¶ 31 de Março de 2005
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de março 2005
¶ 31 de Março de 2005
Falling in love
"Falling in love, then, is a result of two things coming together: the longings which we have and the workings of our imagination. The first draws us out of ourselves in search of another person; the latter intimates that a particular other person may be the one who can satisfy us." John Armstrong, in Conditions of love - the philosophy of intimacy, ed. Penguin.
¶ 31 de Março de 2005
Definição (em diálogo ao sol)
- O amor é uma mistura explosiva de desejo e partilha, uma mistura que se leva do estado inicial de paixão para o quotidiano da normalidade, sem perder nada, acrescentando muito. Que se aprende e se demonstra em acto, mesmo que as palavras por vezes falhem, errem, exagerem ou diminuam, disse. Não é fácil reconhecê-lo quando, durante anos a fio, se chamou amor ao desvario, ao descontrolo, até à dor. - Só acrescentaria cumplicidade a essa definição. Mas a verdade é que o desejo amoroso é sempre cúmplice, e a partilha se desenrola a partir desse modo de proximidade. Quanto ao reconhecimento, só o tempo filtra a verdade, sabes. A epifania é rara e mais vale acreditar na verdade passada pela refinadora dos dias. Do caminho percorrido.
¶ 31 de Março de 2005
As mãos dadas
Um dia me falaste, e as árvores morriam galho a galho seco. Havia flores, recordo. Havia ruas, aí também recordo. E escadas vazias. Não me falaste, não. Fui eu quem perguntou, beijando-te tremente, quantos anos tinhas, e o teu nome. Não tinhas nome; ou tinhas, mas não teu. E a tua idade, as tuas mãos nas minhas. Jorge de Sena.
¶ 30 de Março de 2005
A delicada majestade
Um dia poderás chegar, tu que nunca chegas porque não és um tu ou porque chegas sempre em não chegares. Subi um dia por uma escada silenciosa e em torno era um pomar branco, tranquila maravilha e eu senti, eu vi, adivinhei a divindade amada, a soberana e delicada majestade. Que suavidade de oriente, que suave esplendor! Era o fulgor de um sono límpido, entre olhos verdes, entre mãos verdes. E num repouso de oiro adormecido era quase um rosto antiquíssimo e inicial. Contemplava a quietude de um imenso nenúfar e a fragância era quase visível como um mar entreaberto. Era um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço estendido que descansa entre ribeiros primaveris ou era antes a serena felicidade e era uma boca da terra que não cantava que não dizia o silêncio ardente que no peito de espuma cintilava. António Ramos Rosa
¶ 30 de Março de 2005
Certeza
Em Creta, com o Minotauro, sem versos e sem vida, sem pátrias e sem espírito, sem nada, nem ninguém, que não o dedo sujo, hei-de tomar em paz o meu café. Jorge de Sena
¶ 30 de Março de 2005
Letal
Nunca fora mulher de "conta, peso e medida". Dar e exigir, ter e procurar, interrogar e esgrimir, tudo lhe tinha sido habitual e bastas vezes desmedido. Sabia do perigo iminente dos excessos de palavras que se enrodilhavam na noite e agiam como molas propulsoras da infelicidade. Conhecia bem o sabor salgado que vinha do desespero, maré cheia de descontentamento consigo ou com outrem. Tinha visto como as luzes ingratas e falsas da ribalta se acendem a iluminar cabeças perdidas, com a voracidade que ataca a horas mortas. Adivinhava com notável nitidez a fronteira do declive por onde as almas rolam sem precisarem de mais nada além da inércia morta da tristeza, ainda que momentânea. Mas ainda não tinha aprendido os perigos da abdicação emexcesso - nada sabia da mansíssima vingança da alma contra a generosidade cega, que a negligencia. Se calhar, viver é sempre letal, pensou desconcertada.
¶ 29 de Março de 2005
Das letras (em reminiscência cinza)
Ao longo de toda uma década, tinha sido ensinada a desconfiar de palavras várias. A primeira era paixão. Foi cuidadosa e persistentemente levada a tomá-la como inimiga, mais feroz ainda do que a palavra seguinte na lista das proscritas, a detestar em tempo - amor. A destruição foi-lhe decretada ao som de bela música clássica e perante palavras faustosas de outros. Obediente, meticulosa e confiante, lançou-se à tarefa: levou uns meses a demolir o p, consoante instável; depois disso, o a não ofereceu resistência e o i eclipsou-se logo de seguida. Já o x, bem equilibrado, levantou-lhe as primeiras dúvidas e o a seguinte só foi afastado com lágrimas de raiva, capazes de arrrastar o pequeno e indefeso ~. Quando acabou a demolição do último o , virou as costas ao luciferino projecto e partiu sem des(a)tino. Poucas luas adiante, as palavras todas brilhavam como estrelas sobre o verde do mar enfim descoberto.
¶ 29 de Março de 2005
Talvez...
