Arquivo de dezembro 2004
¶ 31 de Dezembro de 2004

¶ 31 de Dezembro de 2004
O motto do Modus, tomado de empréstimo a Goethe, aponta um caminho e uma teleologia: poder tornar-se plenamente quem na verdade se é, sem constrangimentos nem frustrações, sem o frio de só se ser visto pela metade e o desprazer do comedimento onde se deseja a entrega, foi eleito como o sentido para a vida neste espaço peculiar, exarcebado às vezes, sublimado outras tantas.
Mas tornar-se quem se é não depende só da atitude própria, nem da convicção inteira ou mesmo da resiliência: depende também do meio, do todo, e acima de tudo da luz e do calor que se recebe do olhar que nos vê e onde nos revemos. Só assim se atinge aquilo que, com razoável insuficiência, pode ser designado como felicidade.
¶ 31 de Dezembro de 2004

¶ 31 de Dezembro de 2004
Cor unum et anima una
Entrou no quarto onde nunca tinha estado e não se sentiu estranha. Olhou nos olhos a irmã que não tinha e (re)conheceu nela o espelho límpido e sereno do amor generoso e constante, da fé inabalável no bem, luz serena em partilha de uma qualquer alegria máxima que não tinha visto antes.
Voltou ao espelho onde interrogou a vida, tantos anos sem passar por este caminho que adivinhava de longe, de bem longe. À esquerda, lugar do coração, escrito na parede em tinta desvanecida sobre papel vindo de outros tempos e de dimensões alheias, as palavras intersectaram-lhe a vida, epifaniaperfeita para a totalidade habitada.
¶ 30 de Dezembro de 2004

¶ 30 de Dezembro de 2004
(para a Inês, pela doçura do sorriso, a beleza do olhar, o gesto)
São coisas vindas do mar.
Ou doutra estrela.
Seixos, ouriço, astros
pequenos e vagabundos, sem bússola,
sem norte, os passos incertos. Pouco
se demoram. Como a felicidade.
Seguem outra canção, outra bandeira.
Tudo isso os olhos traziam.
Do mar. Ou doutra idade.
Eugénio de Andrade
¶ 30 de Dezembro de 2004
There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are closed
With a word she can get what she came for
Woe oh oh oh oh oh
And she's buying a stairway to heaven
There's a sign on the wall but she wants to be sure
And you know sometimes words have two meanings
In the tree by the brook there's a songbird who sings
Sometimes all of our thoughts are misgiven
Woe oh oh oh oh oh
And she's buying a stairway to heaven
There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke through the trees
And the voices of those who stand looking
Woe oh oh oh oh oh
And she's buying a stairway to heaven
And it's whispered that soon, if we all call the tune
Then the piper will lead us to reason
And a new day will dawn for those who stand long
And the forest will echo with laughter
And it makes me wonder
If there's a bustle in your hedgerow
Don't be alarmed now
It's just a spring clean for the May Queen
Yes there are two paths you can go by
but in the long run
There's still time to change the road you're on
Your head is humming and it won't go because you don't know
The piper's calling you to join him
Dear lady can't you hear the wind blow and did you know
Your stairway lies on the whispering wind
And as we wind on down the road
Our shadows taller than our souls
There walks a lady we all know
Who shines white light and wants to show
How everything still turns to gold
And if you listen very hard
The tune will come to you at last
When all are one and one is all
To be a rock and not to roll
Woe oh oh oh oh oh
And she's buying a stairway to heaven
There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are closed
With a word she can get what she came for
And she's buying a stairway to heaven, uh uh uh.
Stairway to Heaven, Page-Plant, Led Zeppelin.
¶ 29 de Dezembro de 2004

¶ 29 de Dezembro de 2004
Sabiam adorar-se, fiéis à etimologia, dirigindo-se palavras certas, vindas de todos os pontos dos seus universos - palavras nascidas no terreno fértil dos interesses e curiosidades, no caminho aprazível dos saberes e longo da experiência, no calor dos desejos, nos cumes do amor. Mas acrescentaram ao acto de adoração o brilho novo, fina poalha de oiro caindo lenta sobre o outro, tornado estrela consigo.
¶ 29 de Dezembro de 2004

¶ 28 de Dezembro de 2004
(bem cozinhada)
I’ve got you under my skin
I’ve got you deep in the heart of me
So deep in my heart, that you’re really a part of me
I’ve got you under my skin
I’ve tried so not to give in
I’ve said to myself this affair never will go so well
But why should I try to resist, when baby will I know than well
That I’ve got you under my skin
I’d sacrifice anything come what might
For the sake of having you near
In spite of a warning voice that comes in the night
And repeats, repeats in my ear
Don’t you know you fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality
But each time I do, just the thought of you
Makes me stop before I begin
’cause I’ve got you under my skin
Cole Porter
¶ 28 de Dezembro de 2004
Há coisas que se extinguem por si próprias, pelo mero decurso do tempo.Outras há que são assassinadas às mãos de quem pode ser carrasco. Em qualquer caso, da prescrição à caducidade, do apagamento suave e lento à violência atrabiliária, cabe o mesmo efeito. A dura mas utilíssima palavra fim.
¶ 28 de Dezembro de 2004

¶ 28 de Dezembro de 2004
(off the record, label ex voz do dono)
- Graficamente, o teu blog melhorou com a mudança, disse, a voz pausada, certíssima do percurso no éter, tantas vezes percorrido antes.- Os conteúdos, prosseguiu em tom levemente desalentado, são a mesma coisa de sempre.
Nada de novo a dizer - também ele continuava igual a si próprio, completamente iletrado em linguagem amorosa.
¶ 28 de Dezembro de 2004

¶ 28 de Dezembro de 2004
A mudança libertadora, em particular de prisões auto-impostas, é um tempo magnífico, potenciador, o núcleo duro da própria vida (radical, como lhe digo, e ele ri-se, o brilho nos olhos capaz de ofuscar o sol, que pouca falta faz nestes dias, capaz de esconder a lua, que bem se esforça na sua plenitude para concorrer em brilho mágico, sem sucesso). Pode ser a mudança filosófica dos pré-socráticos, pode ser a mudança renascentista, tratada num plano estético quase insuperáveldepois de Dante, Petrarca e Camões; mas pode ser também uma mudança micro, no fundo da alma, uma descoberta de si mesmo a outra luz, os preconceitos tornados muralhas vãs quase risíveis, ultrapassados pela vida a fluir. Go with the flow é um motto que às vezes só pode ser assumido, por ser o único possível face à vigorosa realidade.
Se nem todas as mudanças são felizes e vitoriosas, quer nas causas, quer nos efeitos, a verdade é que abrem sempre a possibilidade maior do crescimento, da procura da nova síntese. Há alguma perturbação associada? Sim, a revolução, como Copérnico deixou claro, significa uma volta completa, e isso não se faz sem algum alvoroço. Mas a perturbação criadora é a essência da vida, desde que respirada no esteio seguro da confiança plena. E aí, nesse reduto firme, é uma (a)venturosa dádiva dos céus.
¶ 28 de Dezembro de 2004

