¶ 30 de Janeiro de 2005
"bene senescere sine timore nec spe"
blogue de Ana Roque
Arquivo de janeiro 2005
¶ 30 de Janeiro de 2005
Do tempo adversativo
Rapids Fall's leaves are redder than spring's flowers, have no pollen, and also sometimes fly, as the wind schools them out or down in shoals or droves: though I have not been here long, I can look up at the sky at night and tell how things are likely to go for the next hundred million years: the universe will probably not find a way to vanish nor I in all that time reappear. A.R. Ammons
¶ 30 de Janeiro de 2005
Longe (ou perto disso)
A medida do tempo espraiada no espaço, as serras a perder de vista em mar de estrelas. O olhar partilhando a curva de um meteorito casual, ao som de canções antigas que alimentavam conversas. Uma cidade com outras palavras em língua próxima, pedras douradas por um solstício em dissipação. O sabor de uma proximidade nova engastada na (já) sentida como antiga, a intensidade em crescendo. In my time I've told a lie of two. I've been a deceiver, but believe me what I now say is true. There's no other way I can express what I'm thinking of: You're my favourite, you're the one that I love. It's a one-horse race, still I'm ready to place my bet. I'm a pretty slow starter, and I haven't quite caught up with it yet... It seems so extraordinary that you should care for me. You're my favourite - how lucky can any man be? You're my favourite - will you stay the course with me? You're my favourite of all time. You're my favourite, can't you see? You're my favourite of all time. Say you'll stay the course with me. Peter Hammill, in The love songs
¶ 28 de Janeiro de 2005
Luz
A noite alta, límpida, o gelo a cortar lá fora. Um céu tão distante que deslumbra, sem medo, mesmo sabendo que continua debaixo do chão. Uma estrada que podia (pode, poderá) ser percorrida até ao infinito, ao fim dos tempos, e fica bem para lá da prudência que manda começar as frases por "enquanto". A luz de palavras que são ditas noutra voz e ficam nossas. O espaço e as luzes depois de túneis. O esplendor de mais um dia, certo e vivido. O sabor da luz já noutra manhã.
¶ 27 de Janeiro de 2005
About weeping
La Figlia Che Piange (The Weeping Girl) Stand on the highest pavement of the stair -- Lean on a garden urn -- Weave, weave the sunlight in your hair -- Clasp your flowers to you with a pained surprise -- Fling them to the ground and turn With a fugitive resentment in your eyes: But weave, weave the sunlight in your hair. So I would have had him leave, So I would have had her stand and grieve, So he would have left As the soul leaves the body torn and bruised, As the mind deserts the body it has used. I should find Some way incomparably light and deft, Some way we both should understand, Simple and faithless as a smile and a shake of the hand. She turned away, but with the autumn weather Compelled my imagination many days, Many days and many hours: Her hair over her arms and her arms full of flowers. And I wonder how they should have been together! I should have lost a gesture and a pose. Sometimes these cogitations still amaze The troubled midnight, and the noon's repose. T.S. Eliot
¶ 26 de Janeiro de 2005
Graffito
A noite límpida de outono tinha-lhes trazido o rasgo, o brilho, a vivacidade, o olhar promissor, a cumplicidade primeira, feita de proximidade decidida. Depois, veio o presente inesperado e sumptuoso da consideração, a confiança nascida por acréscimo quase imediato. Ao terceiro dia, a vida voltou nas palavras engastadas, totalidade visível nas mãos que nunca mais se deixaram. Mais de mil e quinhentas horas depois, não se lembravam de como antes nasciam os dias.
¶ 25 de Janeiro de 2005
Dos elementais
Sabiam do ar que sorviam, do fogo que os incendiava, da terra onde renasciam e da água que corria para o mar daquele amor. Dividiam os elementos por dois e multiplicavam-nos entre si logo em seguida, de forma apaixonadamente distributiva.
¶ 25 de Janeiro de 2005
Da ordem aparente
Tecia horas a benefício de uma ordem aparente que pudesse mascarar a subversão que é a colagem dos corpos, a respiração, o apego das almas. Em tempos antigos, devia ter sonhado que havia um amor assim, mas esqueceu esse sonho durante muitas luas para poder sobreviver, loba à solta em florestas nevadas. Depois chegou o mar, trazido na corrente daquele rio verde onde se encontrou com a vida, levada para uma dimensão sublime - naquelas mãos que, segurando palavras, lhe mostraram o infinito.
¶ 24 de Janeiro de 2005
Indefinições
Mas, conquanto não pode haver desgosto Onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê; Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê. Luís de Camões
¶ 24 de Janeiro de 2005
Reflexos (da vida longa)
"O tempo não se mede tanto em termos de ordem cronológica banal, exterior, mas pelas intensidades do tempo que vivemos." (...) "A paixão é um momento incandescente do amor. O verdadeiro amor é aquele que se transcende naquilo que ama, e não aquele que fica prisioneiro daquilo que ama.(...) toda a paixão é a mesma paixão. Se ela se repete, ou se temos a impressão que revivemos uma grande paixão, é porque nenhuma paixão, mesmo a mais alta, em si mesma se esgota. Portanto, tem que ser perdida, reencontrada, reinventada, se não é uma simples ofuscação." Eduardo Lourenço, in Expresso, revista Única, ed. 22 Janeiro 2004.