Quanto eu disser não ouças, quanto eu fizer não vejas; e, se eu estender as mãos, não me estendas as tuas. Aceita que eu exista como os sonhos que ninguém sonha, as imagens malditas que no espelho são noite irreflectida. Talvez então de pura solidão eu desça à vida. Jorge de Sena
¶ 29 de Março de 2005
On loveliness
Barter Life has loveliness to sell, All beautiful and splendid things; Blue waves whitened on a cliff, Soaring fire that sways and sings, And children's faces looking up, Holding wonder like a cup. Life has loveliness to sell; Music like a curve of gold, Scent of pine trees in the rain, Eyes that love you, arms that hold, And, for the Spirit's still delight, Holy thoughts that star the night. Give all you have for loveliness; Buy it, and never count the cost! For one white, singing hour of peace Count many a year of strife well lost; And for a breath of ecstasy, Give all you have been, or could be. Sara Teasdale
¶ 29 de Março de 2005
Fidelidade
Diz-me devagar coisa nenhuma, assim como a só presença com que me perdoas esta fidelidade ao meu destino. Quanto assim não digas é por mim que o dizes. E os destinos vivem-se como outra vida. Ou como solidão. E quem lá entra? E quem pode lá estar mais do que o momento de estar só consigo? Diz-me assim devagar coisa nenhuma: o que à morte se diria, se ela ouvisse, ou se diria aos mortos, se voltassem. Jorge de Sena
¶ 29 de Março de 2005
Difícil
Quando se partilha a vida com alguém - e a partilha é bem mais do que dividir o tempo a meias; é fazer um caminho amoroso onde o discurso nem sempre é transparente e luminoso, onde os dias e as noites se sucedem com certezas e imprevisibilidade inerente à própria anima mundi - torna-se difícil (além de pouco adequado, ao menos aos olhos de algumas pessoas) mencionar em público as qualidades de quem amamos. Conhecêmo-las bem, provavelmente bem melhor do que qualquer outra pessoa, mas o pudor silencia-nos. Por isso, é bom encontrar palavras que adivinham algumas dessas qualidades no discursos dos amigos (com destaque para este, pelo perto que anda, adivinhando muito do que é admirável). As palavras dos amigos são sempre um conforto e uma fonte de alegria, e é bom ver que ele tem muitos e bons. Obrigada pela parte que me toca.
¶ 29 de Março de 2005
Do encanto
Amo-te muito, meu amor, e tanto que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda depois de ter-te, meu amor. Não finda com o próprio amor o amor do teu encanto. Que encanto é o teu? Se continua enquanto sofro a traição dos que, viscosos, prendem, por uma paz da guerra a que se vendem, a pura liberdade do meu canto, Um cântico da terra e do seu povo, nesta invenção da humanidade inteira que a cada instante há que inventar de novo, tão quase é coisa ou sucessão que passa... Que encanto é o teu? Deitado à tua beira, sei que se rasga, eterno, o véu da Graça. Jorge de Sena
¶ 28 de Março de 2005
Memória
O leito O leito conserva o sono e o sonho da mulher amada. A macia espádua, o ventre de lava, o braço e a espada, a mão e a chave, a areia do seio. No corpo da mulher, o leito feito pássaro adormece. António Rebordão Navarro
¶ 28 de Março de 2005
Do vento, a vida
Para atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o terror da morte Para ver a verdade para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei Por ti deixei meu reino meu segredo Minha rápida noite meu silêncio Minha pérola redonda e seu oriente Meu espelho minha vida minha imagem E abandonei os jardins do paraíso Cá fora à luz sem véu do dia duro Sem os espelhos vi que estava nua E ao descampado se chamava tempo Por isso com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 28 de Março de 2005
Despertar
Morning We are what we repeatedly do. Aristotle You know how it is waking from a dream certain you can fly and that someone, long gone, returned and you are filled with longing, for a brief moment, to drive off the road and feel nothing or to see the loved one and feel everything. Perhaps one morning, taking brush to hair you'll wonder how much of your life you've spent at this task or signing your name or rising in fog in near darkness to ready for work. Day begins with other people's needs first and your thoughts disperse like breath. In the in-between hour, the solitary hour, before day begins all the world gradually reappears car by car. Deborah Ager
¶ 28 de Março de 2005
Liberdade descrita
De vez em quando, a meio de uma qualquer das mil conversas do dia (ou da noite), trocavam frases certeiras, riam com gosto e um deles comentava, cúmplice: "Isto dava um óptimo post!". Depois consideravam em qual dos blogues ficaria melhor, adivinhando as reacções dos leitores a discursos imprevisíveis. Enovelados no jogo, não escreviam nada do que tinham dito, que assim se perdia (ainda mais) depressa. E fruíam de uma intensa liberdade que só a proximidade recíproca lhes tinha dado a conhecer.
¶ 27 de Março de 2005
Tudo tem um preço...
(variante autenticada e registada de "Não há almoços grátis") Ontological This is going to cost you. If you really want to hear a country fiddle, you have to listen hard, high up in its twang and needle. You can't be running off like this, all knotted up with yearning, following some train whistle, can't hang onto anything that way. When you're looking for what's lost, everything's a sign, but you have to stay right up next to the drawl and pull of the thing you thought you wanted, had to have it, could not live without it. Honey, you will lose your beauty and your handsome sweetie, this whine, this agitation, the one you sent for with your leather boots and your guitar. The lonesome snag of barbed wire you have wrapped around your heart is cash money, honey, you will have to pay. Maggie Anderson
¶ 26 de Março de 2005
Explicação por interposto poema
(para o Paulo, como de costume, mesmo quando nada fica dito a respeito) Se tanto me dói que as coisas passem É porque cada instante em mim foi vivo Na luta por um bem definitivo Em que as coisas de amor se eternizassem. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 26 de Março de 2005
Em tempo
Menos de mil dias vividos e os tesouros acumulados dão para encher muitas cavernas das mil e uma noites, disse-lhe, o olhar fixo nas esmeraldas de intenso brilho, chama inequívoca e redentora. Dias de sol, sobretudo, mas também algum cinzento teve que existir, chuva aqui e ali, doce embora. A marca do tempo interior infinitamente mais forte, mais marcante, do que o calendário gregoriano sugere. O modus vivendi alterado, mudado de espaço, enriquecido, dotado de calor, cores diversas, palavras outras, discurso tornado alimento. A esperança transmutada em vida, o medo aniquilado. Poder finalmente entender Isabella d' Este: a esperança já não é necessária quando se realiza o amor, e o medo dissolve-se ante o olhar que nos distingue. Sem esperança nem medo, sim. Porque o resgate foi pago à vista e o vento sopra de feição.