¶ 28 de Dezembro de 2004
Oh I'm on my way I know I am, somewhere not so far from here
All I know is what I feel right now, I feel the power growing in
my hair
Sitting on my own now by myself, everybody's here with me
I don't need to touch your face to know, I don't need to use my
eyes to see
I keep on wondering if I sleep too long, will I always wake up
the same (or so)?
And keep on wondering if I sleep too much, will I even wake up
again or something
Oh I am on my way, I know I am, but times there were when I
thought not
Bleeding half of my soul in bad company, I thank the moon I had
the strength to stop
I'm not making love to anyone's wishes, only for the light I see
'Cause when I am dead and lowered in my grave, that's gonna be
the only thing that's left of
me
And if I make it to the waterside, will I even find me a boat
(or so)?
And if I make it to the waterside, I'll be sure to write you a
note or something.
Oh I'm on my way, I know I am, somewhere not so far from here
All I know is all I feel right now, I feel the power growing in
my hair
Oh life is like a maze of doors and they all open from the side
you're on
Just keep pushing hard boy, try as you may
You're going to wind up where you started from
You're going to wind up where you started from
Cat Stevens
¶ 27 de Dezembro de 2004
Novo endereço
Conforme previamente anunciado, o
modus vai, de armas e bagagens, para outro lugar. E deixa o endereço:
www.amata.weblog.com.pt
Apareçam!
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¶ 27 de Dezembro de 2004
Reload this love
(copyright devidamente comprado a P.M., pago em suaves prestações intensas)
Tinha aprendido que o caminho da certeza se fazia sem complacência nem quebra de vontade. Só lhe faltava a noção exacta da medida do amor, para lá das roupagens espúrias, das distâncias impostas, da intransponível barreira da reserva cultivada a frio, e por tudo isso ainda tinha pronto o cavalo do medo para fugir sem demora, a entrega total negada como condição de sobrevivência. Ensaiou a fuga uma última vez, a propósito de (quase) nada, mas o caminho desfez-se ante os seus olhos espantados, toldados pelas vagas que lavavam tanto passado inútil. Olhando na noite impossível para um ponto distante algures a sul, ainda viu derreter-se o muro que a isolava de si, dissipado em nuvem e logo tornado verde esmeralda, vértice da lua cheia na maré de todas as madrugadas.
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¶ 27 de Dezembro de 2004

Carpaccio
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¶ 27 de Dezembro de 2004
Do espaço em volta
A blogosfera tem um tempo , um ritmo, um espaço de respiração próprios. Ter chegado aqui, há mais de umano e meio, numa tarde de primavera, o belo sol napolitano ainda a aquecer a pele e a ironia pronta como endereço, foi o primeiro passo de um caminho que se tornou habitual, quotidiano, de procura e partilha das palavras que rasgam a névoa do que se vive dentro. Para além disso, desse exercício gratificante e tantas vezes catártico, regenerador, de comprazimento estético, feito de meias verdades sentidas e de liberdade poética saboreada, trouxe-me amizades para dentro dos dias; o tempo e os gestos fizeram o trabalho de expurgo que lhes cabe de natura - as poucas que eram fúteis e falsas ficaram na beira do caminho, as verdadeiras cresceram e floriram. E mais ainda do que amizades, este universo levou-me as palavras no vento e devolveu-as direitas ao centro da vida.
Por mero acaso de calendário, o modus prepara-se para mudar de espaço em volta quando a numeração cristã diz que muda o ano; por uma vez, calha bem a convenção - muda-se no espaço virtual para significar mudança de dimensão global, assumindo o jogo da totalidade tornado realidade plena. Ocupada nas intendências, só sei que a mudança segue dentro de momentos.
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¶ 27 de Dezembro de 2004

Forli
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¶ 27 de Dezembro de 2004
Do mar
(em voz off)
Amor, amor
Quando o mar
Quando o mar tem mais segredo
Não é quando ele se agita
Nem é quando é tempestade
Nem é quando é ventania
Quando o mar tem mais segredo
É quando é calmaria
Quando o amor
Quando o amor tem mais perigo
Não é quando ele se arrisca
Nem é quando ele se ausenta
Nem quando eu me desespero
O amor te mais perigo
É quando ele é sincero
S. Costa / Cacaso
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¶ 26 de Dezembro de 2004

Tiziano
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¶ 26 de Dezembro de 2004
Do artifício útil 2
(ou das utilidades acessórias)
O exercício de abolição do continuum, a pretensa feitura de um corte sincrónico na vida de cada um, é outra das práticas de arrumação que, na cultura ocidental, torna esta quadra propiciatória aolhares em perspectiva sobre o(s) caminho percorrido(s) no plano estritamente pessoal. Contudo, mais do que um ano que acaba e outro que começa, o modus vivendi denota e é marcado pela existência de ciclos relativamente longos (mais arrastados do que os famigerados sete anos, oriundos de uma importação forçada da biologia sobre o todo); quando um ciclo de construção focado num sentido se esgota, há que apreciar a obra feita, a inacabada e a de projecto impossível; convirá guardar com devoção o espólio do que se viveu bem, com gosto, prazer, sucesso e alegria, desactivar a dor do que sobrou emmágoa, perda ou simples frustração, sem com isso apagar as rugas que a alma ganhou, sinal de experiência e aprendizagem; acima de tudo, importa respirar fundo e ser capaz de entrega plena a um novo ciclo onde as provas serão diferentes em género, número e grau, as oportunidades diversas e a vista sobre o mundo necessariamente outra. Les jeux sont faits. On y va.
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¶ 26 de Dezembro de 2004

¶ 26 de Dezembro de 2004
Do artifício útil
(ou das utilidades acessórias)
O hábito generalizado de aproveitar a ficção do calendário para olhar um segmento de tempo da vida, pública e privada, com intuitos sinópticos e valorativos, tem tanto de artificial como de utilitário. Apesar de assente na divisão arbitrária e "fatiada" do tempo, a verdade é que, numa época de imediatismo, preguiça mental, facilitismo e aceleração, a recusa, ainda que momentânea, da superficialidade em prol de alguma reflexão só pode fazer bem.
Na vida pública nacional, este foi o ano da incredulidade - a atitude irresponsável de um chefe de governo que, chamado a ocupar um cargo que só lhe apareceria uma vez na vida, nem se preocupou com a continuidade do "lugar de origem" (e que, já agora, tinha sido o degrau indispensável para a nova subida); depois, bem pior, um circo patético tomou o lugar do Governo, numa sucessão de dislates e contrasensos capaz de deixar o mais impávido cidadão coberto de vergonha alheia. Finalmente e em slow motion, o garante da Constituição e do próprio regime democrático (e da respectiva sanidade, supõe-se) lá entendeu agir em conformidade com os factos e permitir o relançar de alguma esperança no regresso à normalidade construtiva, civilizada, estruturada com sentido de Estado, sensibilidade, ética e bom senso. Acaba o ano com expectativas acerca do que nos vai trazer Fevereiro.
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¶ 26 de Dezembro de 2004

Andrea Mantegna
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¶ 26 de Dezembro de 2004
Da luz, do fogo
(mais recurso a interpostas palavras)
Âmbar
Tá tudo aceso em mim
Tá tudo assim tão claro
Tá tudo brilhando em mim
Tudo ligado
Como se eu fosse um morro iluminado
Por um âmbar elétrico
Que vazasse dos prédios
E banhasse a Lagoa até São Conrado
E ganhasse as Canoas
Aqui do outro lado
Tudo plugado
Tudo me ardendo
Tá tudo assim queimando em mim
Como salva de fogos
Desde que sim eu vim
Morar nos seus olhos
Adriana Calcanhoto
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¶ 26 de Dezembro de 2004

