Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de outubro 2008


31 de Outubro de 2008

Miró

mir%C3%B2.jpg fim de semana a cores


31 de Outubro de 2008

Deferência e cortesia

O ancião pediu a palavra e ouviu o silêncio como deferência e cortesia com que o grupo oferecia seu tempo a ouvir os anciãos dizerem dos tempos idos dos prazeres anteriores e das felicidades alcançadas em pares e famílias e dos filhos oriundos e descendentes da linhagem nobre da raça pura em constância e fechamento sobre mundos ininteligíveis e não alcançados além da poeira e dos desertos fechados aos passos e aos cérebros cansados dos guerreiros que foram até uma parte e retornaram dizendo das impossibilidades (...) Pedro Du Bois


31 de Outubro de 2008

Crossing The Water

Black lake, black boat, two black, cut-paper people. Where do the black trees go that drink here? Their shadows must cover Canada. A little light is filtering from the water flowers. Their leaves do not wish us to hurry: They are round and flat and full of dark advice. Cold worlds shake from the oar. The spirit of blackness is in us, it is in the fishes. A snag is lifting a valedictory, pale hand; Stars open among the lilies. Are you not blinded by such expressionless sirens? This is the silence of astounded souls. Sylvia Plath


31 de Outubro de 2008

William Strang

William%20Strang.jpg cidade a sépia


31 de Outubro de 2008

Dia verdadeiro

Porque é tempo de romper com tudo isto é tempo de unir no mesmo gesto o real e o sonho é tempo de libertar as imagens as palavras das minas do sonho a que descemos mineiros sonâmbulos da imaginação É tempo de acordar nas trevas do real na desolada promessa do dia verdadeiro Alexandre O'Neill


31 de Outubro de 2008

Just Because

Just because people love your mind, doesn't mean they have to have your body, too. Richard Brautigan


30 de Outubro de 2008

Novak

novak.jpg outro tempo, outra luz


30 de Outubro de 2008

Galáxias

De noite no céu faz sol. Tudo palpita animado de vida. De noite o mundo duplo do além é como o centro da terra. Movem-se as galáxias brancas como se estivéssemos em pleno dia. O céu é o interior da terra. Palpitam aí os abismos incriados destes fogos. Penso nas galactites, pedaços que estalaram do céu. O céu é uma via de luz. Vêem-se correr as espessas resinas do dia. larvas de pus. Fogos galácticos como estradas dum sono branco. Acordam, mas não se levantam. Andrómeda com a sua cinza enxuta fermenta através do escuro uma brancura diurna. Resina expansiva. Andrómeda tem os braços cheios de leite. Estátua compacta enquanto em seu redor o céu está repleto de prata. A noite, lugar galactífero, pedra de leite que recorda na terra o sol. As galáxias são a matéria mesma da memória. António Cândido Franco


30 de Outubro de 2008

(Des)Tempo

Dizemos tempo às horas fossem caminhos percorridos e estáticas esperas o espaço transfigurado prende o corpo: onde e sempre nos recolhe aos começos recomeços: encontros fáticos do acontecido em outros versos o adverso advérbio esconde a ação na temporalidade restrita dos amantes, onde se desconhecem horas dependuradas em avisos não testados: o experimento ilógico das verdades, a espaçonave em transbordo. Pedro Du Bois


30 de Outubro de 2008

Joseph Pennell

joseph%20pennell.jpg outra chuva


30 de Outubro de 2008

A luz e o sangue

A luz e o sangue. A luz que é o céu do meu corpo e o sangue as manhãs em carne violenta que são a terra do meu céu. Boca de mitos. O céu e a terra. O céu que é a alma da terra ou a matéria eterna e a terra estrelas de sangue que são o corpo do céu ou o espírito efémero. O corpo e a alma. O corpo que é a terra da alma. A alma a carne azul e imortal que é o céu do corpo. Eu e ela. Eu que sou o mundo a substância transitória e ela que é a forma eterna. Luz e sangue. Céu e terra. Corpo e alma. Eu e ela. Eu sou o corpo de terra do céu a sombra de carne da Via-Láctea. Sou feito de estrelas vivas de sangue. Sou o amanhecer do universo a transparência do céu a palavra a fazer-se pasta seca de lama. E ela luz ausente jóia de estrela é a alma de luz da terra. Céu e terra. Terra que é sangue e corpo mas corpo que encontro ao céu e céu que é luz e alma mas alma que encontro à terra. Eu e ela. Eu que sou já o céu mas o céu verde e denso e ela que é a terra mas a terra azul e eterna com flores de estrelas. Há partes de mim que são dela e há partes dela que são minhas. A minha alma não é minha. É dela. O seu corpo não é dela. É meu. Eu sou o seu desejo e ela é a minha saudade. Ela é a noite original a luz da treva mas antes dela existiu o meu sol que anoiteceu saudoso da sua escuridão. Ela é o canto inicial mas antes dela existiu a minha solidão que chorou de saudades suas. Dissolvido em trevas eu amanheci com o seu desejo arrefecendo em sangue e canto a sua noite e o seu silêncio. António Cândido Franco