¶ 26 de Março de 2005
Mais vale tarde...
O dia começa a aproximar-se do fim. Fim de mais um ano, desigual de todos os que o antecederam - um ano que foi, finalmente, de viragem decisiva, há muito almejada mas sempre distante, quase inantingível. Um ano de vida cumprido, que termina com sentido pleno, inteiro. Demorou, sim, mas valeu todos os que serviram de sala de espera.
¶ 25 de Março de 2005
Um rio de luzes
Um rio de escondidas luzes atravessa a invenção da voz: avança lentamente mas de repente irrompe fulminante saindo-nos da boca No espantoso momento do agora da fala é uma torrente enorme um mar que se abre na nossa garganta Nesse rio as palavras sobrevoam as abruptas margens do sentido Ana Hatherly
¶ 25 de Março de 2005
Alone
I am alone, in spite of love, In spite of all I take and give— In spite of all your tenderness, Sometimes I am not glad to live. I am alone, as though I stood On the highest peak of the tired gray world, About me only swirling snow, Above me, endless space unfurled; With earth hidden and heaven hidden, And only my own spirit's pride To keep me from the peace of those Who are not lonely, having died. Sara Teasdale
¶ 25 de Março de 2005
Blue rain
Há dias em que chove dentro da alma, mesmo que seja só por mimetismo com a água lá fora. Dias em que o ar não é tão doce, a luz fere o olhar mesmo coada, o fogo teima em não aquecer mas pode queimar. Só a água escorre. Por dentro do olhar.
¶ 24 de Março de 2005
About loving
"People can be better or worse at seeing opportunities to make their affection apparent to the one they love. They can be better or worse at seeing what the needs or problems of the other might be; at recognizing the impact of their own behaviour on the other. This has nothing to do with strength of feeling or intensity of longing. Instead it has everything to do with perceptual acuity and imagination." John Armstrong, in Conditions of love - the philosophy of intimacy, ed. Penguin.
¶ 23 de Março de 2005
Da escrita, ainda
- Tens menos tempo para escrever, agora? A pergunta natural, vinda de quem se habituou à leitura do modus num tempo passado, tão distante que a memória já só o entrevê a custo, no meio de uma névoa perplexa - porquê todo aquele tempo gasto assim? Porquê tanta sombra, tantos passos em vão, num labirinto inteiramente desprovido de qualquer sentido? Até a resposta, tornada cada vez mais ininteligível, deixa lentamente de ser necessária. Não, não é falta de tempo. A respiração das palavras é que é oposta - os dias decorrem sob uma luz outra, reconfortantes e cheios, entre manhãs conversadas e noites luminosas. Não faltam posts imaginados, mas vão-se perdendo uns e recusando a (excessiva) inconfidência de outros. O modus escolhe agora sobretudo as belas palavras alheias, partilha certa entre quem escreve e quem lê. Deo gratias.
¶ 23 de Março de 2005
Da escrita
Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te no sossego feliz das folhas e das sombras. Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa. Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes. Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde. O que procuro é um coração pequeno, um animal perfeito e suave. Um fruto repousado, uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado, uma pergunta que não ouvi no inanimado, um arabesco talvez de mágica leveza. Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma? Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore. As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos. O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu, o grande sopro imóvel da primavera efémera. António Ramos Rosa
¶ 23 de Março de 2005
Reverie
Like mist upon the lake when night has flown Reveals that those we've loved and those we've known From yesterdays and yesterdays before The casualties of time's eternal war In subtle shades of dawn's most fleeting glance Reflected in the mirrored lake's expanse Are not forgotten friends we hold most dear Nor are their ghosts the shadows which we fear For as the Sun the morning mist will raise Its curtain on the second act of days Where lovers who were lost are brightly found And friendship circles, one eternal round Our misted lives live on in memory While present joys find pleasant reverie Scott Ennis
¶ 22 de Março de 2005
Do indizível
Pequenas coisas Falar do trigo e não dizer o joio. Percorrer em voo raso os campos sem pousar os pés no chão. Abrir um fruto e sentir no ar o cheiro a alfazema. Pequenas coisas, dirás, que nada significam perante esta outra, maior: dizer o indizível. Ou esta: entrar sem bússola na floresta e não perder o rumo. Ou essa outra, maior que todas e cujo nome por precaução omites. Que é preciso, às vezes, não acordar o silêncio. Albano Martins
¶ 22 de Março de 2005
História(s)
As histórias breves (ou mesmo brevíssimas, como algumas das escritas com talento e concisão pelo Luís Ene) são um desafio à capacidade de síntese e ao domínio certeiro da palavra. Acresce o traço surreal de umas, o desencanto de outras, até mesmo um tom, uma evocação de cepticismo sardónico "carveriano". Certo é que a leitura compensa, e em livro é sempre diferente. "Ele sentia-se tão feliz que desejou morrer, até pensou em suicídio, mas no final optou por matá-la. Na verdade, pouca diferença fazia, pois só a morte preserva o amor, bastando que um dos amantes fique vivo para durar para sempre." Luís Ene, in mil e uma pequenas histórias, vol. I, ed. pauloquerido.com, colecção leiturascom.net
¶ 22 de Março de 2005
Conditions of love
"Falling in love is, obviously, an important aspect of love. But to elevate the beginning of a relationship is to do an injustice to its future - it provides a misleading model for thinking about love. Love is a process which develops and changes over time.(...) To judge the whole of a process by the experience of the beginning is the mark of immaturity." John Armstrong, in Conditions of love - the philosophy of intimacy, ed. Penguin.