Carracci
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¶ 25 de Dezembro de 2004
Love in process
(ou a espiral vertiginosa, com vénia a João Barrento)
Quando mais próximo se fica do amor, mais necessário se torna conhecer quem nos mostrou esse território de espanto. O deslumbramento, a luz intensa e fulminante gerada pela atracção de almas e de corpos (fases por esta ordem, a segundos de distância uma da outra), embotam ou retardam a chegada do lado negro de cada um a essa nova dimensão recém criada ex novo; a contribuição "generosa" de vícios e de marcas, de insuficiências e de excessos é condição necessária (mas obviamente não suficiente - uma relação amorosa não é uma terapia, embora possa e deva ser regeneradora) ao evoluir da paixão para uma relação amorosa de sentido pleno e total, de encontro e de partilha. A entrega não é apenas do brilho, mas das pequenas/grandes trevas que nos habitam de modo mais ou menos enquistado, mais ou menos cancerígeno, mais ou menos matricial. Alcançar o elo seguinte da espiral pode então ser duro, difícil de enfrentar, mas é útil e tão imprescindível como qualquer dor de crescimento - o esqueleto só atingirá a sua fase adulta por meio de saltos, e, numa relação a dois, essas mudanças não representam apenas alterações quantitativas, mas também qualitativas: (re)qualificam a relação, dão a maior contribuição possível para a pertença - mostram cada um com o seu wild side, e expõem-no ao olhar do outro. Se esse olhar mantiver a luz, era mesmo amor.
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¶ 25 de Dezembro de 2004
Lorrain
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¶ 25 de Dezembro de 2004
(Des)construções
Há em cada momento uma possibilidade letal, uma arma branca escondida na bainha das palavras, uma gestualidade quase inocente, quase branda, que mata e corrompe, seca e amachuca sem freio. Há em cada segundo que passa uma escolha iminente entre ser feliz ou perder-se, amar ou partir, querer ou deixar cair. É essa intensa, imensa liberdade, que traça a obscura linha de água a que chamamos sorte.
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¶ 24 de Dezembro de 2004

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¶ 24 de Dezembro de 2004
Lost wishes
(love in vain)
Wish what was not could have been. Wish what could be really was. Wish I could learn how to live without wishing. Wish i could live without love. Without this wish in vain. Without this vain wish.
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¶ 24 de Dezembro de 2004

Benvenuto di Giovanni
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¶ 24 de Dezembro de 2004
Noite, noctem, nix
(de natal)
Numa família sem prática religiosa, o natal é um momento de manifestações de afecto em actos de consumo mais ou menos controlados, mais ou menos (i)núteis, mais ou menos simbólicos. Há ainda o aspecto do jantar de hoje, onde o número de convivas vai diminuindo pela força inexorável do tempo, antes que possa expandir-se outra vez em novos círculos, com outros centros, e onde seremos nós a periferia. É um momento de sensibilidade à flor da pele, confronto com a memória, saudade pura e dura de outros natais, outras noites, outros jantares. É o receiomal gerido da dor. É alto este preço que se paga pela herança cultural onde, por acaso, se nasceu. Mas, como tudo, passa. É só aguentar, respirar fundo, e passa. Garantido. E um dia não voltará de todo.
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¶ 24 de Dezembro de 2004

Rodin
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¶ 24 de Dezembro de 2004
Da transmutação
Amar sem ser possível viver inteira nesse universo, colocado à distância intangível do retorno pleno, tinha sido a sua experiência máxima na aprendizagem de vida. Depósito de expectativas no mínimo, exigência no máximo, impunha-se ele, farto de uma vida nómada no deserto disfarçado de sexo disfarçado de amor, eco-sistema letal para a vida sensível. Acabaram a cultivar em conjunto um campo de certezas, pleno de frondosas expectativas tão elevadas quanto as exigências, corpos celestes dotados de luz própria e cintilante movendo-se no espaço da descoberta em contínuo. Olhando com atenção para um ponto distante, ela ainda viu derrubado o muro que tinha construído contra si com determinação defensiva, tornado lago verde entre o dia e a noite, dissipado em nuvem à luz da madrugada.
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¶ 24 de Dezembro de 2004

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¶ 24 de Dezembro de 2004
Follow me
No meio da viagem faustosa pelas palavras, pontes necessárias e seguras entre eles, acontecia-lhe ver-se invadido pela dúvida, estranha e inquietante, e perguntar-se se estava mesmo a segui-la, ou se a perdera de sentido num labirinto qualquer da comunicação. Afligia-o esta possibilidade improvável, para logo recordar que, mesmo se, por momentos, estavam sujeitos à translucidez ou até à opacidade fruto da humana condição, tinham gravado na memória o mapa intenso e luminoso do que os unia para voltarem juntos à estrada.
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¶ 23 de Dezembro de 2004

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¶ 23 de Dezembro de 2004
Sabedoria relativa
Em louvor da persistência, diz o povo que "água mole em pedra dura, tanto dá até que fura". Não será sempre assim: há a água evaporada no processo longo de mais, há a que se perde, entornada sem proveito, porque "tantas vezes vai o cântaro à fonte, que se quebra a asa". Certo, certíssimo, é que de pouco ou nada vale chorar sobre o leite derramado, metáfora ajustável ao tempo perdido.
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¶ 23 de Dezembro de 2004

Watteau
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¶ 23 de Dezembro de 2004
Por interposta voz
(mais Bethânia, para deixar descansar as palavras próprias)
De repente fico rindo à toa
Sem saber por quê
E vem a vontade de sonhar
De novo te encontrar
Foi tudo tão de repente,
Eu não consigo esquecer
E confesso tive medo,
Quase disse não
Mas o seu jeito de me olhar,
A fala mansa meio rouca
Foi me deixando quase louca
Já não podia mais pensar
Eu me dei toda para você
E meio louca de prazer
Lembro teu corpo no espelho
E vem o cheiro de amor,
Eu te sinto tão presente
Volte logo meu amor
Maria Bethânia
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¶ 22 de Dezembro de 2004
Infinito desejo
(pura discrição descritiva, frente a tanto mar)
Ah! Infinito delírio chamado desejo
Essa fome de afagos e beijos
Essa sede incessante de amor
Ah! Essa luta de corpos suados
Ardentes e apaixonados
Gemendo na ânsia
De tanto se dar
Ah! De repente o tempo estanca
Na dor do prazer que explode
É a vida, é a vida, é a vida
E é bem mais
É esse teu rosto sorrindo
Espelho do meu no vulcão da alegria
Te amo, te quero meu bem
Nao me deixe jamais
E eu sinto a menina brotando
Da coisa linda que é ser tão mulher
Oh santa madura inocência
O quanto foi bom e p'ra sempre será
E o que mais importa
É manter essa chama até quando eu não mais puder
E a mim não me importa nem mesmo
Se deus não quiser
Maria Bethânia
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¶ 22 de Dezembro de 2004