29 de Outubro de 2008

Como quem escreve com sentimentos

II As flores vinham nela e era primavera mas tanto a nomeei e tanto repeti erros numa estratégia imprópria para ela tamanho amor expus que cedo a consumi A noite quando ao fim descer decerto há-de ser certa solução. Foi há muito a infância Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede estendo as mãos talvez te fique a inocência A vida é uma coisa a que me habituei adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto A infância é uma insignificância eu sei e apenas por a ter perdido a amamos tanto Estou sozinho e então converso com a noite das palavras que nos subjugam nos submetem As coisas passam e em vez delas é aceite o nosso sistema de signos onde as metem Esta minha existência assim crepuscular devida àquela que é rastos destroços restos acusa hoje alguma intriga consular de quem não tem cabeça a comandar os gestos Foi uma rosa rubra a autora desta obra aberta e arrogante grácil flor do instante que triunfante não há coisa que não abra para ferir quem a viu e morrer de repente E noite sou e sonho e dor e desespero mero ser sórdido e ardido e encardido mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero um arco com vitrais aos vendavais vedado E embora a minha fome tenha o nome dela e da água bebida na face passada não peço nada à vida que a vida era ela e que sei eu da vida sei menos que nada Ruy Belo


29 de Outubro de 2008

Muray

Muray%20greta%20garbo.jpg Greta Garbo, ou o sorriso de um mito


29 de Outubro de 2008

Como quem escreve com sentimentos

I Estou sujeito ao tempo sou este momento perguntam-me quem fui e permaneço mudo o tempo poisa-me nos ombros em relento partiu no vento essa mulher e perdi tudo Já não virá ninguém por muito que vier em vão esperei a rosa da minha roseira quando um pássaro sai dos olhos da mulher é porque ela é de longe e não da nossa beira Resta-me um sonho desconexo e desconforme Na haste da camélia que o vento quebrou jamais a vida branca como ela dorme Eu era essa camélia e nunca mais o sou A minha vida é hoje um sítio de silêncio a própria dor se estreme é dor emudecida que não me traga cá notícias nenhum núncio porque o silêncio é o sinónimo da vida O mundo para além dessa mulher sobrava tudo vida vulgar tumultuária e cega o brilho do olhar equilibrava a chuva nas suas costas hoje toda a luz se apaga Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar. enfim não existia ou só ela existia Asas que ela tivesse deixou-as queimar e tê-la-á levado estranha ventania Daqueles traços fisionómicos de pedra não quero já ouvir a voz que às vezes vem na calma destacada por um cão que ladra Não há ninguém perto de mim sinto-me bem Cada casa que roço é escura como um poço se sou alguma coisa sou-o sem saber sossego solitário sem mistério isso talvez tivesse sido o que sempre quis ser Ruy Belo


29 de Outubro de 2008

Nesta última tarde

Nesta última tarde em que respiro A justa luz que nasce das palavras E no largo horizonte se dissipa Quantos segredos únicos, precisos, E que altiva promessa fica ardendo Na ausência interminável do teu rosto. Pois não posso dizer sequer que te amei nunca Senão em cada gesto e pensamento E dentro destes vagos vãos poemas; E já todos me ensinam em linguagem simples Que somos mera fábula, obscuramente Inventada na rima de um qualquer Cantor sem voz batendo no teclado; Desta falta de tempo, sorte, e jeito, Se faz noutro futuro o nosso encontro. António Franco Alexandre


29 de Outubro de 2008

Man Ray

lee_miller_man_ray_1930.jpg Lee Miller, ou a intemporalidade do olhar


29 de Outubro de 2008

Um pouco mais

(gentileza de Amélia Pais) Um pouco mais e veremos florescer as amendoeiras os mármores brilharem ao sol o mar a ondear um pouco mais para nos levantarmos um pouco mais alto. Yorgos Seferis, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis


28 de Outubro de 2008

Outside History

These are outsiders, always. These stars— these iron inklings of an Irish January, whose light happened thousands of years before our pain did; they are, they have always been outside history. They keep their distance. Under them remains a place where you found you were human, and a landscape in which you know you are mortal. And a time to choose between them. I have chosen: out of myth in history I move to be part of that ordeal who darkness is only now reaching me from those fields, those rivers, those roads clotted as firmaments with the dead. How slowly they die as we kneel beside them, whisper in their ear. And we are too late. We are always too late. Eavan Boland


28 de Outubro de 2008

Picabia

Udnie.Picabia.jpg manhã com surreal dentro


28 de Outubro de 2008

Mínimo holocausto

O resto da urgência descansa desequilibradamente assiste a um pouco de memória a rainha do êxito junta colchas e parapeitos e o vento copiado das sondagens das lentas ilustrações de longo curso retém-se a custo o músculo grosso descompõe-se a fartura - tão seca segue por carta. Boaventura de Sousa


27 de Outubro de 2008

Essência da saudade

(gentileza de Amélia Pais) Passaste por mim de madrugada etérea, levemente e foste sombra Assim te perdi quando entraste na luz da manhã Sinal visível da tua passagem a rosa vermelha deixada no chão do meu peito Manuel Martins Gaspar Tomé


27 de Outubro de 2008

Man Ray

man%20ray.jpg duplicidades


27 de Outubro de 2008

An Almost Made Up Poem

I see you drinking at a fountain with tiny blue hands, no, your hands are not tiny they are small, and the fountain is in France where you wrote me that last letter and I answered and never heard from you again. you used to write insane poems about ANGELS AND GOD, all in upper case, and you knew famous artists and most of them were your lovers, and I wrote back, it’ all right, go ahead, enter their lives, I’ not jealous because we’ never met. we got close once in New Orleans, one half block, but never met, never touched. so you went with the famous and wrote about the famous, and, of course, what you found out is that the famous are worried about their fame –– not the beautiful young girl in bed with them, who gives them that, and then awakens in the morning to write upper case poems about ANGELS AND GOD. we know God is dead, they’ told us, but listening to you I wasn’ sure. maybe it was the upper case. you were one of the best female poets and I told the publishers, editors, “ her, print her, she’ mad but she’ magic. there’ no lie in her fire.” I loved you like a man loves a woman he never touches, only writes to, keeps little photographs of. I would have loved you more if I had sat in a small room rolling a cigarette and listened to you piss in the bathroom, but that didn’ happen. your letters got sadder. your lovers betrayed you. kid, I wrote back, all lovers betray. it didn’ help. you said you had a crying bench and it was by a bridge and the bridge was over a river and you sat on the crying bench every night and wept for the lovers who had hurt and forgotten you. I wrote back but never heard again. a friend wrote me of your suicide 3 or 4 months after it happened. if I had met you I would probably have been unfair to you or you to me. it was best like this. Charles Bukowski


27 de Outubro de 2008

Texto perdido entre o escritório e o café

Não eram preciosas eram exactas tinham chegado em procissão e estavam a entrar no corpo do encontro não quis cercá-las de linhas era tão cedo quanto tarde, utilizava o espelho de memória com a minúscula atenção de última hora a história de uma perda de que não me lembro. Boaventura de Sousa


26 de Outubro de 2008

Picabia

picabia10.jpg o peso dos dias


26 de Outubro de 2008

Do Medo

É de ti que eu sou irmã por ti fui trocada em criança quando as estrelas semearam a noite (Ficávamos chorando de medo se o laço branco da trança não desse para a escuridão toda do quarto) Tenho os silêncios que me emprestaste e na cidade que levantámos há pouco (não destruiremos nunca) habitam os pais com os não irmãos mortos à nascença que o eco de um flauta eternizou no cais dos barcos pequenos de papel somos irmãos de ninguém ancorámos com amarras de dúvida é nosso irmão o medo do poente a porta azul da morte Em redor em redor de nós a solidão voou borboleta negra de metal caiu enforcado público na gravata verde (a mesma solidão que cega os arcos concêntricos das pupilas) desde a rua ao bolor dos corpos poetas da porta esquecida sem número à mulher vendida aos ventos da noite sem nevoeiros asfixiamos nítidos nos passeios nos fatos nas cadeiras nas cúpulas nos clarins e sentes contigo os corpos das mulheres de bruços sobre o dia renascidos maduros os limites da carne Há nebulosas de anos sem sentido que vimos aprendendo o amor há um embrião de veia há uma veia atávica vermelha nos mil séculos anteriores ao homem Quando nos será possível um suicídio exacto em casas impossíveis em ondas impossíveis em (integralmente areia) desertos impossíveis? Nasceu o sol na erva a erva nos degraus os degraus desceram ao horizonte Luiza Neto Jorge