¶ 22 de Março de 2005
The More Loving One
Looking up at the stars, I know quite well That, for all they care, I can go to hell, But on earth indifference is the least We have to dread from man or beast. How should we like it were stars to burn With a passion for us we could not return? If equal affection cannot be, Let the more loving one be me. Admirer as I think I am Of stars that do not give a damn, I cannot, now I see them, say I missed one terribly all day. Were all stars to disappear or die, I should learn to look at an empty sky And feel its total dark sublime, Though this might take me a little time. W.H. Auden
¶ 22 de Março de 2005
Limiar
Somos ainda o limiar - espessa nuvem embrionária. Verdes, imaturos crustáceos emergimos à superfície grávida das ondas. Somos o medo ou sua improvável renúncia. O que sabemos do amor, da morte, é só difusa, opaca, luminosa fábula. Albano Martins
¶ 22 de Março de 2005
Regresso
Ao lugar onde reside a matriz, o antes e o depois. Com um calor novo, um olhar mais longe. Pode uma cidade ser descoberta quando já era conhecida? Podem as mesmas ruas, os mesmos espaços, os museus, as livrarias, os parques, o mesmo rio cruzado de tantas pontes (e uma para sempre diferente de todas as outras, iguais ou não sob a aparência dos materiais), brilhar sob uma luz inteiramente nova? Sim, disse.
¶ 17 de Março de 2005
Das palavras, sempre
(da luz e do som) Seguiam envoltos no calor que antecipa outros dias coloridos e falavam das linguagens e das escritas várias. Deliberaram, por unanimidade e convicção, que a literatura, esse universo magnífico, se faz de pensar os sentimentos (o sentido) e sentir os pensamentos (o pensado). E atravessaram a cidade com jazz em fundo.
¶ 17 de Março de 2005
Pergunta
Acreditar e confiar (na sorte, emalguém, na própria vida) são a mesma coisa? Ou duas faces da mesma moeda?
¶ 17 de Março de 2005
Andanças
Durante uns escassos quatro ou cinco dias, o modus vai estar em mini férias, respirando outros ares, com o vento; lá fora, o teclado será outro e os posts serão escassos (ou nenhuns), mas antes da Páscoa, e certamente com mais livros, novos poemas irão passar por aqui.
¶ 16 de Março de 2005
Do tempo antes
The Years To-night I close my eyes and see A strange procession passing me -- The years before I saw your face Go by me with a wistful grace; They pass, the sensitive, shy years, As one who strives to dance, half blind with tears. The years went by and never knew That each one brought me nearer you; Their path was narrow and apart And yet it led me to your heart -- Oh, sensitive, shy years, oh, lonely years, That strove to sing with voices drowned in tears. Sara Teasdale
¶ 16 de Março de 2005
Do amor (em acto)
Frutos Quando a amada oferece o seu corpo, ela sabe que dos frutos apenas se colhe o sabor. É então que os dedos separam as películas, que a lâmina desce e a água e o fogo se misturam. E é então que a vida e a morte convivem sob o mesmo tecto. Albano Martins
¶ 16 de Março de 2005
Longe
Amigo, estás longe. E a tua vida está envolta em cores que eu não vejo. E a minha vida está envolta em cores que eu não vejo. Sandro Penna
¶ 15 de Março de 2005
Because
Oh, because you never tried To bow my will or break my pride, And nothing of the cave-man made You want to keep me half afraid, Nor ever with a conquering air You thought to draw me unaware -- Take me, for I love you more Than I ever loved before. And since the body's maidenhood Alone were neither rare nor good Unless with it I gave to you A spirit still untrammeled, too, Take my dreams and take my mind That were masterless as wind; And "Master!" I shall say to you Since you never asked me to. Sara Teasdale
¶ 15 de Março de 2005
Tempus fugit
Come Come, when the pale moon like a petal Floats in the pearly dusk of spring, Come with arms outstretched to take me, Come with lips pursed up to cling. Come, for life is a frail moth flying, Caught in the web of the years that pass, And soon we two, so warm and eager, Will be as the gray stones in the grass. Sara Teasdale
¶ 14 de Março de 2005
The needle
Come, or the stellar tide will slip away. Eastward avoid the hour of its decline, Now! for the needle trembles in my soul! Here we have had our vantage, the good hour. Here we have had our day, your day and mine. Come now, before this power That bears us up, shall turn against the pole. Mock not the flood of stars, the thing's to be. O Love, come now, this land turns evil slowly. The waves bore in, soon they bear away. The treasure is ours, make we fast land with it. Move we and take the tide, with its next favour, Abide Under some neutral force Until this course turneth aside. Ezra Pound
¶ 14 de Março de 2005
Do olhar segundo
Há um momento, ainda sem se adivinhar sequer, a partir do qual a contagem do tempo passa a ser decrescente face a um ponto de viragem na vida; a inversão é desconhecida, ou inapreendida, e tudo aparenta a mais completa normalidade - a banalidade de uma primeira troca de cumprimentos de circunstância, antecedida pelo "instante zero", em que alguém sobe uma escada, outra pessoa atravessa um pequeno átrio, e os olhares se cruzam, sem perturbação, apenas vestindo a leve curiosidade de quem "ouviu falar". Depois, as primeiras conversas, simples, soltas, o interesse genuíno por temas comuns, a proximidade já voluntária a acender ligeiramente os sentidos. A cumplicidade, o reconhecimento imediato de uma presença marcante, o território comum que se quer densificar. As palavras claras deixadas como penhor desse desejo. E, horas passadas, o primeiro deslumbramento com o gesto generoso, a inteligência sensível, a consideração tornada acto. O tempo aberto ao olhar segundo.
¶ 14 de Março de 2005
Do primeiro olhar
Who ever loved that loved not at first sight? Christopher Marlowe, in Hero and Leander.