¶ 24 de Janeiro de 2005
Grano salis
Conheço o sal da tua pele seca depois que o estio se volveu inverno da carne repousando em suor nocturno. Conheço o sal do leite que bebemos quando das bocas se estreitavam lábios e o coração no sexo palpitava. Conheço o sal dos teus cabelos negros ou louros ou cinzentos que se enrolam neste dormir de brilhos azulados. Conheço o sal que resta em minha mãos como nas praias o perfume fica quando a maré desceu e se retrai. Conheço o sal da tua boca, o sal da tua língua, o sal de teus mamilos, e o da cintura se encurvando de ancas. A todo o sal conheço que é só teu, ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, um cristalino pó de amantes enlaçados. Jorge de Sena
¶ 24 de Janeiro de 2005
In a way
Need To Know How do I know what you say is real How do I know if that's the way you feel You're the only one who's seen me In the dark hours in the kitchen chair Are you still there do you still care That's all I really need to know Watching the rain come pouring down Washing the stain off this old town They say misery loves company But ain't there something else we can share Are you still there do you still care That's all I really need to know It scares a man When glory days are gone But here I stand I know I'm not alone I got pictures in my mind And the radio takes me back in time Are you still there you're in my prayer That's all I really need to know Kansas
¶ 23 de Janeiro de 2005
Da aparente (des)protecção
Não há espaços protegidos em absoluto, nem quem nos defenda sempre de forma completa; não há universos estanques nem zonas fora do mundo, por maior que seja a coesão e a unidade em que se vive. A entropia é uma constante inafastável, mesmo quando não se sente, de tão subliminar, mesmo quando não tem, por si, qualquer poder ou força existencial de transfiguração do real. Há invasões efectivas ou na forma tentada, há-as duras ou evitáveis, mas todas contam, todas são um anel de fogo que aperta a vida, ainda que sem a sufocar. Pode ignorar-se a entropia? Não - ela é um dragão que faz tremer o solo que pisamos, é um sopro sulfuroso que tenta entrar pelas frestas invisíveis com impossível teimosia, a empestar o ar em volta. Mas pode-se certamente reduzi-la à irrelevância do seu peso, comprimi-la sob a mó da lucidez e a força do que se sabe certo e seguro. A vida tem um curso e o tempo corre sempre a favor da verdade, sua filha dilecta, antes de, em definitivo, acabar por comer tudo o que existe, como bem lembrava Ovídio.
¶ 23 de Janeiro de 2005
Geografia invariável
-Se eu fosse um país, eras o meu governo... -Se fosses um país, era o mar da tua costa. Os governos caem, ou desistem, o mar fica sempre. Na eternidade possível ao olhar da humana dimensão. -Sempre, nessa medida, então.
¶ 23 de Janeiro de 2005
Desobediência amorosa
(ao som de Bach, Cantata BWV 180, "Schmücke dich, o liebe Seele") Da interrogação inevitável O que é ter estabilidade com quem se ama? Onde radica tal conceito - esse, o de estabilidade? É medida em tempo passado? É corporizada em expectativa, depósito a prazo antecipadona luz fulgurante dos dias claros, presente inesperado e irrecusável de acasos desconhecidos da razão? É uma pura construção quotidiana, alicerçada em vontade, revestida de doçura firme, decorada com a presença amante? Saber as respostas é de uma total irrelevância perante o sabor do beijo, o toque das mãos, o riso, a partilha de ideias, as palavras trocadas, a atracção dos corpos. Deve ser isso a estabilidade, esse calor vivido em continuum, pensou.
¶ 23 de Janeiro de 2005
Em vida
O amor trocou-lhe as voltas, deu-lhe novos caminhos que não tinha querido percorrer; desmediu-lhe o tempo, alterou-lhe a temperatura, aumentou-lhe as pulsações, mudou-lhe o ritmo solar dos dias. O amor invadiu-a e tomou-lhe o espaço em volta, disse-lhe em verdade a palavra que esperava há eternidades, levou o seu modo de vida para um azul outro. Ofereceu-lhe a respiração entrecortada do desejo, o mar verde na madrugada de (quase) todos os dias, misturados nos feixes de luz nascente a sul, garantia maior de uma amplitude às vezes inquietante. Não a poderia salvar da morte certa, mas deu-lhe a certeza em vida.
¶ 23 de Janeiro de 2005
Da fuga singular
I am the escaped one I am the escaped one, After I was born They locked me up inside me But I left. My soul seeks me, Through hills and valley, I hope my soul Never finds me. Fernando Pessoa
¶ 22 de Janeiro de 2005
Dever(es)
Devia estar a escrever outra coisa, a trocar factos em minudências jurídicas complexas; tinha-lho prometido minutos antes, ao fechar-se atrás da porta por tempo indeterminado. Mas os dedos voaram para outro mundo, encontraram outra janela aberta por onde se escapam as palavras feitas de sol, feitas do calor que ainda a envolve, que a enleva no rasto daqueles braços que a tomaram, no sabor do beijo que, suspenso, a alimenta. A vida pulsa mais forte do que a razão, disse.
¶ 22 de Janeiro de 2005
Da espiral perfeita
Poetics I look for the way things will turn out spiralling from a center, the shape things will take to come forth in so that the birch tree white touched black at branches will stand out wind-glittering totally its apparent self: I look for the forms things want to come as from what black wells of possibility, how a thing will unfold: not the shape on paper - though that, too - but the uninterfering means on paper: not so much looking for the shape as being available to any shape that may be summoning itself through me from the self not mine but ours. A.R. Ammons
¶ 21 de Janeiro de 2005
Das mãos
Com preocupação generosa, falaram-lhe das mãos, das suas, marcadas de tão vivas, porque apareciam noutro espaço, sustidas no enlace de um instante. Disseram-lhe para ter cuidado - essa imagem das mãos, essa exposição de si, é somente um pouco menor do que respirar, ainda assim. Não conseguiu perceber de onde viria o perigo - se das mãos assim mostradas, se do simples facto de essas mãos - as suas e as do amado - estarem irremediavelmente enlaçadas.
¶ 21 de Janeiro de 2005
Do incêndio
Dezarrezoado amor, dentro em meu peito tem guerra com a razão. Amor, que jaz i já de muitos dias, manda e faz tudo o que quer, a torto e a direito. Não espera razões, tudo é despeito, tudo soberba e força, faz, desfaz, sem respeito nenhum, e quando em paz cuidais que sois, então tudo é desfeito. Doutra parte a razão tempos espia, espia ocasiões de tarde em tarde, que ajunta o tempo: em fim vem o seu dia. Então não tem lugar certo onde aguarde amor; trata traições, que não confia nem dos seus. Que farei quando tudo arde? Sá de Miranda
¶ 21 de Janeiro de 2005
Resposta(s)
Como é que acontece este depósito de si própria num corpo outro, este tempo diferente sob outra luz, o olhar que tempos antes cruzava o mundo tão longe, na rua ao lado, num espaço a sul, ser o único onde se espelha o desejo? Como é que acontece ter toda a sede de infinito e saciá-la naqueles lábios, ter as palavras a nascer na garganta e ouvi-las num estranho e antiquíssimo eco? Como é que nasce o amor?
¶ 20 de Janeiro de 2005
Ghosts
Some ghosts are women, neither abstract nor pale, their breasts as limp as killed fish. Not witches, but ghosts who come, moving their useless arms like forsaken servants. Not all ghosts are women, I have seen others; fat, white-bellied men, wearing their genitals like old rags. Not devils, but ghosts. This one thumps barefoot, lurching above my bed. But that isn't all. Some ghosts are children. Not angels, but ghosts; curling like pink tea cups on any pillow, or kicking, showing their innocent bottoms, wailing for Lucifer. Anne Sexton
¶ 19 de Janeiro de 2005
Rio(s)
Falavam de rios e de mar, de águas profundas e letais, da força das marés onde o amor os tinha surpreendido da noite para o dia. Às vezes, o verde amado brilhava lembrando o Dnjepr, que ela nunca veria, mas lhe corria na memória por mero efeito mágico daquele olhar.