Tiziano
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¶ 22 de Dezembro de 2004
Tempus
As noites e os dias que tomavam para si só lhes serviam para devorar o tempo. Não podiam parar a ígnea fusão, fulminados à luz imprevista do que tinham julgado impossível fulgor.
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¶ 22 de Dezembro de 2004
Direito de autor
(das palavras)
De repente, as palavras dela não lhe pertenciam em exclusivo - nasciam em frases partilhadas, em risos cúmplices, em intensidades desconhecidas. Eram um vento novo que soprava alegria e conforto, êxtase e serenidade. Eram palavras deixadas por um beijo capaz de acordar a vida.
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¶ 21 de Dezembro de 2004
Pressentimento
Durante anos, escreveu muito sobre o lado negro do amor - a solidão do desencontro, a mágoa da ausência de retorno pleno, a rebeldia, a recusa perante a resignação aconselhada, a fome do verbo, os pequenos gestos de desconsideração, a visão estilhaçada, parcial, da mulher que se sabia. Raramente o sexo surgia nas suas palavras - tinha a suspeita permanente de que a luz fulgurante desse universo seria um dia uma realidade outra, plena, diversa do prazer dos corpos longe das almas. A realidade total, pressentia, seria bem diferente da parte que conhecia. A vida deu-lhe razão.
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¶ 21 de Dezembro de 2004
Velocidade de libertação
(com vénia a Paul Virilio)
Olhavam-se e as palavras floresciam. Suspendiam a custo a sofreguidão e tentavam fixá-las, apanhá-las no ar como se fossem pássaros e prendê-las no registo do papel, mas a torrente do desejo arrastava-as inexoravelmente para o fundo da memória, longe dos corpos em chamas.
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¶ 20 de Dezembro de 2004
Descoberta
"Uma só coisa proibida - amar sem amor."
Vinicius bem tinha deixado enunciado o mandamento, mas para eles era apenas uma bela frase poética, e não faziam caso, até mergulharem na maré viva de se amar amando .
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¶ 20 de Dezembro de 2004

Carpaccio
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¶ 20 de Dezembro de 2004
Self betrayal
Nunca conseguiu dizer que a amava porque era orgulhosa e perdidamente fiel à verdade que tinha inventado.
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¶ 18 de Dezembro de 2004
Vida(s)2
A vida não é linear, nem tem um curso necessariamente progressivo. Poucas realidades, individuais ou colectivas, podem de resto conformar-se com uma ideia de evolução positiva sem retrocessos, apesar de algumas aparências em contrário. A vontade de serlivre não garante um caminho em linha recta rumo à autonomia físicae espiritual, tal como o desejo não implica a existência do amor. Mas há quase sempre uma forte probabilidade de a inversa ser verdadeira.
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¶ 18 de Dezembro de 2004
Simply on air
Diziam-lhe e repetiam com tanta convicção que só podia ser verdade: tinha passado todo o dia no ar, e teria ainda uma noite - um avião após outro, o primeiro quase perdido por exaustão e abandono ao sonho povoado, depois a luz trocada de sítio, os trópicos mudados de nome. Mas custava-lhe a crer que voasse na distância fulminante, de tal forma sentia aquela ausência, a leveza apagada de repente, a prisão à terra imposta por se ver reduzida a si, no espaço tornado enorme sem aviso. Rezava-lhe o sangue que no ar tinha já estado por muitos dias e noites, sem peso e sem esforço, suspensa na doçura de um olhar.
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¶ 18 de Dezembro de 2004
Velocidade da luz 3
(tempos de ausência aparente)
O tempo irreal dos outros tinha desistido de os acompanhar. Cavalgavam luas e sóis sem pressa, alucinados pelo olhar reflectido no espelho do outro, na urgência da entrega total. Esqueceram outros corpos, outras palavras, dores antigas, e até mesmo gestos e risos que a lenda afirmava terem existido nas suas vidas passadas ficaram dissolvidos em éter. Inconscientes dos limites, corriam sérios riscos de asfixia pela simples ausência da respiração do outro, sentida à distância de muitos milhares de quilómetros.
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¶ 18 de Dezembro de 2004
Velocidade da luz 2
Encontraram-se porque era suposto, a rota de aproximação estava traçada há muito sem que nenhum dos dois o soubesse. A força da atracção superou a gravitas do destino aparente e atirou-os para o centro de um vulcão desconhecido. O incêndio das palavras chegou e propagou-se aos corpos sem que houvesse nada a fazer. Afastaram-se do mundo. Despiram a desolação à velocidade da luz.
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¶ 17 de Dezembro de 2004
Velocidade da luz
Pensava naquele amor e contava os dias pelos dedos. Parou de repente - não lhe parecia possível continuar a usar a escala que sempre lhe tinha servido. Aquela sucessão de momentos tinha tido a força poderosa de outra dimensão, as semanas pareciam meses condensados até ao limite. Lembrou-se do instante, num ponto longínquo, em que aquela voz baixa lhe revelou o essencial: durasse o que durasse a corrente única onde tinham mergulhado, já tinha valido a pena. E um calendário novo, cósmico e esplêndido, tomou-lhe conta do tempo.
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¶ 17 de Dezembro de 2004
Vida(s)
O olhar bastava. A força poderosa do amor passava em clarão, rasgava o espaço ínfimo de permeio que as leis da física impunham, derretia a lembrança de um tempo sem essa luz que lhes recriava o mundo. Mas, ainda assim, a palavra sobrevoava-lhes os corpos enlaçados, enredados, enlevados na esplêndida alquimia que os consumia em vida.
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¶ 14 de Dezembro de 2004

Piero della Francesca
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¶ 14 de Dezembro de 2004
Aviso
O Modus andará itinerante (ou bandeirante, melhor dizendo), por ossos do ofício, durante alguns dias.A escrita vai oscilar na medida do possível.
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¶ 14 de Dezembro de 2004
Notícia
(acerca de um tremor de terra)
Earth Tremors Felt in Missouri
The quake last night was nothing personal,
you told me this morning. I think one always wonders,
unless, of course, something is visible: tremors
that take us, private and willy-nilly, are usual.
But the earth said last night that what I feel, you feel;
what secretly moves you, moves me.
One small, sensuous catastrophe
makes inklings letters, spelled in a worldly tremble.
The earth, with others on it, turns in its course
as we turn toward each other, less than ourselves, gross,
mindless, more than we were. Pebbles, we swell
to planets, nearing the universal roll,
in our conceit even comprehending the sun,
whose bright ordeal leaves cool men woebegone.
Mona Van Duyn
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¶ 14 de Dezembro de 2004
Liberdade (d)escrita
"A escrita, que lida com o que acontece, foge através dos nossos dedos como o tempo e não apenas o tempo durante o qual a escrita foi escrita, durante o qual a vida parou."
Elfriede Jelinek
Nota de leitura: a vida pára e dispara, corre e discorre, e a escrita tenta mas não acompanha mais do que a espuma. Como sabia Wittgenstein, as palavras não tocam no que é maior do que a vida, zona interdita onde só se chega com o corpo deslumbrado pela luz incendiada no fundo da alma.
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¶ 13 de Dezembro de 2004

Tiziano
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¶ 13 de Dezembro de 2004
Modo(s)
Ela tinha o hábito organizado da fuga sempre que a realidade lhe mostrava uma curva mais fechada. Estava habituada a que o amor fosse nada, ou outra coisa, o que vai dar ao mesmo. Quando chegava de longe um portador de oiro, desdenhava do brilho; quando era incenso que vinha, tossia até as lágrimas lhe toldarem a visão, e mesmo o perfumeda mirra lhe parecia uma qualquer poção barata e desprezível. Tinha os sentidos bem fechados num quarto de que não tinha a chave e durante muito tempo enclausurou-se num mundo seguro e interessante, onde tinha a confortável certeza de gostar do que tinha sem nunca poder ter o que desejava. Um dia, sem esperar, a terra abriu-se e devorou as paredes que a rodeavam com firmeza gentil, e descobriu, à luz pungente de um olhar em chamas, que a sua vida era feita de tempo perdido. Nunca mais foi vista do mesmo modo.
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¶ 13 de Dezembro de 2004