¶ 14 de Março de 2005
To (love &) be loved
(ou da glória máxima) Late Fragment And did you get what you wanted from this life, even so? I did. And what did you want? To call myself beloved, to feel myself beloved on the earth. Raymond Carver
¶ 14 de Março de 2005
Sem palavras
Há dias assim, em que as palavras não chegam para tocar a vida. Não porque se tenha algo de extraordinário a (d)escrever, ou precisamente porque a magia se tornou um traço comum - o sublime faz parte da massa dos dias, é uma espécie de linho cru onde se bordam as horas, cruzando o fio das ocupações banais com os momentos, repetidos e sempre únicos, em que os olhares se encontram, a respiração se confunde e os limites aparentes dos corpos se diluem na alquimia da paixão tornada fuga dentro do tempo. Há dias assim, em que as palavras não chegam.
¶ 14 de Março de 2005
Da contingência
Cedo ou tarde Devias saber que é sempre tarde que se nasce, que é sempre cedo que se morre. E devias saber também que a nenhuma árvore é lícito escolher o ramo onde as aves fazem ninho e as flores procriam. Albano Martins
¶ 14 de Março de 2005
Obviously
Fault They came to tell your faults to me, They named them over one by one; I laughed aloud when they were done, I knew them all so well before, -- Oh, they were blind, too blind to see Your faults had made me love you more. Sara Teasdale
¶ 13 de Março de 2005
O sol nas noites e o luar nos dias
De amor nada mais resta que um Outubro e quanto mais amada mais desisto: quanto mais tu me despes mais me cubro e quanto mais me escondo mais me avisto. E sei que mais te enleio e te deslumbro porque se mais me ofusco mais existo. Por dentro me ilumino, sol oculto, por fora te ajoelho, corpo místico. Não me acordes. Estou morta na quermesse dos teus beijos. Etérea, a minha espécie nem teus zelos amantes a demovem. Mas quanto mais em nuvem me desfaço mais de terra e de fogo é o abraço com que na carne queres reter-me jovem. Natália Correia
¶ 13 de Março de 2005
Poema
Sobre a pintura de um ramo florido "Primavera Precoce", de Wang Quem disse que a pintura deve parecer-se com a realidade? Quem o disse vê com olhos de não entendimento Quem disse que o poema deve ter um tema? Quem o disse perde a poesia do poema Pintura e poesia têm o mesmo fim: Frescura límpida, arte para além da arte Os pardais de Bain Lun piam no papel As flores de Zhao Chang palpitam Porém o que são ao lado destes rolos Pensamentos-linhas, manchas-espíritos? Quem teria pensado que um pontinho vermelho Provocaria o desabrochar da primavera? Su Dong Po
¶ 13 de Março de 2005
(More than) enough
Enough It is enough for me by day To walk the same bright earth with him; Enough that over us by night The same great roof of stars is dim. I do not hope to bind the wind Or set a fetter on the sea -- It is enough to feel his love Blow by like music over me. Sara Teasdale
¶ 12 de Março de 2005
Sem perder
Não se perdeu nenhuma coisa em mim. Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim, Continuam as vozes diferentes Que intactas no meu ser estão suspensas. Trago o terror e trago a claridade, E através de todas as presenças Caminho para a única unidade. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 12 de Março de 2005
(Re)conhecimento
Encontro ecos das minhas palavras em muito do que tens escrito, e gosto disso - a frase dita com generosidade amorosa, iluminada por um sorriso através do entendimento claro. Eu sei. Às vezes é porque quero reviver o que dizes, outras é apenas porque as tuas palavras me correm no sangue, me alimentam e se entrelaçam nas minhas. Naquele instante, sob o céu cinzento à beira do incomensurável, ambos sabiam de cor o grau exacto de partilha por detrás do eco (re)conhecido.
¶ 12 de Março de 2005
Calendário
Vestiam os dias de alegria leve e permanente, de companhia e de envolvimento - as palavras já um pouco curtas para a realidade, repetidas e rebuscadas para remediar a distância entre o dito e o sentido. Guardavam com desvelo as noites serenas e antigas, doces e fortes, a paixão latente como a força das marés, uma após outra, sabendo perder-lhes a conta. Era então assim, sumptuosa e discreta, entre intimidade e disfarce de vida comum, a mais completa felicidade.
¶ 12 de Março de 2005
Certeza
De vez em quando, muito de longe em longe, alegravam-se com a espantosa coincidência de não dizerem a mesma palavra em simultâneo. Essa pequena distância dava-lhes a certeza absoluta de não serem, afinal, amantes de si mesmos noutro corpo.
¶ 12 de Março de 2005
Da escassez (do tempo)
Tão pouca é a vida, o deslumbrado delírio da vida. No tear se tecem os fios, o desenho das rendas,a renda dos dias. Ignoro quantos, quantas tardes no fluir da paixão, quanto ouro e azul na idade das mãos, que idade no tear das mães. Foram belas também no sonho antigo, passearam entre os lírios, desatavam a cabeleira e os vestidos, iam à beira mar. José Agostinho Baptista
¶ 11 de Março de 2005
De dentro
Venho de dentro, abriu-se a porta: nem todas as horas do dia e da noite me darão para olhar de nascente a poente e pelo meio as ilhas. Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo de só imaginá-la a luz fulmina-me, na outra face ainda é sombra Banhos de sol nas primeiras areias da manhã Mansidões na pele e do labirinto só a convulsa circunvolução do corpo. Luiza Neto Jorge
¶ 11 de Março de 2005
Tre giorni
Três dias, disse para o fundo branco, os caracteres soltando-se-lhe das mãos ágeis, dos dedos que acendem cigarros quase a contragosto, que atiram o isqueiro com a bela impaciência do fulgor permanente; são três dias e não três meses, decidiu, serão três anos de repente, um dia qualquer, um dia que vai nascer como todos os outros, onde cabe o riso e a palavra, o gesto e o olhar. E novamente as mãos desenham símbolos, capazes da ternura, do calor, os braços tornados fortaleza inexpugnável ao cair de todas as noites.