¶ 19 de Janeiro de 2005
Na ausência
(tida por breve e nem por isso mais suportável) As saudades são boa lenha para a fogueira do reencontro, escreveu-lhe, a horas de distância. A ausência é um momento apenas, o conjunto de momentos chama-se amor. O amor, tinha ela dito na véspera, quando a noite tinha luz própria e cintilante, é o fruto do conhecimento, ao contrário da paixão, feita de atracção pelo novo e de deslumbramento pela superfície brilhante. O amor é o resultado maior da espeleologia da alma, o diamante lapidado pelo tempo e o modo da partilha.
¶ 19 de Janeiro de 2005
Da autonomia
Autonomy I am living without you because of a terror, a farfetched notion that I can't live without you which I must narrow down & quell, for how can I live worthy of you, in the freedom of you limber engagements, in the casual uptakes of your sweetest compliances if stricken in your presence by what your absence stills: to have you, I school myself to let you go; how terrible to buy that absence before the fragrance of any presence comes: but though I am living without you, surely I can't live without you: the thought of you hauls my heavy body up, floats me around, gives my motions point, just the thought. A.R. Ammons
¶ 19 de Janeiro de 2005
Desmesura(s)
- Afinal, que queres? - Tudo. Quero tudo. Menos do que isso é uma desconsideração para com a vida, uma menorização do amor, uma ignorância do essencial, mesmo que nunca se atinja toda a profundidade possível e se fique apenas pela escassez relativa da probabilidade. - Não te esqueças de fugir ao espírito do tempo e querer também a eternidade. Não a absoluta, conversa de deuses e alimento de filósofos, mas a eternidade que tem a humana proporção da vida. - Descansa. Por pouco que seja, esse tempo eterno é o mínimo para se viver tudo.
¶ 19 de Janeiro de 2005
(Des)Razões
As sem razões do amor Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, nem se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. Carlos Drummond de Andrade
¶ 18 de Janeiro de 2005
Da previsível distância
Um Adeus Português Nos teus olhos altamente perigosos vigora ainda o mais rigoroso amor a luz dos ombros pura e a sombra duma angústia já purificada Não tu não podias ficar presa comigo à roda em que apodreço apodrecemos a esta pata ensanguentada que vacila quase medita e avança mugindo pelo túnel de uma velha dor Não podias ficar nesta cadeira onde passo o dia burocrático o dia-a-dia da miséria que sobe aos olhos vem às mãos aos sorrisos ao amor mal soletrado à estupidez ao desespero sem boca ao medo perfilado à alegria sonâmbula à vírgula maníaca do modo funcionário de viver Não podias ficar nesta casa comigo em trânsito mortal até ao dia sórdido canino policial até ao dia que não vem da promessa puríssima da madrugada mas da miséria de uma noite gerada por um dia igual Não podias ficar presa comigo à pequena dor que cada um de nós traz docemente pela mão a esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal Mas tu não mereces esta cidade não mereces esta roda de náusea em que giramos até à idiotia esta pequena morte e o seu minucioso e porco ritual esta nossa razão absurda de ser Não tu és da cidade aventureira da cidade onde o amor encontra as suas ruas e o cemitério ardente da sua morte tu és da cidade onde vives por um fio de puro acaso onde morres ou vives não de asfixia mas às mãos de uma aventura de um comércio puro sem a moeda falsa do bem e do mal Nesta curva tão terna e lancinante que vai ser que já é o teu desaparecimento digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti Alexandre O'Neill
¶ 18 de Janeiro de 2005
Tempus
(que transcende qualquer medida e nunca é bastante) O tempo passa? Não passa no abismo do coração lá dentro, perdura a graça do amor, florindo em canção. O tempo nos aproxima cada vez mais, nos reduz a um só verso e uma rima de mãos e olhos, na luz. O tempo é todo vestido de amor e tempo de amar. O meu tempo e o teu transcendem qualquer medida. Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida. Pois só quem ama escutou o apelo da eternidade. Carlos Drummond de Andrade
¶ 17 de Janeiro de 2005
Variante
Amar e ser amado! Com que anelo Com quanto ardor este adorado sonho Acalentei em meu delírio ardente Por essas doces noites de desvelo! Ser amado por ti, o teu alento A bafejar-me a abrasadora frente! Em teus olhos mirar meu pensamento, Sentir em mim tu’alma, ter só vida P’ra tão puro e celeste sentimento Ver nossas vidas quais dois mansos rios, Juntos, juntos perderem-se no oceano Beijar teus dedos em delírio insano Nossas almas unidas, nosso alento, Confundido também, amante amado Como um anjo feliz... que pensamento! Castro Alves
¶ 17 de Janeiro de 2005
Da experiência
Testar a vida em territórios antes convictamente abjurados, exercitar o olhar noutras perspectivas, partir o pão a uma mesa cheia de sentido, deitar o corpo na cama sob luz diversa, acabar por adormecer à sombra de um calor criado de novo - é esse o segredo último, feito motor da experiência.
¶ 17 de Janeiro de 2005
Soneto
(sem gostar do último terceto...) De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei-de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me preocupe Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive) Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Vinicius de Moraes
¶ 17 de Janeiro de 2005
Memória
(de uma noite de verão) Anna Who Was Mad Anna who was mad, I have a knife in my armpit. When I stand on tiptoe I tap out messages. Am I some sort of infection? Did I make you go insane? Did I make the sounds go sour? Did I tell you to climb out the window? Forgive. Forgive. Say not I did. Say not. Say. Speak Mary-words into our pillow. Take me the gangling twelve-year-old into your sunken lap. Whisper like a buttercup. Eat me. Eat me up like cream pudding. Take me in. Take me. Take. Give me a report on the condition of my soul. Give me a complete statement of my actions. Hand me a jack-in-the-pulpit and let me listen in. Put me in the stirrups and bring a tour group through. Number my sins on the grocery list and let me buy. Did I make you go insane? Did I turn up your earphone and let a siren drive through? Did I open the door for the mustached psychiatrist who dragged you out like a gold cart? Did I make you go insane? From the grave write me, Anna! You are nothing but ashes but nevertheless pick up the Parker Pen I gave you. Write me. Write. Anne Sexton
¶ 16 de Janeiro de 2005
Reality check 3
Tudo tem um tempo, diz o Eclesiastes, e sabe-se, sente-se, aprende-se, aceita-se com maior ou menor esperança, evitando a resignação sem cair no desânimo. A instabilidade é viral, propaga-se prontamente de alma em alma, multiplica-se em segundos na humidade propícia das lágrimas, esconde-se nas pregas dos lençóis mal dormidos, nos sonhos indesejados. Vencê-la é ser mais forte do que as marés em época de solstício, é dominar os impulsos de fuga que prontamente irrompem do kit de sobrevivência guardado numa prateleira alta da memória. É sobretudo preferir viver a realidade, investir nela, persistir no caminho iniciado por benesse pura do acaso e deixado depois à guarda de quem o escolheu para percorrer. É ser responsável pela própria vida e construir aquilo que verdadeiramente se quer.