Van Gogh
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¶ 13 de Dezembro de 2004
Leitura(S)
Liam-se as palavras com sofreguidão, as novas e as antigas, as destinadas e as predestinadas, as certas e as desvairadas. Olhavam-se nos olhos com intensidade desconhecida, tocavam-se e as mãos traziam lume que matava a sede. Faziam gestos que saravam feridas, colavam os corpos em desmesura para finalmente descansarem na margem inédita do caminho sobre as águas. Sacudiam as areias movediças que tinham ficado de outras noites menos claras, de outros dias mais cortantes, sem complacência nem cedências vãs. Sabiam um do outro mais do que tinham na memória, e corria o rumor que, sem contar com as aparências, eram tão diferentes como duas gotas de água.
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¶ 13 de Dezembro de 2004

Carpaccio
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¶ 13 de Dezembro de 2004
De novo
Ama-se sempre - ou então não lhe chamemos amor, disse, os dedos longos voando sobre as letras, compondo palavras em forma de labareda, escrita ditada dentro do espaço cada vez menos vazio. Sabia do que falava, tinha muita estrada percorrida nos territórios avessos da vida, a cor dos olhos marcada pela esperança às vezes tão distante que lhe doía. Enredado no labirinto onde se esgotara em tempos, nunca se perdeu de si mesmo, imenso e íntegro, corajoso e deslumbrante. Às vezes, por discreto pudor, parecia apenas um homem.
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¶ 13 de Dezembro de 2004

Bronzino
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¶ 13 de Dezembro de 2004
Fragilidade
(ávida, a vida)
A consciência da fragilidade, essência da humana condição, é uma queda salvífica dentro da realidade possível.
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¶ 12 de Dezembro de 2004
Luz
Tinham visto o céu ganhar o peso do dia a escoar-se, o sol a descer sem se mostrar, oculto por traços púrpura em veludo azul. Quando voltaram a si, devorados pela forte alquimia dos corpos, a obra ao negro da noite tinha chegado, coberto o mar, dado descanso aos pássaros, desvendado estrelas e planetas de nomes antigos. Afastaram-se com esforço e cuidado milimétricos, semvontade do mundo nem sombra de dúvida acerca do que os movia. A noite durou o que quis, muito menos do que o desejo que os protegeu, do que o espelho lhes mostrou a medo, num rubedocrescente. Quando o anil trouxe cor às ondas e a manhã não se deixou adiar, o prazer da alba dourou-lhes a simetria do sorriso novo a que chamaram seu.
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¶ 12 de Dezembro de 2004

Giorgione
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¶ 12 de Dezembro de 2004
Do amor
(outra dimensão)
"O amor? Acontece quando alguém se reconhece noutro, até ao ponto de perder a certeza da sua indentidade. Até já não saber se tem uma identidade. Acontece por tudo e por nada. Em tudo e no nada. Num movimento de olhos ou no gesto suspenso de uma mão. Num beijo terno, em muitos beijos imaginários. Numa palavra que se diz, em palavras que se pressentem."
João Lopes, in Uma pele contra outra pele, Diário de Notícias de 11/12/2004.
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¶ 12 de Dezembro de 2004

Ghirlandaio
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¶ 12 de Dezembro de 2004
Acordo
(de si)
Acordavam e estavam longe de si mesmos, deitados na memória do outro, enlaçados sem sombra de vidas passadas, sem reminiscências que não fossem as palavras com que se davam em contos breves para percorrer a vida antes, ou o que sobrava dela preso a outros dias. Depois, lentamente, lembravam-se do próprio desejo, do cansaço que lhes prendia o corpo à vista da alma, do prazer que não existia sem o infinito olhar que tinham visto com espanto a mudar de tom da noite para o dia.
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¶ 12 de Dezembro de 2004

Breenbergh
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¶ 12 de Dezembro de 2004
Dimensão
Foi rever o filme que a tinha fascinado semanas antes, quando ainda vivia noutra dimensão. As imagens sucederam-se entrecortadas, a música soava de outro modo, até a história era diferente. Viu pequenos excertos que reconheceu, como quem se lembra de um passado muito distante. Saiu envolta na mesma nuvem em que tinha entrado, sem reconhecer o lugar, o espaço em volta tornado estranho à luz que a tomava.
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¶ 12 de Dezembro de 2004
Querer
"Querer, se não é uma espécie de desejar, tem que ser a própria acção. Não pode parar diante da acção."
Ludwig Wittgenstein, in Investigações filosóficas, ed. Fundação Calouste Gulbenkian.
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¶ 12 de Dezembro de 2004

Okun
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¶ 12 de Dezembro de 2004
Ode
(entre a noite e o dia)
Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.
Que a flama que se acende
Alto, tanto alumia
Que, se o nobre desejo ao bem se estende
Que nunca viu, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva cor,
Noutra espécie melhor que a corporal.
(...)
Luís de Camões
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¶ 11 de Dezembro de 2004

Paolo Uccello
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¶ 11 de Dezembro de 2004
Do verde
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendeis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.
Luís de Camões
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¶ 11 de Dezembro de 2004

Tiziano
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¶ 11 de Dezembro de 2004
From enchantment to fulfilment
"It was a work of full as great a weight,
And did require the self-same power,
Which did frail humankind create,
When they were lost, them to restore."
Thomas Shadwell
Ainda a coisa para além do nome, tendo-o embora.
Purcell, Odes for Queen Mary, dir. Gustav Leonhardt, ed. Virgin.
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¶ 11 de Dezembro de 2004

Guardi
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¶ 11 de Dezembro de 2004
Dificuldade
De todas as palavras faziam frases que queriam gravar em fogo, de todas as palavras galgavam gestos poderosos que os colavam no sopro da febre. As horas escorriam, escoavam-se de repente, breves e imensas, e transbordavam de sentido. A vida amansava na margem dos corpos, a noite chegava e partia no voo das gaivotas, ao som cavo, profundo e maior do mar que se acalmava agora, irrompia depois, e voltava a quebrar-se sem remédio naqueles braços. Era difícil saber de onde lhes vinha tão desmedida alegria.
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¶ 11 de Dezembro de 2004

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¶ 11 de Dezembro de 2004
Ocorrências
(recentes)
Embrulharam a noite no dia mergulhando na praia imensa daquele lago salgado que traziam dentro. Sucediam-se as ondas - de prazer umas, de desejo outras. À vezes sobrepunham-se e a isso chamaram amor.
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¶ 10 de Dezembro de 2004

Carpaccio
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¶ 10 de Dezembro de 2004
Esplendor
"Not any one such joy could bring,
No, no, not that which ushers the spring.
That of ensuing plenty hopes does give,
This did the hope of liberty retrieve."
Thomas Shadwell
Beleza pura, fruto de dádiva permanente, coisa para além do nome.
Purcell, Odes for Queen Mary, dir. Gustav Leonhardt, ed. Virgin.
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¶ 10 de Dezembro de 2004