¶ 11 de Março de 2005
Do perigo
O meu amor é furtivo como o amor de um pobre. Qualquer um pode roubá-lo. E eu terei de deixá-lo. Por isso, rio silente, por isso, minha suave colina, não lhe posso chamar amor simplesmente. Mas tu, colina de ouro, e tu, rio indolente, sabeis que o meu amor é mesmo um grande amor. O perigo odiado não existe para já? Mas vós sabeis, amigos, que no meu coração está. A chorar me vereis, ó vós, sempre felizes, não como agora choro, não de felicidade. Sandro Penna
¶ 11 de Março de 2005
Quanto
Quanto de ti, amor, me possuiu no abraço em que de penetrar-te me senti perdido no ter-te para sempre - Quanto de ter-te me possui em tudo o que eu deseje ou veja não pensando em ti no abraço a que me entrego - Quanto de entrega é como um rosto aberto, sem olhos e sem boca, só expressão dorida de quem é como a morte - Quanto de morte recebi de ti, na pura perda de possuir-te em vão de amor que nos traiu - Quanta traição existe em possuir-se a gente sem conhecer que o corpo não conhece mais que o sentir-se noutro - Quanto sentir-te e me sentires não foi senão o encontro eterno que nenhuma imagem jamais separará - Quanto de separados viveremos noutros esse momento que nos mata para quem não nos seja e só - Quanto de solidão é este estar-se em tudo como na auséncia indestrutível que nos faz ser um no outro - Quanto de ser-se ou se não ser o outro é para sempre a única certeza que nos confina em vida - Quanto de vida consumimos pura no horror e na miséria de, possuindo, sermos a terra que outros pisam - Oh meu amor, de ti, por ti, e para ti, recebo gratamente como se recebe não a morte ou a vida, mas a descoberta de nada haver onde um de nós não esteja. Jorge de Sena
¶ 10 de Março de 2005
Do assombro (muito depois)
A noite tinha voltado sem se anunciar. Os arcos do tempo tornados novos na singularidade, outros, únicos de intensidade imprevista à branca luz lunar. A cumplicidade a nortear caminhos desenhados pela vez primeira, a bússola solta no riso, a música das frases partilhadas até ao limite. A procura levada à exaustão, surpresa feliz. O encontro total dos corpos enlevados, o olhar cada vez mais fundo, o assombro. Esplenderoso, o mar, disseram ao amanhecer.
¶ 10 de Março de 2005
Um dia branco
Dai-me um dia branco, um mar de beladona Um movimento Inteiro, unido, adormecido Como um só momento. Eu quero caminhar como quem dorme Entre países sem nome que flutuam. Imagens tão mudas Que ao olhá-las me pareça Que fechei os olhos. Um dia em que se possa não saber. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 10 de Março de 2005
Aletheia (em pano de fundo)
O céu em campânula, quase deixando vir a água prometida e adiada, toldado em tons de suave anil. A praça povoada de roupagens já hesitando, os tons escuros de um inverno incomum manchados a espaços pelo advento colorido desta primavera demasiado prematura. Os sons da cidade a meio do dia, cheios e reconfortantes, o coração pulsante de vida(s). E sempre a sua imagem transportada em pano de fundo, todo o tempo, presente esmeralda - o invisível olhar dissolvido na alma, inspirado no ar em cada segundo que passa.
¶ 10 de Março de 2005
Sopro
Nem sempre o corpo se parece com um bosque, nem sempre o sol atravessa o vidro, ou um melro canta na neve. Há um modo de olhar vindo do deserto, mirrado sopro de folhas, de lábios, digo. Eugénio de Andrade
¶ 9 de Março de 2005
Da leveza
Meus pensamentos são nómadas e vagarosos como a água que vem da montanha e não sabe nada do coração dos homens. O meu, por exemplo, tem a leveza do vento e corre para casa como se fosse um cão que precede os passos do dono. Casimiro de Brito
¶ 8 de Março de 2005
Do gesto
Vivo na esperança de um gesto Que hás-de fazer. Gesto, claro, é maneira de dizer, Pois o que importa é o resto Que esse gesto tem de ter. Tem que ter sinceridade Sem parecer premeditado; E tem que ser convincente, Mas de maneira diferente Do discurso preparado. Sem me alargar, não resisto À tentação de dizer Que o gesto não é só isto... Quando tu, em confusão, Sabendo que estou à espera, Me mostras que só hesitas Por não saber começar, Que tentações de falar! Porque enfim, como adivinhas, Esse gesto eu sei qual é, Mas se o disser, já não é... Reinaldo Ferreira
¶ 8 de Março de 2005
Da escolha
The Road Not Taken Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth; Then took the other, as just as fair, And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; Though as for that the passing there Had worn them really about the same, And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I kept the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back. I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I-- I took the one less traveled by, And that has made all the difference. Robert Frost
¶ 8 de Março de 2005
Das palavras, ainda
Eram amantes das palavras, artesãos de frases que faziam e desmanchavam a gosto. Ávidos, usaram todas as que tinham há muito guardadas para o dia inesperado em que o amor os convocasse. Inundaram o ar com o som que os submergia e nada chegava perto. Finalmente, de olhos deslumbrados, perceberam que só o silêncio bastava para conter a desmesura do que os unia.