¶ 16 de Janeiro de 2005
Do cansaço infinito
I Am Vertical But I would rather be horizontal. I am not a tree with my root in the soil Sucking up minerals and motherly love So that each March I may gleam into leaf, Nor am I the beauty of a garden bed Attracting my share of Ahs and spectacularly painted, Unknowing I must soon unpetal. Compared with me, a tree is immortal And a flower-head not tall, but more startling, And I want the one's longevity and the other's daring. Tonight, in the infinitesimal light of the stars, The trees and flowers have been strewing their cool odors. I walk among them, but none of them are noticing. Sometimes I think that when I am sleeping I must most perfectly resemble them - Thoughts gone dim. It is more natural to me, lying down. Then the sky and I are in open conversation, And I shall be useful when I lie down finally: The the trees may touch me for once, and the flowers have time for me. Sylvia Plath
¶ 15 de Janeiro de 2005
Reality check 2
A descida à realidade é um exercício em continuum, uma caminhada na construção da negação evidente da morte em cada instante - difícil operação, essa de adiar o inevitável, até ao ponto de evitar o inadiável, se necessário for. Viver plenamente, passar para lá do dourado que é a partilha do encontro, dispor de toda a coragem para chegar às catacumbas da alma, sua e do outro, com toda a carga do já visto, com todas as lágrimas por esquecer, com o medo imenso da dor que, de tão forte, não chegou a matar e obrigou o sobrevivente a respirá-la em cada manhã, até se dissipar lentamente numa nova luz - é aí que reside o núcleo duro do que chamamos amor.
¶ 15 de Janeiro de 2005
Do(s) fantasma(s)
(escrita a cinza em fundo negro) A Better Resurrection I have no wit, I have no words, no tears; My heart within me like a stone Is numbed too much for hopes or fears; Look right, look left, I dwell alone; A lift mine eyes, but dimmed with grief No everlasting hills I see; My life is like the falling leaf; O Jesus, quicken me. Sylvia Plath
¶ 14 de Janeiro de 2005
In illo tempore
(AmAtA, ou do nome antes da coisa) Havia quase sarcasmo - uma recusa teimosa de qualquer auto-complacência, uma ferocidade na lucidez anterior à escolha da senha, um nome que marcava a antinomia entre o que não era e o que tinha desejado ser. Fazer-se chamar "amada", na língua do local onde estava quando um novo espaço lhe foi oferecido, teria sido quase violento, não fora o sorriso para si mesma, atrás das letras. Afinal, por vontade imprevista dos deuses, foi apenas mera questão de tempo entre a ficção irónica e a realidade inteira.
¶ 14 de Janeiro de 2005
Princípios
(para o Paulo Manuel, sem iniciais, depois do princípio) Podíamos saber um pouco mais da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa. Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só o que é preciso é saber que temos de viver. Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada sabemos do amor. Nuno Júdice
¶ 14 de Janeiro de 2005
Reality check
(said he) A construção de uma relação amorosa não é um percurso nefelibata - se há (e nem sempre há...) um período meta(-eu)fórico, de (re)conhecimento e projecção intensiva do eu no outro, a realidade fica a aguardar, paciente e inevitável, algures num tempo próximo. É aí, justamente no primeiro ponto de viragem entre o "ser" e o "nada" do amor que se desenhará a expansão possível. O deslumbramento a luz e cor dá lugar à razão, o entusiasmo recorrente é substituído pelo olhar da normalidade, mesmo que encantada e encantadora. Há uma nova dimensão a descobrir, uma nova dinâmica a cultivar: a primeira vez que o olhar diverge, desligado, abre uma perspectiva que é preciso saber viver. Para fazer então o resto do caminho, sem fim à vista.
¶ 13 de Janeiro de 2005
Nota breve
(Amor omnia vincit) Diálogo horizontal sobre a duração do amor: - Não tem prazo de validade ínsito, nós é que temos... o normal é durar tanto quanto os amantes, se o são mesmo, de corpo e alma; mas o que acontece é que há um tempo de engano e um tempo de revelação do erro - depois as pessoas separam-se justamente porque, ao menos para uma delas, não era amor. - Então não sabes se é amor a não ser 'a posteriori', não é? Nunca sabes, no decurso do tempo de vivência, se é mesmo the real thing, ou se simplesmente o erro ainda não se revelou... - Não consigo argumentar em contrário, a não ser com apelo ao menos lógico dos critérios - o estômago, como tu dizes, ou a intuição profunda, a epifania irrecusável que nos diz, em segredo gritante, desde o primeiro minuto, se aquilo é ou não para durar indefinidamente. É pouco, mas é o que há.
¶ 13 de Janeiro de 2005
Ataraxia
(relativa, in memoriam, em dia de nevoeiro) Não a movia qualquer desejo de ajuste de contas, nem com a vida, que se limitara sempre a fazer-lhe as vontades, nem com o homem que a tinha mantido numa dependência afectiva espúria com dotes de prestidigitador. Tinha bem presente que não pode haver sedução sem a cumplicidade do visado. Tinha sido vítima, sim, mas de si própria. Uma típica “mulher que ama demais”, pensou, lembrando-se do livro que lhe tinham oferecido como receita para a liberdade. Mas tinha havido tanta dor escusada, tanto tempo inútil… Pagar para ver pode ser um caminho certo para a penúria, sim.