Okun
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¶ 10 de Dezembro de 2004
Manhã de bruma
Passou a correr pelo sono breve e invadido de sonhos que pareciam ruas movimentadas e íngremes, uma cidade dentro da alma a povoar o espaço em volta, à procura da manhã, a estender-se para o dia, a procurar o verde nos olhos, a enredar-se nas mãos, no corpo, na simetria feroz e ávida,já desmanchada pela ausência de distância.
O que queria, mais do que perder-se na proximidade maior em que se anula o medo e se fere o tempo, negando-o? Queria o sabor da intensidade febril como se quer num romance, num poema, num filme, numa canção esplendorosa. Queria a vida como se quer na ficção intensa que nasce no fundo da realidade última dos dias que fomos, do dia que somos, sabendo que amanhã é o que sair da vontade, moldada pelas circunstâncias da álea, o capricho dos deuses à espreita sobre os passos certos dos homens.
De que falamos quando falamos de amor, perguntava Carver, esse guardião de palavras que só as deixou sair, austeras e perigosas, para dentro da alma de quem as devora: fique a saber, no olimpo da memória, que falamos de rios que se juntam um dia antes do mar.
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¶ 10 de Dezembro de 2004

Seurat
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¶ 10 de Dezembro de 2004
Soon....
"Now does the glorious day appear,
The mightiest day of all the year."
Thomas Shadwell
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¶ 10 de Dezembro de 2004

Michelozzo
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¶ 10 de Dezembro de 2004
Amplitude(s)
Pegou na amizade oferecida com gentileza e atenção, lavou-a com a torrente de mil lágrimas inúteis, secou-a ao sol durante alguns milhares de dias, dobrou-a com carinho ao longo de centenas de luas e viu, com alegria e surpresa, que era linda, aprazível, encantadora e domesticável. Sem esperar, guardou-a numa divisão minimalista de puro cristal onde coube sem o menor esforço. Do outro lado da vida, o amor sorria, imenso, incapaz de ser contido em tão pequena forma.
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¶ 9 de Dezembro de 2004

Uccello
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¶ 9 de Dezembro de 2004
Da lâmina
(sempre)
Dizer da realidade é ficar perto, apenas perto, da verdade possível. O momento é essa verdade possível, a imensidão autêntica, na sucessão dos moments and gaps - o continuum pertence à física, não à biologia, disse. A perversão das certezas é uma faca de gume afiadíssimo. Sempre faz falta, afinal. É preciso o arco infinito para dar a volta aos dias, como nunca é indispensável para deixar fugir os sonhos que se escapam devagar, furtivos, da noite escura da alma.
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¶ 9 de Dezembro de 2004
Sempre
A mais perigosa das palavras, sempre. A que garante e pode trair, a que ilumina e pode cegar em vão. Mais letal do que nunca, essa promessa negativa que se sabe à partida ser interdita em absoluto pela natureza mutante das coisas. Sempre é uma palavra infinita numa vida ameaçada, um golpe da asa que ignora as circunstâncias com olímpica e benévola indiferença. Sempre é a única palavra que nunca devia ser proferida. A bem da realidade contingente e da verdade possível.
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¶ 9 de Dezembro de 2004

Uccello
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¶ 9 de Dezembro de 2004
Minimalismo
"Faith" is a fine invention
When Gentlemen can see -
But Microscopes are prudent
In an Emergency.
Emily Dickinson
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¶ 8 de Dezembro de 2004

Van Gogh
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¶ 8 de Dezembro de 2004
Da simetria
Tinham aprendido que a perfeição não existia, e nema queriam, porque seria gélida; a combustão do sangue era viva, mas deixada com ardor nos limites do possível. Entre a noite e a manhã, entre a lua e o sol, entre o céu e a terra, caminhavam sobre a linha d' água simétrica que se desenhava no ar, o tempo e o espaço sem medida para o espanto.
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¶ 8 de Dezembro de 2004

Cocteau
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¶ 8 de Dezembro de 2004
Da tolerância e seus limites
(ou pequeno manifesto contra o uso do vitríolo)
Durante muitos anos, usou de uma tolerância quase desmedida para com todas as pessoas a quem estimava, e eram muitas. Tolerava a vaidade tonta e a futilidade, a brutalidade disfarçada de franqueza, a deselegância convencida, até a pouca cultura manipulada com habilidade; só nunca aprendeu a tolerar a mentira, e sobretudo a intriga gratuita destinada a massacrar quem estava perto sem desconfiança. Aos poucos, a tolerância começou a circunscrever-se a quem valia a pena, a encolher na justa medida da inutilidade emtratar com estima quem usa o vitríolo da maldade sobre os outros com displicência, egoísmo espúrio e imaturidade. O tempo passou a render-lhe muito mais.
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¶ 8 de Dezembro de 2004

Cocteau
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¶ 8 de Dezembro de 2004
Existência(s)
Olhava com curiosidade perplexa a totalidade que lhe era oferecida à distância de um gesto firme, de um corpo, de uma palavra solta, forte - só uma palavra, e o sopro leva-lhe a alma como uma folha dourada até pousar naquelas mãos, no calor delas que a invadia logo, nos lagos salgados daqueles olhos onde mergulhava sem medo, sem frio, sem a dor da distância imposta pelo excesso de razão. Não sabia sequer se era amor ou paixão ou desejo o que via, ou se era tudo isso ou menos, ou mais, ou outra coisa que nome não tinha, o que brilhava tão perto.
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¶ 8 de Dezembro de 2004

Thomas Gainsborough
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¶ 8 de Dezembro de 2004
Sono
O amor tirava-lhe o sono como uma luz deslumbrante que não conseguia apagar.
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¶ 8 de Dezembro de 2004

Pippo Rizzo
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¶ 8 de Dezembro de 2004
Toque
O dinheiro é tempo, disse, o toque de Midas nas palavras, deixando oiro em pó aos pés da mulher sorrindo.
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¶ 7 de Dezembro de 2004

Modigliani
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¶ 7 de Dezembro de 2004
moments & gaps
And yet, because thou overcomest so,
Because thou art more noble and like a king,
Thou canst prevail against my fears and fling
Thy purple round me, till my heart shall grow
Too close against thine heart henceforth to know
How it shook when alone. Why, conquering
May prove as lordly and complete a thing
In lifting upward, as in crushing low!
And as a vanquished soldier yields his sword
To one who lifts him from the bloody earth,
Even so, Beloved, I at last record,
Here ends my strife. If thou invite me forth,
I rise above abasement at the word.
Make thy love larger to enlarge my worth.
Elizabeth Barrett Browning
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¶ 6 de Dezembro de 2004

Cranach
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¶ 6 de Dezembro de 2004
Never a dull moment...
Sweet love, renew thy force! Be it not said
Thy edge should blunter be than appetite,
Which but today by feeding is allayed,
Tomorrow sharpened in his former might.
So, love, be thou, although today thou fill
Thy hungry eyes, even till they wink with fulness,
Tomorrow see again, and do not kill
The spirit of love with a perpetual dullness.
Let this sad interim like the ocean be
Which parts the shore where two contracted new
Come daily to the banks, that, when they see
Return of love, more blest may be the view;
As call it winter, which being full of care
Makes summer's welcome thrice more wished, more rare.
William Shakespeare
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¶ 6 de Dezembro de 2004

Van der Weyden
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¶ 6 de Dezembro de 2004
A difícil pergunta
Como se recusa o amor?, perguntavas,
o sorriso brincando ao sol com as romãs.
Eugénio de Andrade
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¶ 5 de Dezembro de 2004