¶ 8 de Março de 2005
Das palavras
A matéria das palavras Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes. É a hora do infinito desacerto-acerto. O vulto da nossa singularidade viaja por palavras matéria insensível de um poder esquivo. Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação. Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves. Aspiramos à alta liberdade um bem sempre suspenso que nos crucifica. Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária. Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição especialista em fracassos. Estrangeiros sempre agudamente colhemos os frutos discordantes. Ana Hatherly
¶ 7 de Março de 2005
Este livro
Depois de meia dúzia de títulos publicados, ao longo de uns escassos quatro anos, mais um livro técnico, destinado sobretudo ao público alvo bem conhecido dos alunos e de alguns juristas, não faria grande diferença no sentir. Mas há uma novidade que faz uma grande, enorme diferença: este livro não era para acabar, abandonado por desalento nos idos de Novembro, pouco após ter sido iniciado. Mudaram-se os tempos, as circunstâncias e a vontade, e pela a primeira vez fiz um livro em tempo recorde e, acima de tudo, com a colaboração de duas pessoas que amo (a capa concebida pelo Pedro, a edição e a composição gráfica do Paulo) e (me) dão sentido; para completar este quadro, até a revisão ficou sob o olhar inteligente, doce e atento da Inês, uma "irmã" muito especial. Sim, o tema pode ser o Direito Empresarial, mas é uma verdadeira sinergia de afectos que ali está.
¶ 7 de Março de 2005
Do movimento
Correram em rota de aproximação, o movimento em câmara estupidamente lenta, anos a fio, sem se conhecerem, sem sequer suspeitarem da existência alienada dessa parte de si, passando perto, cada vez mais perto, um do outro. Demoraram-se uma última década com a alma lutando em areias movediças, sujeitos ao capricho de deuses menores. A curta distância do encontro, na derradeira volta da espiral, o acaso oscilou ainda, suspenso entre névoa e pouca vontade. Afinal, a força da gravidade cumpriu o que era suposto e mudou-lhes a respiração para o ar da vida.
¶ 7 de Março de 2005
Do sol
I tell thee Love is Nature’s second sun, Causing a spring of virtues where he shines. George Chapman, in All Fools, Acto I, Cena 1.
¶ 7 de Março de 2005
Doxa
Soneto inglês Como o silêncio do punhal num peito, O silêncio do sangue a converter Em fio breve o coração desfeito Que nas pedras acaba de morrer, Vive em mim o teu nome, tão perfeito Que mais ninguém o pode conhecer! É a morte que vivo e não aceito; É a vida que espero não perder. Viver a vida e não viver a morte; Procurar noutros olhos a medida, Vencer o tempo, dominar a sorte, Atraiçoar a morte com a vida! Depois morrer de coração aberto E no sangue o teu nome já liberto... Alexandre O´Neill
¶ 7 de Março de 2005
Manhã
- Se me conhecesses antes de eu te ter conhecido, não me reconhecias, disse-lhe, entre pensativa e sorridente. - É bem provável, respondeu-lhe, tomando em firme o que ela dizia.
¶ 6 de Março de 2005
Eine Sternstunde
O que é "uma hora estelar"? Quantas cabem numa vida? Como se reconhece o brilho autêntico que atravessa o olhar e vai até ao limite? De que maneira se transforma a esperança antiga em nova, novíssima certeza? Como se define o azul exacto do céu à hora em que as estrelas se desvanecem, reflexo no mar aberto a um novo dia? Que palavra explica o amor?
¶ 6 de Março de 2005
Da vontade
"O acto da vontade é infinito." Giordano Bruno, in De gli eroici furori.
¶ 6 de Março de 2005
Aforismo surreal
Quem se alimenta de palavras, facilmente morrerá envenenado. Quem as respira, facilmente se condena a sufocar.
¶ 6 de Março de 2005
Instante
Deixai-me limpo O ar dos quartos E liso O branco das paredes Deixai-me com as coisas Fundadas no silêncio Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 5 de Março de 2005
Million dollar baby
O filme é sobre os limites. Os limites da determinação, da força, da dedicação, do empenho. Comittement and focus, a matéria prima da construção da vida. Clint Eastwood aparece velho, sem disfarces, exposto na usura do tempo sobre o corpo, proporcional ao crescimento da alma. O olhar é austero, preciso. O narrador, aquela soberba voz off que parece dirigida ao espectador e se sabe, no fim, que fala para o buraco negro afectivo do personagem principal (tanto quanto, num dueto perfeito, se pode distinguir um protagonista), tranporta um mundo de reflexão, de amadurecimento triado até à extrema depuração. E o gesto de amor com que culmina a história, libertando de uma sobrevivência cruel quem tinha lutado pela vida até à exaustão,toca no âmago da fragilidade maior de cada um de nós - quanto tempo teremos para sermos quem somos.
¶ 5 de Março de 2005
True
«Tough ain't enough.» in Million Dollar Baby, realização de Clint Eastwood
¶ 4 de Março de 2005
Vanità
D'improvviso è alto sulle macerie il limpido stupore dell'immensità E l'uomo curvato sull'acqua sorpresa dal sole si rinviene un'ombra Cullata e piano franta G. Ungaretti
¶ 4 de Março de 2005
Do hipnotismo
"A propensão para se ser hipnotizado distingue as personalidades fortes. Estas retêm a sua individualidade transmutada depois de passarem pelo crivo da intervenção do Mestre." George Steiner, in As lições dos mestres, ed. Gradiva.
¶ 4 de Março de 2005
Outro poema próximo
(para ele, rendido ao sono, vencida a luta) É na escura folhagem do sono que brilha a pele molhada, a difícil floração da língua. Eugénio de Andrade
¶ 3 de Março de 2005
Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos Espantado meu olhar com teus cavalos E grandes praias fluidas avenidas Tardes que oscilam demoradas E um confuso rumor de obscuras vidas E o tempo sentado no limiar dos campos Com seu fuso sua faca e seus novelos Em vão busquei eterna luz precisa Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 3 de Março de 2005
Poema próximo
(para ele, entregue à luta, no mar encarpelado das noites por dormir) Amor é o olhar total, que nunca pode ser cantado nos poemas ou na música, porque é tão-só próprio e bastante, em si mesmo absoluto táctil, que me cega, como a chuva cai na minha cara, de faces nuas, oferecidas sempre apenas à água. Fiama Hasse Pais Brandão
¶ 3 de Março de 2005
Profecia (cumprida há luas várias)
Sê paciente; espera que a palavra amadureça e se desprenda como um fruto ao passar o vento que a mereça. Eugénio de Andrade
¶ 3 de Março de 2005
Partilha (de informação sabedora)
Para se ser quem se é na plenitude, há que saber contemplar as três faces da moeda - as duas que são mais expostas, e a terceira que as une, menos óbvia mas ainda assim capaz de fazer rolar a moeda para longe, ou de a manter na vertical do lugar, disse-lhe, com a cumplicidade inteligente própria do lugar onde a amizade cresce, calorosa.