¶ 11 de Janeiro de 2005
Da alienação integral
(ou o triunfo dos palhaços em tenda de circo meio tombada) O ministro Nuno Morais Sarmento, depois de mais um episódio burlesco e irresponsável que configura uma lesão ilegítima do erário público, anunciou ao país que tinha posto o seu lugar (?!) à disposição do primeiro ministro; no entanto, e dado que este personagem de comédia sem arte lhe reiterou a confiança, manter-se-á (?!!) em funções (?!!!). Os portugueses têm realmente escolha no divertimento: os malucos do riso versus a alienação em nu integral.
¶ 11 de Janeiro de 2005
dive
dive for dreams or a slogan may topple you (trees are their roots and wind is wind) trust your heart if the seas catch fire (and live by love though the stars walk backward) honour the past but welcome the future (and dance your death away at this wedding) never mind a world with its villains or heroes (for god likes girls and tomorrow and the earth) e.e. cummings
¶ 11 de Janeiro de 2005
Assim
(ou com a alma em mudança e o corpo à espera) Estavam como o comum das famílias no mais prosaico dos lugares, ao fim da tarde, as compras a entrarem nos sacos em ritmo suave e maquinal, a filha magra e bonita ao lado, ar alegre, brincando com as mãos esguias de princesa skater, a adolescência a bater à porta e ainda sem entrar; e ela tocou de súbito o infinito do olhar amado, vendo-o por um instante perdido em si, na antevisão de mais uma travessia - confiante, entrou despida naquele mar único onde, luas antes, tinha mergulhado sem medo, por uma vez sem frio, tornada habitante de um verde feliz, e deu graças silenciosas por ter sido, por ser assim.
¶ 11 de Janeiro de 2005
Contributo 3
Portugal e a Constituição Europeia: Algumas Perguntas com Resposta a Prazo Em 30 de Outubro passado, foi assinada em Roma, local escolhido pelo simbolismo que lhe vem do Tratado de 1957, a futura Constituição Europeia. Os Chefes de Estado ou de Governo de todos os Estados-Membros da União Europeia deram assim o seu aval a um texto que, se e quando for ratificado pelos vinte e cinco países que hoje compõem esta vasta comunicada, será algo de novo na realidade deste continente. Desde o início deste projecto, em 2002, que tanto a própria ideia de um texto constitucional europeu como a forma escolhida para a sua elaboração têm sido alvo de polémicas acesas. Na verdade, há os que se recusam a ver uma comunidade que pretendem manter presa à sua natureza originária – essencialmente económica – evoluir de modo gradual mas inequívoco para uma nova realidade política com aspectos federais, enquanto outros desvalorizam a malignidade dessa tendência, sugerindo que a Constituição se destina somente a substituir os vários Tratados (Roma, Acto Único, Maastricht, Amesterdão Nice) por um texto único, com óbvios ganhos em clareza, legibilidade e transparência sistemática.
¶ 11 de Janeiro de 2005
Contributo 2
Estado e Mercado - Regulação, Precisa-se! Numa economia de mercado, para mais inserida num universo vasto e amplamente intervencionado com é a União Europeia, a regulação económica e social é uma questão central, anterior até a um esforço coeso e coerente de modernização das estruturas produtivas, de aumento da competitividade e de desenvolvimento sustentado, capaz de harmonizar a qualidade de vida em todos os sectores e regiões. A concorrência tornou-se uma dimensão essencial do mercado, mesmo nos Estados mais apegados aos bens públicos e à prestação de serviços de interesse geral. Numerosas empresas detidas pelo Estado foram privatizadas, no todo ou em parte, um pouco por toda a Europa.
¶ 11 de Janeiro de 2005
Contributo 1
in http://www.novasfronteiras.pt/index.php?article=136&visual=1 Crescimento e Gobalização A revisão em baixa do crescimento económico para 2005, anunciada pelo Banco de Portugal (1,6%, ou seja, menos 0,8 do que o cenário divulgado pelo (des)Governo cessante), obriga a uma reflexão mínima acerca do inevitável: não vai ser possível aliviar a pressão da austeridade nas contas públicas, já que a retoma é demasiado débil para permitir um relançamento económico sustentado internamente. Dada a tradicional dependência externa da economia portuguesa, a conjuntura de valorização do euro face ao dólar (travão às exportações) e a necessidade de controlo / contracção das despesas públicas de modo a respeitar o Pacto de Estabilidade e Crescimento, há que contar com o pior: o eventual aumento dos impostos indirectos. Neste contexto, a globalização da economia pode, apesar de tudo, oferecer uma ajuda no processo de recuperação, já que as previsões internacionais são favoráveis a um novo período de crescimento. Portugal, parte de um bloco de forte integração regional como é a UE, tem que fazer um esforço particular e inadiável de autodisciplina financeira e de aumento da produtividade, contrariando a tendência de afastamento face ao crescimento médio registado na zona euro, como tem vindo a acontecer desde o início deste século. Se a modernização das estruturas produtivas continua a ser um dos pontos fracos da economia nacional, a verdade é que a urgência maior está no travão indispensável à despesa pública, sorvedouro desmedido da riqueza gerada.
¶ 11 de Janeiro de 2005
Res publica
Por estes dias, e apesar do vento forte que sopra alegria e solta a luz interior, outros têm sido os percursos das palavras lançadas no mundo lá fora: por imperativo dos tempos que correm, a escrita tem agora sido usada para fins diversos dos habituais neste modus vivendi, como segue.
¶ 10 de Janeiro de 2005
Da inútil perfeição
Retrato de uma princesa desconhecida Para que ela tivesse um pescoço tão fino Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos Para que a sua espinha fosse tão direita E ela usasse a cabeça tão erguida Com uma tão simples claridade sobre a testa Foram necessárias sucessivas gerações de escravos De corpo dobrado e grossas mãos pacientes Servindo sucessivas gerações de príncipes Ainda um pouco toscos e grosseiros Ávidos cruéis e fraudulentos Foi um imenso desperdiçar de gente Para que ela fosse aquela perfeição Solitária exilada sem destino Sophia de Mello Breyner Andresen
¶ 10 de Janeiro de 2005
Do tempo, bem escasso
(entre o que foi e o que podia ter sido não há qualquer diferença) Time present and time past Are both perhaps present in time future, And time future contained in time past. If all time is eternally present All time is unredeemable. What might have been is an abstraction Remaining a perpetual possibility Only in a world of speculation. What might have been and what has been Point to one end, which is always present. Footfalls echo in the memory Down the passage which we did not take Towards the door we never opened Into the rose-garden. My words echo Thus, in your mind. (...) T. S. Eliot, in Four Quartets, Burnt Norton.