Gauguin
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¶ 5 de Dezembro de 2004
Do amor
(magnífico presente da Márcia, leitora antiga e fiel do Modus, fazendo a ponte por sobre este pequeno mar, tão menor do que a língua que falamos)
Direi do amor não tudo, mas o quando -
o amor só sei dizer o amor sentindo.
Direi mesmo sabendo repetindo -
o amor se vai no dito renovando.
Eu sinto quando amor se perco o mando,
se tudo o que eu disser, disser sorrindo.
O amor se dá somando e dividindo,
na sensação de estar multiplicando.
O amor é quando o quando é desse jeito:
não há saber da causa, só do efeito,
não tendo, desse efeito, seu comando.
Te amo em bando - tantos que me sinto
(em menos não consigo ou me consinto),
pois todas tu resumes: és meu quando.
Antoniel Campos
Direi do amor o tudo e o mais além
que amor só sei sentir se mergulhando
inteira nos seus mares, me entregando
o amor do ato de amar não se abstém.
Eu sei do amor no quando e no também
se perco o prumo ou se me abandonando
no amor eu ardo em fogo ou se é brando
afago o que me invade e entretém.
O amor é tudo quando é desse jeito:
sem causa, sem razão, sem outro feito
além de ser eterno vai e vem.
Te amo quando longe estou ou perto
(que tantas sou e não me sei ao certo)
pois tudo em ti resumes: e és além.
Márcia Maia
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¶ 5 de Dezembro de 2004

Van Dyck
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¶ 5 de Dezembro de 2004
Poema
(promessa matinal)
Basta o amor: embora o mundo se esteja a esvair
E os bosques sem voz mais do que a voz do queixume,
Embora o céu tão escuro não deixe baços olhos descobrir
As giestas e boninas belas a florir em baixo dele,
E os montes se tomem por sombras e negro assombro o mar,
E este dia corra um véu sobre feitos passados,
Nem assim lhe irão tremer as mãos, os pés tropeçar;
O vazio não cansará, nem o medo mudará
Estes lábios e estes olhos do amado e do amante.
William Morris, trad. Helena Barbas, in Rosa do Mundo, ed. Assírio & Alvim.
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¶ 5 de Dezembro de 2004

Jan Matejko
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¶ 5 de Dezembro de 2004
Pretérito (im)perfeito
Ter ficado desiludida de um amor que se viveu a solo, ante o olhar magnânimo, agradado e afectuoso, levemente condescendente, de quem não tinha o mesmo para dar em eterno retorno, objecto impossível anunciado e catalogado com rigor e honestidade férreos desde o primeiro instante, não é (nem pode ser...) a mesma coisa que desacreditar do amor, essa probabilidade à espreita em cada sorvo de ar, em cada batida cardíaca, em cada manhã rósea, em cada lua (japonesa ou turca), presente ou pressentida. O amor diz-se, (d)escreve-se, faz-se. Descobre-nos mesmo se nos esquivamos, toma-nos de assalto contra a razão, em má altura, e dá-nos guarida se fugimos da morte que é a sua negação plena. O inevitável não é feito da mesma massa que o inadiável: o amor adia-se querendo, e a morte não se evita de todo. Mas só no fim.
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¶ 5 de Dezembro de 2004

Tiziano
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¶ 5 de Dezembro de 2004
Every Day
War is no longer declared
but continued.The unheard-of thing
is the everyday . . . .
The uniform of the day is patience,
its decoration the humble star
of hope worn over the heart.
Ingeborg Bachman
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¶ 5 de Dezembro de 2004

Aelbert
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¶ 5 de Dezembro de 2004
Da (im)precisão
(conceptual)
O tempo nunca se perde, tal como a juventude ou a beleza - gastam-se, simplesmente, desaparecendo para sempre no mistério da vida. Ganha-seo amor, a felicidade maior de outro olhar, o conhecimento, a sabedoria. Perde-se a esperança, o poder, a ilusão, a alegria - e aqui não há Lavoisier que nos valha: algumas coisas ganham-se do nada, outras perdem-se em definitivo, e nem tudo se transforma. A entropia existe mesmo.
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¶ 4 de Dezembro de 2004

Carpaccio
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¶ 4 de Dezembro de 2004
Será assim?...
(ou da dúvida metódica)
I love you, I am no more
There's a kitten raging at the back door
And I don't know if the kids have eaten
It seems there was some kind of sunset
But I wouldn't know if I was breathing
I wouldn't know if I was breathing
On the radio they said
That the dawn was red
That clouds have feelings
I thought the sky was dead
But I wouldn't know if the stars were bleeding
If the trees were weeping
If the moon was sleeping
If it was peace time of a nuclear war
I love you, I am no more
Anita Lane, in Sex o'clock, ed. Costumm.
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¶ 4 de Dezembro de 2004

Cezanne
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¶ 4 de Dezembro de 2004
Desejo
(cuidado com o que se pede...)
"The words I love you till the day I die
The self deception that believes that lie
Wish I were in love again."
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¶ 4 de Dezembro de 2004

Avercamp
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¶ 4 de Dezembro de 2004
Crise
(do grego krísis)
"Acto ou faculdade de distinguir; acto de escolher, escolha, eleição; acto de separar, dissentimento, contestação; contestação em justiça, processo; acto de decidir; decisão, julgamento (de uma questão, de uma dúvida); julgamento de luta, de concurso; concurso, decisão judiciária, julgamento, condenação; o que resolve qualquer coisa, solução, decisão, resultado (de guerra); fase decisiva de doença, crise; explicação, interpretação de sonho".
José Pedro Machado,
in Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, ed. Livros Horizonte.
Um momento de crise interior, mesmo (sobretudo?) se desencadeado por factores exógenos, é uma experiência tão dolorosa quanto útil, variando com a gravidade daquilo que a crise afecta ou põe em causa. Tudo ganha uma nova perspectiva, uma dimensão diferente - frustrações ou mesmo inquietações que pareciam profundas e abissais tornam-se quase fait divers, o certo passa a interrogado, a protecção aparente desmorona-se, os laços verdadeiros e perenes reforçam-se em cordas de aço. A crise leva o acessório como a maré vazante arrasta os restos de conchas, as algas secas, os irrelevantes peixes mortos deixados depois de puxadas as redes. Só o essencial resiste, com a constância do rochedo, e só a ele se pode trepar na ânsia de escapar à fúria das ondas, mesmo se as arestas cortam a liberdade das mãos, mesmo se os salpicos ainda encharcam o caminho. A separação é nítida e as escolhas fazem-se por si mesmas. Excelente ocasião para aprender, a crise.
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¶ 4 de Dezembro de 2004

Vouet
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¶ 4 de Dezembro de 2004
On The Critical Attitude
The critical attitude
Strikes many people as unfruitful
That is because they find the state
Impervious to their criticism
But what in this case is an unfruitful attitude
Is merely a feeble attitude. Give criticism arms
And states can be demolished by it.
Canalising a river
Grafting a fruit tree
Educating a person
Transforming a state
These are instances of fruitful criticism
And at the same time instances of art.
Bertolt Brecht
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¶ 3 de Dezembro de 2004

Breenbergh
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¶ 3 de Dezembro de 2004
Falta de aviso
Falta, em português, o aviso retumbante da queda que outros povos, mais cientes, colocaram na expressão com que designam a fatalidade do enamoramento: fall in love, tomber amoreux, ao menos têm a vantagem de alertar para essa perda de equilíbrio, que pode ser leve ou fatal, magoar ou apenas sentida como um pouco incómoda, quase ridícula. Em português, só assoma o eruditismo escondido do pathos, o sofrimento mais do que provável quando a paixão se sumir e não ficar o amor no seu lugar tornado deserto agreste.
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¶ 3 de Dezembro de 2004

