sabe? - talvez haja por ali um problema de arrumação um excesso de cachecóis a falta de qualquer coisa Certo, certo, é que a sinto pequena, a minha bagagem quando me lembro de mim em menino e de como me pareciam tão grandes todos os adultos A minha bagagem não serve de exemplo senão a mim próprio e ao que de mim resta depois de tantas viagens feitas e de tantas outras que ficaram por fazer Tem pouco de memorável a minha bagagem mas cabem nela uma quantidade de coisas que não esqueci um par de sonhos uns ténis para jogar à bola os meus quixotes aqueles que amo para lá de qualquer meridiano Comparecem ainda na minha bagagem uns quantos amigos que considero luminosos mesmo quando não são brilhantes e que seriam sempre raros mesmo se fossem muitos O futuro da minha bagagem confunde-se com o meu. Rui A.
¶ 9 de Fevereiro de 2011
(gentileza de Amélia Pais) A vida é a vida, e não os seus resultados. Não a casa grande no alto da montanha, nem as coroas e medalhas (áureas ou de imitação) que ocupam as estantes. Não é só isso a vida. A vida é a vida, e isso é o mais importante; aquele que a tira, tira tudo. Não as grandes viagens a terras e cidades longínquas, nem as estranhas gentes (melhor ou pior fotografadas) que ali encontramos. Não é só isso a vida. A vida é a vida. E isso é o mais importante; aquele que a tira, tira tudo. Não a chuva sobre o telhado, nem o granizo na janela, nem a neve, nem a lua, nem sequer mesmo a luz (tão maravilhosa). Não é só isso a vida. A vida é a vida. E isso é o mais importante; aquele que a tira, tira tudo. Não essa mulher ou esse homem que nos sussurra ao ouvido, tampouco os pais ou os filhos, os irmãos ou os amigos (de agora e de sempre). Não é só isso a vida. A vida é a vida. E isso é o mais importante; aquele que a tira, tira tudo. Bernardo Atxaga, trad. Eduardo Jorge Madureira
¶ 8 de Fevereiro de 2011
O corpo saturado e ébrio desperta ainda descalço restolho e quartzo O folião foi escancarado por uma pontual lágrima nocturna Quantas máscaras vestidas Quantas máscaras tragadas na noite passada? Todas as minhas mãos estão levantadas e agarram memórias de um pássaro ferido Aguardo a noite próxima e estou já contigo e tudo em mim é noite e dia agora Estou em paz Amanhã iremos jogar futebol – tu vens também Verás como vale a pena a fresca brisa da manhã Rui A.
¶ 7 de Fevereiro de 2011
J'ai accompli de délicieux voyages, embarqué sur un mot.
Honnoré de Balzac
¶ 7 de Fevereiro de 2011
Sou do desinteresse o ouvido parco das novidades, o mundo na extensão da casca do ovo não procuro o novo e a novidade flutua ante meus olhos (não há importância na descoberta: o novo derruba o que resta). Pedro Du Bois
¶ 6 de Fevereiro de 2011
Espero o alvorecer que me há-de devolver todas as aves que perdi. A meu lado descansa a penumbra que alonga os seus braços ao copo vazio, sobre a velha secretária do avô. Estou sentada e penso na época das certezas mais antigas, das crenças que traçava em todos os gestos que inventava. Estou parada neste tempo, o tempo da minha casa, do meu corpo, ajustado ao espaço, às paredes nuas, ao silêncio dos gatos adormecidos. Estou sentada e olho a minha própria presença, perdida nesta ausência sossegada. Bibi Pereira
¶ 6 de Fevereiro de 2011
Madrugada dada ao firmamento. O sol vem trazido ao vento, rosando o céu e o roseiral. Um tom maior se eleva. E leva, no colo, o sonho dormido. Manhã de novo, o dia vem vindo. Passa o passaredo. E o meu enredo é passar o passado entre os dedos. Dura a aurora duradoura. Doura meu olhar. Lacrimeja o que a alma almeja. Pois seja o que Deus desejar, se é verdade que Deus deseja. E apesar de pesar tanto a vida, o meu canto hoje eu vim pra cantar. Jaumir Valença da Silveira
¶ 5 de Fevereiro de 2011
Louise Julie de Nesle, Condessa de Mailly, a mais velha das famosas irmãs Nesle, que viveu na primeira metade do século XVIII
¶ 5 de Fevereiro de 2011
Não é já de Natal esta poesia. E, se a teus pés deponho algo que encerra e não algo que cria, é porque em ti confio: como a terra, por sobre ti os anos passarão, a mesma serás sempre, e o coração, como esse interior da terra nunca visto, a primavera eterna de que existo, o reflorir de sempre, o dia a dia, o novo tempo e os outros que hão-de vir. Jorge de Sena
¶ 4 de Fevereiro de 2011
Os anos são degraus; a vida, a escada. Longa ou curta, só Deus pode medi-la. E a Porta, a grande Porta desejada, só Deus pode fechá-la, pode abri-la. São vários os degraus: alguns sombrios, outros ao sol, na plena luz dos astros, com asas de anjos, harpas celestiais; alguns, quilhas e mastros nas mãos dos vendavais. Mas tudo são degraus; tudo é fugir à humana condição. Degrau após degrau, tudo é lenta ascensão. Senhor, como é possível a descrença, imaginar, sequer, que ao fim da estrada se encontre após esta ansiedade imensa uma porta fechada — e nada mais? Fernanda de Castro
¶ 3 de Fevereiro de 2011
Como o Caeiro, sabes, digo adeus aos versos que se vão e aos que chegam, marcados desde dentro como teus como sons imperfeitos que se entregam a quem passe e repasse, e já não sabe se a conjunção de como que assim ligo é dele ou de quem é. Como se acabe, o dia em que te escrevo é que te sigo, e mais importa, e mais me livra inteiro do que não tu, a ti, minha mulher, meu caso e minha casa, meu bom cheiro a ti ou a mim mesmo, ao que vier deste completo inverno em que me abeiro da verdade que entenda quem puder. Pedro Tamen
¶ 2 de Fevereiro de 2011
Se receoso se turba na alta noite teu peito em flor, ao sentires um hálito em teus lábios, abrasador, lembra-te que invisível ao teu lado respiro eu. Gustavo Adolfo Bécquer
¶ 2 de Fevereiro de 2011
O girino é o peixinho do sapo. O silêncio é o começo do papo. O bigode é a antena do gato. O cavalo é o pasto do carrapato. O cabrito é o cordeiro da cabra. O pescoço é a barriga da cobra. O leitão é um porquinho mais novo. A galinha é um pouquinho do ovo. O desejo é o começo do corpo. Engordar é tarefa do porco. A cegonha é a girafa do ganso. O cachorro é um lobo mais manso. O escuro é a metade da zebra. As raízes são as veias da seiva. O camelo é um cavalo sem sede. Tartaruga por dentro é parede. O potrinho é o bezerro da égua. A batalha é o começo da trégua. Papagaio é um dragão miniatura. Bactéria num meio é cultura. Arnaldo Antunes
¶ 2 de Fevereiro de 2011
Nem tudo é guerra nem tudo é paz Não, nem tudo se faz ou desfaz Nem tudo se explica nem tudo é caminho Não, por melhor que seja o vinho Nem tudo interessante nem tudo poesia Não, por boa que seja a companhia Nem sempre as palavras rompem o silêncio nem sempre a transparência tem qualidade Assim são as coisas e os dias Nem sempre resposta nem sempre problema Para que nos aconteçam preciso é estar lá Rui A.
¶ 1 de Fevereiro de 2011
As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz. Arnaldo Antunes