¶ 10 de Janeiro de 2005
Rosa dos ventos
O amor tem muitas faces, pensou, visíveis e invisíveis, completas e incompletas, corpóreas e incorpóreas. E tem, lembrava-se ainda, os seus quase émulos aparentes - a paixão teimosa, o investimento a fundo perdido, a determinação que passa a alienação, benigna ou destrutiva, de acordo com as circunstâncias de cada um. Mas um amor em plenitude, uma rosa perfeita com todos os pontos cardeais em glória, é uma preciosidade rara. Uma benção, disse, o olhar transportado no vento suão nascido dentro de mais uma manhã de inverno.
¶ 9 de Janeiro de 2005
Da luz
Gostava muito, sempre tinha gostado do nome que tinha. Vivia bemcom ele, com o som em anagrama, com a força nuclear que irradiava daquelas duas sílabas redondas, aconchegadas, assertivas também. De repente, por causa do vento no mar, quis mudar para outra luz. Noor.
¶ 9 de Janeiro de 2005
Da voz única
Não escrevo sobre o amor, sobre este amor, disse, fixando nela a ternura imensa do mar que usava como espelho da alma. Tu registas, depuras, escolhes as palavras com a precisão do cronista que assiste, imerso, à glória da vida, e isso basta. Sim. Já fica uma pálida ideia do que somos, do que nos tornámos nesta alquimia. Tenho as palavras que me escreves dentro, que resguardas do vento para pousarem apenas em mim, e isso basta. E a tarde diluiu-se em noite enquanto se perdiam e reencontravam na fusão que os habitava.
¶ 9 de Janeiro de 2005
Why?...
"Why do I love" You, Sir? Because - The Wind does not require the Grass To answer - Wherefore when He pass She cannot keep Her place. Because He knows - and Do not You - And We know not - Enough for Us The Wisdom it be so - The Lightning - never asked an Eye Wherefore it shut - when He was by - Because He knows it cannot speak - And reasons not contained - - Of Talk - There be - preferred by Daintier Folk - The Sunrise - Sire - compelleth Me - Because He's Sunrise - and I see - Therefore - Then - I love Thee - Emily Dickinson
¶ 9 de Janeiro de 2005
Do sopro
(ou da ecologia de corpus et animus) Nunca tinham pensado no amor como matéria de respiração. Agora, inspiravam-se com sofreguidão, expiravam em uníssono involuntário, transpiravam não sabiam que energia permanente e renovável.
¶ 9 de Janeiro de 2005
Dueto
(para P. M., no dia da mudança, em pleno fulgor) Consta nos astros Nos signos Nos búzios Eu li num anúncio Eu vi no espelho Tá lá no evangelho Garantem os orixás Serás o meu amor Serás a minha paz Consta nos autos Nas bulas Nos dogmas Eu fiz uma tese Eu li num tratado Está computado Nos dados oficiais Serás o meu amor Serás a minha paz Mas se a ciência provar o contrário E se o calendário nos contrariar Mas se o destino insistir Em nos separar Danem-se Os astros Os autos Os signos Os dogmas Os búzios As bulas Anúncios Tratados Ciganas Projetos Profetas Sinopses Espelhos Conselhos Se dane o evangelho E todos os orixás Serás o meu amor Serás, amor, a minha paz Consta na pauta No Karma Na carne Passou na novela Está no seguro Pixaram no muro Mandei fazer um cartaz Serás o meu amor Serás a minha paz Consta nos mapas Nos lábios Nos lápis Consta nos ovnis No Pravda Na vodca Chico Buarque
¶ 9 de Janeiro de 2005
Da paixão
(ou do sentimento solitário) Porque a paixão não argumenta com as palavras da razão. Para a paixão é completamente indiferente aquilo que recebe do outro, quer exprimir-se por inteiro, quer transmitir a sua vontade, mesmo que não se receba em troca mais do que sentimentos ternos, cortesia, amizade ou paciência. Todas as grandes paixões são sem esperança, de outra forma não seriam paixões (...). Sándor Márai, in As velas ardem até ao fim, ed. Dom Quixote
¶ 8 de Janeiro de 2005
Life (in a way)
Life In A Love Escape me? Never - Beloved! While I am I, and you are you, So long as the world contains us both, Me the loving and you the loth, While the one eludes, must the other pursue. My life is a fault at last, I fear - It seems too much like a fate, indeed! Though I do my best I shall scarce succeed - But what if I fail of my purpose here? It is but to keep the nerves at strain, To dry one's eyes and laugh at a fall, And baffled, get up to begin again, - So the chase takes up one's life, that's all. While, look but once from your farthest bound, At me so deep in the dust and dark, No sooner the old hope drops to ground Than a new one, straight to the selfsame mark, I shape me - Ever Removed! Robert Browning
¶ 8 de Janeiro de 2005
Da felicidade
(para P.M., pela mais óbvia das razões) Eis o meu amado, que me diz: Levanta-te, apressa-te, amiga minha, pomba minha, formosa minha, e vem. O meu amado é para mim, e eu para ele (...). A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois. In Cântico dos cânticos
¶ 8 de Janeiro de 2005
Da serenidade
(para P.M., por razões óbvias) Impuro e desfigurante é o olhar da vontade. Só quando nada cobiçamos, só quando o nosso olhar nada mais é senão pura observação, é que a alma das coisas, a sua beleza, se nos revela. Hermann Hesse
¶ 8 de Janeiro de 2005
Campanha(s)
(ou do grau zero do optimismo) A elaboração e aprovação das listas de candidatos a deputados à Assembleia da República mostrou a fragilidade dos dois maiores partidos da cena política nacional. Se a confusão e a incoerência eram já esperadas no PSD (que não deixou tais expectativas em mãos alheias...), a verdade é que o PS também não foi brilhante nesta primeira fase da chamada pré-campanha eleitoral. As pressões das estruturas partidárias continuam a ser um travão fortíssimo à renovação dos actores políticos, uma condicionante quase inafastável à vontade participativa dos cidadãos que, companheiros de percurso embora, consideram primordial a manutenção do seu estatuto de independência; mais do que isso, essas pressões conseguem distorcer, em autênticos braços de ferro, tomadas de posição que, à partida, estavam anunciadas pela própria liderança partidária. No caso do PS, mais interessante porque é aí que se pode encontrar, apesar de tudo, o depósito de um grão de esperança na melhoria da vida política nacional e no "refresh" da acção governativa, o tratamento dado a mulheres como Sónia Fertuzinhos e Helena Roseta entra em contradição com a atenção supostamente dada à questão da igualdade (que inclui a controversa questão das quotas, como se sabe). José Sócrates tem um caminho espinhoso, entre a máquina antiga e alguma vontade de inovação. No caso das listas para as legislativas, digamos que perdeu o primeiro round, se o que realmente pretendia era demonstrar força face às pressões internas, locais, do aparelho. Mais importante agora serão as ideias, as propostas e, acima de tudo, a equipa que conseguir formar para governar após a (praticamente) certa vitória eleitoral que o espera. Esperemos, a bem da efectiva melhoria do estado de coisas neste país, vitimado por sucessivas perdas e abandonos (além de agraciado, nos últimos seis meses, com o circo mais ridículo que já tinha passado por um órgão de soberania - e, ainda por cima, com o pão em decréscimo...), que os próximos rounds tenham finais bem diferentes.