Avercamp
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¶ 3 de Dezembro de 2004
Da confusão
(assaz comum, entre amor e paixão)
"Contudo, sentia-se agora como alguém que abandona o teatro depois de qualquer peça trágica, gasta, magoada, mas livre para enfrentar o mundo com um apetite renovado. (...) Fosse como fosse, os dados estavam lançados. Compreendia agora nunca ter sentido esta temeridade no que respeitava ao amor, mas não tinha quaisquer dúvidas de que, subitamente, inesperadamente, se apaixonara de forma genuína."
Iris Murdoch,
in O unicórnio, ed. Europa-América.
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¶ 3 de Dezembro de 2004

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¶ 3 de Dezembro de 2004
Há um ano
(com destinatário certo e impermeável, então e sempre)
Os dias virados ao contrário, em sentido perverso, contra a corrente da vida, como uma ampulheta desordenada e louca, desprezando a gravidade como coisa menor, pequena vaidade da matéria caprichosa. O silêncio a cortar-me os pulsos invisíveis com o gume de um sorriso incerto, itinerante e impessoal. Tantos passos dados para ir a lugar nenhum, para cruzar a soleira de uma porta fechada, fechada sempre, entreaberta para o corpo, a alma espantada a chicote para bem longe, as luzes deslizantes no rio à vista, mostradas com indiferença cortês a qualquer olhar na mesma varanda suspensa sobre o cenário de comédia sem arte. Não é isso que quero, disse brevemente, ao longo de uma década com sabor a século. Não é a magia doce e sem razão, solta da alma, a bordar o corpo. Não é o espelho de puro prazer nos olhos onde não há mais do que o gosto de estar vivo, a comprar mais vida ainda. Não é isso, não pode ser só isso. Quero os sentidos como flâmulas do amor, o amor como sentido da totalidade. O olhar em volta, iluminado, a lua em todas as fases na mesma noite única. Quero o voo das tuas palavras que não chegam nunca, que não me salvam nem me matam, que não são porque não as conheces sequer. Quero o lume aquático da desgraça esmagado a meus pés em glória. Quis-te.
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¶ 2 de Dezembro de 2004

Van Gogh
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¶ 2 de Dezembro de 2004
A ousadia
(belo presente de A.)
Destino
É preciso arranjar outros motivos
outras flores e astros
Outras abertas.
Entre a chuva cansada de um Outono
que não sabe já
qual é a terra certa
É preciso pensar outras imagens
outras fissuras, sítios
e cidades
Pôr fim ao lamento deste vento
tentar tirar ao anjo
a túnica e o sabre
É preciso inventar outras paisagens
outros montes e águas
outras margens
Abrir o peito e expôr o coração
e finalmente deixar
correr as lágrimas.
Maria Teresa Horta
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¶ 2 de Dezembro de 2004

Van der Weyden
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¶ 2 de Dezembro de 2004
Palavras 2
Continuam arredias, as palavras, pensou - agora que são necessárias e urgentes, nãoinvadem, atravessam e disparam como queria. Intensamente, desejou que voltassem, que não se demorassem tanto, e não era a carência da simples habituação ao verbo, bem vê agora, bem vira logo no instante em que lhe fugiram, ainda sem ver. A luz matizada e estranha da manhã trouxe-lhe o reconhecimento do que sabia bem: quanto mais alto se aposta, maior é o mundo que se avista, e a vida é um pagar para ver constante e impiedoso , gratificante e singular, duro e extasiante. Pode não se ir a jogo, casose recuse o risco da totalidade- e os deuses permitem com indiferença essa forma de estar morto em vida, a ataraxia como um envólucro confortável e hermético, eficaz até que o Letes nos arraste de vez. Ou pode segurar-se a mão que pertence àquele corpo que é outro e se quer fazer seu, na vertigem de um abismo a que há até quem chame amor, se a palavra não mata de terror só de pensar nela. A liberdade vai até ao ponto de podermos escolher entre a vida e a morte, e não há universo mais infinito do que esse.
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¶ 1 de Dezembro de 2004

Avercamp
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¶ 1 de Dezembro de 2004
Observações minimalistas
(em decálogo comprovado e revisto)
1. Enquanto se vive, escreve-se menos.
2. A cumplicidade é sustentadora do envolvimento.
3. A consideração é a base mais fiável do amor.
4. A atracção dos corpos é imediata, mesmo que disfarçada.
5. A atracção das almas é mediata, mesmo que vulcânica.
6. As palavras são essenciais, em qualquer suporte.
7. O tempo não é linear.
8. A distância é relativa.
9. A confiança é uma benção.
10. O amor não conhece dimensão: ou é, ou não é.
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¶ 1 de Dezembro de 2004

Avercamp
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¶ 1 de Dezembro de 2004
The raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
"'Tis some visitor," I muttered, "tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more."
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore.
And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating,
"'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more."
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
"Sir," said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering,
fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore!"
This I whispered, and an echo murmured back the word, "Lenore!" -
Merely this, and nothing more.
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattice:
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more."
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and
flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed
he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore.
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no
craven,
Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blest with seeing bird above his chamber door-
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."
But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered?not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered, "other friends have flown
before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before."
Then the bird said, "Nevermore."
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of 'Never - nevermore'."
But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and
door;
Then upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird of yore
Meant in croaking "Nevermore."
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamplight gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamplight gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!
Then methought the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God hath lent thee - by these angels he
hath sent thee
Respite - respite and nepenthe, from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."
"Prophet!" said I, "thing of evil! - prophet still, if bird or
devil! -
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."
"Prophet!" said I, "thing of evil - prophet still, if bird or
devil!
By that Heaven that bends above us?by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
Quoth the Raven, "Nevermore."
"Be that word our sign in parting, bird or fiend," I shrieked,
upstarting -
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my
door!"
Quoth the Raven, "Nevermore."
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamplight o'er him streaming throws his shadow on the
floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!
THE END
Edgar Allan Poe
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¶ 1 de Dezembro de 2004
Da citação
"Tu citas muito no blogue; é uma forma de sustentar o discurso com uma outra voz, uma voz a que reconheces mais autoridade do que à tua própria, e por isso não dizes tu mesma o que ecoas."
Sim, de certo modo, e por isso te estou a citar agora. Mas também porque há beleza, sensibilidade, genialidade até, em palavras de outros; o prazer que elas me dão seria muito improvável através das minhas.
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¶ 1 de Dezembro de 2004

Edward Okun
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¶ 1 de Dezembro de 2004
Palavras
Preciso delas para escrever, mas ainda não astenho, visitante de mim própria nesta manhã de chuva. Estão em boas mãos e hão-de voltar, ágeis e doces, seguras e temerosas, sabedoras e inquietas. Palavras de prefixos partilhados em horas vivas, tomadas de empréstimo súbito às estrelas, dependuradas de luzes, agarradas no meio do ruído, alisadas como papel de seda ao calor. Palavras chegadas do passado reescrito, carregadas de instante retocados, tornados quase brandos, quase brancos. Palavras (ar)riscadas para o presente que respira e está, refulge e já é memória. Palavras desconhecidas para alumiar caminhos longe. Não as tenho agora, não as certas, totais como o vento sobre o mar imenso da vida. Estão perto.
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