¶ 3 de Março de 2005
Exultação
Não há maior maravilha do que percorrer as alturas estreladas, abandonar as lúgubres regiões da terra, cavalgar as nuvens, subir aos ombros de Atlas, e ver muito distantes, lá em baixo, as pequenas figuras que vagueiam e erram, desprovidas de razão, inquietas, no temor da morte, e aconselhá-las, e fazer do destino um livro aberto. Ovídio, in Metamorfoses.
¶ 3 de Março de 2005
Acordar
TITANIA What angel wakes me from my flowery bed? BOTTOM The finch, the sparrow and the lark, The plain-song cuckoo gray, Whose note full many a man doth mark, And dares not answer nay;-- for, indeed, who would set his wit to so foolish a bird? who would give a bird the lie, though he cry 'cuckoo' never so? TITANIA I pray thee, gentle mortal, sing again: Mine ear is much enamour'd of thy note; So is mine eye enthralled to thy shape; And thy fair virtue's force perforce doth move me On the first view to say, to swear, I love thee. BOTTOM Methinks, mistress, you should have little reason for that: and yet, to say the truth, reason and love keep little company together now-a-days; the more the pity that some honest neighbours will not make them friends. Nay, I can gleek upon occasion. TITANIA Thou art as wise as thou art beautiful. BOTTOM Not so, neither: but if I had wit enough to get out of this wood, I have enough to serve mine own turn. TITANIA Out of this wood do not desire to go: Thou shalt remain here, whether thou wilt or no. I am a spirit of no common rate; The summer still doth tend upon my state; And I do love thee: therefore, go with me; I'll give thee fairies to attend on thee, And they shall fetch thee jewels from the deep, And sing while thou on pressed flowers dost sleep; And I will purge thy mortal grossness so That thou shalt like an airy spirit go. William Shakespeare, in A midsummer nights' dream, Acto III, Cena I.
¶ 2 de Março de 2005
Da escrita
"(...) They always wanted more than the poem and that was senseless because the poem said it best. Too many writers became teachers, became gurus (...)" Charles Bukowski
¶ 2 de Março de 2005
Ausência
Num deserto sem água Numa noite sem lua Num país sem nome Ou numa terra nua Por maior que seja o desespero Nenhuma ausência é mais funda do que a tua. Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 1 de Março de 2005
Da chama
A boca, onde o fogo de um verão muito antigo cintila, a boca espera (que pode uma boca esperar senão outra boca?) espera o ardor do vento para ser ave, e cantar. Eugénio de Andrade
¶ 1 de Março de 2005
Memória ( ou do grito inútil)
"Fico nas redondezas por uns dias, Glória", disse Harry com suavidade. "Poderei trazer tudo o que tu peças." "Então traz-me o teu amor", gritou Glória. "Por que raio não me dás tu o teu amor?" Charles Bukowski, in Dá-me o teu amor, ed. Hiena.
¶ 1 de Março de 2005
Da realidade imaginada
Gostava da respiração nova que tinha aprendido como quem estuda um idioma hermético, das palavras, ditas ou somente desenhadas no contorno doce dos lábios, do olhar novo que iluminava os dias de horas ligeiramente trocadas. Gostava da realidade superior à ficção, da sincronia quase perfeita, do desejo em perpétuo retorno. Sabia que o tempo não espera, não abranda sequer, usa e abusa, dá e tira com idêntico à vontade, e usou os mais vulgares expedientes para fingir o contrário. Firme e carinhosamente chamada à razão, ponderou e, a custo, escolheu: depois do deslumbramento com a felicidade, declarou-se finalmente pronta a vivê-la.
¶ 1 de Março de 2005
Por um fio
Cruzaram-se no pátio da universidade onde ambas peroravam com regularidade mercenária, sorriram a simpatia recíproca de anos,e ela surpreendeu-se, quase sobressaltada, quando, em resposta ao inevitável "Como está?", a colega lhe disse, cúmplice: "A si, não preciso perguntar - vou lendo no blogue!". Ali estavam, puro engano à vista, a realidade e a ficção misturadas em modo virtual, como se a escrita fosse obra de papparazzi irrequietos; assim lhe tinha sido dito que seria, há muito tempo. Horas mais tarde, planeou um assassinato à mesa do jantar. A AmATA com os dias por um fio...
¶ 1 de Março de 2005
In love with words
Words Be careful of words, even the miraculous ones. For the miraculous we do our best, sometimes they swarm like insects and leave not a sting but a kiss. They can be as good as fingers. They can be as trusty as the rock you stick your bottom on. But they can be both daisies and bruises. Yet I am in love with words. They are doves falling out of the ceiling. They are six holy oranges sitting in my lap. They are the trees, the legs of summer, and the sun, its passionate face. Yet often they fail me. I have so much I want to say, so many stories, images, proverbs, etc. But the words aren't good enough, the wrong ones kiss me. Sometimes I fly like an eagle but with the wings of a wren. But I try to take care and be gentle to them. Words and eggs must be handled with care. Once broken they are impossible things to repair. Anne Sexton