¶ 8 de Janeiro de 2005
Wiinding roads (2)
Well, the rain keeps on coming down It feels like a flood in my head And that road keeps on calling me Screaming to everything lying ahead And it's a winding road I've been walking for a long time I still don't know Where it goes And it's a long way home I've been searching for a long time I still have hope I'm gonna find my way home And I can see a little house On top of the hill And I can smell the ocean The salt in the air And I can see you You're standing there And you're washing your car And I can see California sun in your hair And its a winding road I've been walking for a long time Still don't know Where it goes And it's a long way home I've been searching for a long time Still have hope I'm gonna find my way home All these dreams took me so far And I felt I just couldn't go on And I want to hang Out the window of your car And see just how good this baby can run 'Cause it's a winding road I've been walking for a long time And I still don't know Where it goes And it's a long way home I've been searching for a long time Still have hope We're gonna find our way home It's a winding road Still have hope One day we'll find our way home It's a long way home I've been searching for a long time Still have hope We're gonna find our way home It's a long way home It's a long way home Bonnie Somerville
¶ 8 de Janeiro de 2005
Winding roads (1)
The long and winding road That leads to your door Will never disappear I’ve seen that road before It always leads me her Lead me to you door The wild and windy night That the rain washed away Has left a pool of tears Crying for the day Why leave me standing here Let me know the way Many times I’ve been alone And many times I’ve cried Any way you’ll never know The many ways I’ve tried But still they lead me back To the long winding road You left me standing here A long long time ago Don’t leave me waiting here Lead me to your door But still they lead me back To the long winding road You left me standing here A long long time ago Don’t leave me waiting here Lead me to your door The Beatles
¶ 7 de Janeiro de 2005
Pura alegria
Com espanto inicial e alegria condicente, cada um encontrou no outro o fiel depositário de si mesmo.
¶ 7 de Janeiro de 2005
Das expressões regulares
(ou dos momentos em continuum) Tinham o olimpo em casa. Amavam-se em sessões contínuas.
¶ 7 de Janeiro de 2005
Causa e efeito
Não sabiam se o sexo era esplenderoso porque havia amor, ou se ambos os registos eram faustosos em completa autonomia existencial, justaposta por mera benção dos céus. Incapazes perante tão magna questão, resolveram, por comum acordo, resignar-se a viver amorosamente em estado de desejo intenso.
¶ 7 de Janeiro de 2005
Da intertextualidade
Habituados que estavam a escrever sobre a(s) vida(s), viam a sua história tomar, a espaços, uma visibilidade quase corpórea que pedia para ser lançada no vento, ao sabor do modo fulgurante como viviam aquele amor.
¶ 7 de Janeiro de 2005
Da respiração
Diziam agora que do interesse tinham passado à atracção recíproca, do respeito mútuo à confiança pelo (re)conhecimento; da consideração até ao princípio do amor tinham voado sem dar conta. As mãos depressa tinham avisado acerca do fogo no centro dos corpos, mas então não prestaram a devida atenção. Falavam de paixão, mas ela não gostava da palavra efémera. Distraídos numa dança infinita, ficaram reféns de um desejo recorrente alimentado pela mais simples respiração.
¶ 7 de Janeiro de 2005
All the luck
He had white horses And ladies by the score All dressed in satin And waiting by the door Ooh, what a lucky man he was Ooh, what a lucky man he was White lace and feathers They made up his bed A gold covered mattress On which he was laid Ooh, what a lucky man he was Ooh, what a lucky man he was He went to fight wars For his country and his king Of his honor and his glory The people would sing Ooh, what a lucky man he was Ooh, what a lucky man he was A bullet had found him His blood ran as he cried No money could save him So he laid down and he died Ooh, what a lucky man he was Ooh, what a lucky man he was Emerson, Lake & Palmer
¶ 6 de Janeiro de 2005
Da diacronia
A felicidade presta-se bem mais a ser vivida do que (d)escrita, pensou, passeando os dedos ao de leve sobre o teclado, sem conseguir pousá-los, as palavras tão etéreas que não conheciam a força da gravidade; deixou no ar um sorriso em memória do tempo em que dedicava caracteres incontáveis ao "amor desgraçadinho" e preparou-se para mais uma noite naqueles braços.
¶ 6 de Janeiro de 2005
<em>Black coffee</em>
Ter sonhos magníficos era uma perda de tempo que lamentava contrafeita. A realidade desperta era agora desmesuradamente superior.
¶ 6 de Janeiro de 2005
Tempus fugit
Os dias continuam cavalos à solta, as noites chegam e só apetece derreter o frio que teima em deixar marcas nas janelas e já não entra até ficar rente à alma. As manhãs iluminam a saída do sonho e oferecem a realidade maior daquele olhar, mais envolvente do que qualquer ficção. As horas escorrem em vertigem e já o dia vai a meio, e o mundo à espera, as regras, os laços, a pressa, a forma. Escrever fica então na margem da voracidade. O sangue pulsa mais forte do que o tempo longo da reflexão. É preciso respirar nos intervalos da revelação. Correm rumores insistentes de que haverá mais tempo, a pouco e pouco, inscrito no fogo da vida.
¶ 6 de Janeiro de 2005
On a king's day
Accuse me not, beseech thee, that I wear Too calm and sad a face in front of thine; For we two look two ways, and cannot shine With the same sunlight on our brow and hair. On me thou lookest with no doubting care, As on a bee shut in a crystalline; Since sorrow hath shut me safe in love's divine, And to spread wing and fly in the outer air Were most impossible failure, if I strove To fail so. But I look on thee - on thee - Beholding, besides love, the end of love, Hearing oblivion beyond memory; As one who sits and gazes from above, Over the rivers to the bitter sea. Elizabeth Barrett Browning
¶ 4 de Janeiro de 2005
Back in business
(ou o outer world* ataca de novo) O tempo tem sido curto para a escrita habitual no Modus (entre as meias verdades e as liberdades poéticas, sempre), pelas melhores e mais brilhantes das razões, mas o curso da realidade não se suspende e é preciso regressar ao terreno, à compensação do que se faz com gosto (e como modo de vida) e ao olhar, atento e bem desperto, sobre o ambiente circundante. E este é um mês onde se aguardam coisas interessantes - depois do discurso circular de Sampaio, da eterna sugestão dos pactos de estabilidade, da repisada necessidade de crescimento, espera-se que haja qualquer coisa de novo no ar. Sendo certo que é preciso algum optimismo (os cépticos diriam mesmo autismo...) para esperar muito da campanha eleitoral que se aproxima, ao menos há uma curiosidade natural face aos Estados Gerais II do PS (baptizados com acerto duvidoso como Novas Fronteiras) e uma provavelmente infundada esperança na capacidade de os partidos que perderam o Governo conseguirem tornar este período num momento de propostas coerentes (o que, pelo andar da carruagem,deve ser uma autêntica impossibilidade nos termos - veja-se o caso do convidado/desconvidado número dois da lista do PSD para o Porto). Em qualquer caso, com ou sem maldição chinesa a cair-nos em cima, certo que é que algumas coisas poderão mudar para melhor, se houver uma aposta das pessoas na mudança e na renovação - para uma melhor definição do papel do Estado na vida económica, para uma clarificação das políticas sociais na esfera que independe das regras e princípios comunitários, para o relançamento de uma participação cívica que, se é verdade que foi sempre deficitária, tem atingido sucessivos níveis de revisão em baixa mais do que preocupantes nos anos mais recentes. Enfim, dia a dia na universidade implantado de novo, coisa pública a requerer focus - nada mau para começo de ano (por mais arbitrária que seja a divisão temporal), e tudo isto à luz nova de um modus vivendi infinitamentediferente e mais pleno. *a primeira escolha seria "o mundo lá fora", mas a discrição impede tal subtítulo denunciador...
¶ 3 de Janeiro de 2005
Ocupações 2
Leu menos durante alguns dias, ocupada em respirar, em (re)conhecer o oxigénio que nunca tinha julgado verde, brilhante, quente, dotado de luz própria e cintilante, e que agora sorvia a haustos plenos. As palavras dos outros esperavam-na, pacientes, como velhas amizades inquebráveis. Os dias eram curtos e as noites brevíssimas de mais para conseguir chegar depressa a essa rota habitual, só aos poucos retomada. Viver é ocupação exigente e exclusiva quando o fogo devora Cronos, pensou.
¶ 3 de Janeiro de 2005
Da sobrevivência
"-Que é que queres? Sobreviveste. Pronunciou-o como se se tratasse de uma sentença. E também como se fosse uma acusação. Olhava em frente, na penumbra, com olhos míopes, era muito velho (...). Então percebi que quem sobrevive a alguma coisa não tem o direitode formular uma acusação. Quem sobrevive a alguma coisa ganhou o seu processo, não tem direito, nem razão, para acusar alguém; era mais forte, mais astuto, mais agressivo. Como nós os dois - diz lacónico e seco." Sándor Márai, in As velas ardem até ao fim, ed. Dom Quixote.
¶ 3 de Janeiro de 2005
Soneto (para P.M.)
(uma das conversas da manhã - continuação) When to the sessions of sweet silent thought I summon up remembrance of things past, I sigh the lack of many a thing I sought, And with old woes new wail my dear time's waste: Then can I drown an eye, unused to flow, For precious friends hid in death's dateless night, And weep afresh love's long since cancell'd woe, And moan the expense of many a vanish'd sight: Then can I grieve at grievances foregone, And heavily from woe to woe tell o'er The sad account of fore-bemoaned moan, Which I new pay as if not paid before. But if the while I think on thee, dear friend, All losses are restored and sorrows end. William Shakespeare
¶ 3 de Janeiro de 2005
Ocupações
Ocupada em sorver a vida, escrevia menos. Não por falta de assunto, nem de palavras que a percorriam como arrepios ou se soltavam no ar, leves, voando no sopro de risos aos pares, mas somente porque o tempo não conseguiu dilatar-se na razão directa da felicidade partilhada.
¶ 2 de Janeiro de 2005
<em>Must</em>
- You must believe in spring, disse-lhe, através de Bill Evans, a harmonia dos sons em eco de outras que lhes pertenciam. Depois da simetria, depois da semelhança, para além da sincronia - o espaço da vida em largo espectro.
¶ 2 de Janeiro de 2005
Da esfera em movimento
Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Não tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pode descansar, Pois consigo tal alma está liada. Mas esta linda e pura semideia, Que, como o acidente em seu sujeito, Assim co'a alma minha se conforma, Está no pensamento como ideia; O vivo e puro amor de que sou feito, Como matéria simples busca a forma. Luís de Camões
¶ 1 de Janeiro de 2005
Palavras e silêncios
Falavam horas a fio, e as conversas entrelaçavam-se, suspendiam o curso natural, volteavam no ar e desciam com suave gravidade até pousarem de novo nos fios de voz. As palavras dele eram imensas, ricas e barrocas, fortes e sardónicas, doces e francas, límpidas até ao limite do dizível. E ela amava-o nas palavras, primeira ponte antes das mãos, passeava nas ruas desenhadas assim, na liberdade das ideias, na autenticidade das emoções, até desembocar nas praças luminosas da verdade, presente de uma noite espraiada em muitas outras, trazida dentro do mais puro cristal.
¶ 1 de Janeiro de 2005
Banalidade(s)
Acordou com o sol em arco ascendente, reflectido no verde que era seu agora. O calendário ditava outra numeração para os próximos 364 dias, uma enormidade em fila suave, à espera, com mistério dentro. Envolveu-se naqueles braços onde o ano a tinha encontrado em plena alegria e disse-lhe, em voz baixa, ligeiramente rouca, feliz por ter pouco espaço até ao destinatário:"Hoje vou fazer um post completamente banal". Ele sorriu, a atenção nos cabelos ondulantes dela, nos movimentos, na proximidade total daquele corpo que tornara seu. Muitas horas mais tarde, ela cumpriu a promessa do primeiro dia do ano.