26 de Outubro de 2008

A meias

Bebo o meu café enquanto bebes do meu café. Intriga-me que faças isso. Se te posso pedir um (se podes tomar um igual) porque hás-de querer do meu? Que não. Que não queres. Escuso de pedir que não queres. Então começo um cigarro e tu fumas do meu cigarro dizes «tenho quase a certeza de não acabar um sozinha» por isso fumas do meu. Dá-te gozo esse roubar de leves goles furtivos dá gozo participar do prazer que eu possa ter contigo (e entre nós) dá-se agora tudo a meias. João Luís Barreto Guimarães


26 de Outubro de 2008

Lee Miller

miller400.jpg fascínio em estado puro


26 de Outubro de 2008

The Mist

I am the mist, the impalpable mist, Back of the thing you seek. My arms are long, Long as the reach of time and space. Some toil and toil, believing, Looking now and again on my face, Catching a vital, olden glory. But no one passes me, I tangle and snare them all. I am the cause of the Sphinx, The voiceless, baffled, patient Sphinx. I was at the first of things, I will be at the last. I am the primal mist And no man passes me; My long impalpable arms Bar them all. Carl Sandburg


26 de Outubro de 2008

dizendo o escuro

sofro o fio que o cabelo alinha no chão. a noite que vem comer a luz ao dia. minha voz superior. deus certamente corrige meus olhos. vejo o frio, a paralisia do vento. e preocupo-me lentamente. um estar vivo sem qualquer obrigação. vou dizendo o escuro pormenorizadamente valter hugo mãe


25 de Outubro de 2008

Paul Poiret

things-of-paul-poiret.jpg melancolia ao anoitecer


25 de Outubro de 2008

Ghetto

Denso es el aire aquí. Y tibio. Lo respiro entre casas que quiebran su fachada en el agua. Un gato mansamente se me enreda en las piernas y me retiene inmóvil delante de Yahveh. María Victoria Atencia


25 de Outubro de 2008

O decifrador de imagens

O decifrador de imagens persegue um fantasma de vestígios como Ulisses amarrado ao querer do conhecer A descoberta é invenção provisória: as vozes não se vêem o que se vê não se ouve A imaginação ergue-se do arrepio da sombra guerrilha entre parênteses ergue-se da constante chacina procurando outra coisa outra causa o outro lado do ver Ana Hatherly


25 de Outubro de 2008

Chagall

chagall71qb7.jpg cores para um sábado


25 de Outubro de 2008

Da voz extensa

as árvores como vento implume ou lápide de um antigo ser alado deus ou voz extensa e eu, no sopé da montanha somos espantalhos no terreno da alma valter hugo mãe


25 de Outubro de 2008

Paul Poiret

Voluminous-Cape-Like-Evening-Coat-by-Paul-Poiret.jpg reflexo em forma de saída nocturna


25 de Outubro de 2008

Sempre Mulher

Enquanto dormes mulher tens sobre ti o peso do ignorado na sucessão do tempo hiperbólico teu sono mulher o repouso aventado no primeiro sopro: razões recolhidas ao seio. A tormenta com que te assustas enquanto acordada teu sonho mulher avoluma e concretiza as ocultações da mente em histórias fragmentadas e te reconheces como verdadeira. O medo da ressaca e a violência com que as ondas surgem e desaparecem nos teus pensamentos. Pedro Du Bois


24 de Outubro de 2008

A recusa das imagens evidentes

Há um cipreste que se dissimula No dia que nos leva pela mão. E entre brasas de sol que ardem na rua Uma pomba que faz de coração. Voa: uma linha recta para a lua Em sonhos que nos levam de balão. Perversidade de uma paz futura Onde só chegaremos de caixão? E nada nos recorda esse futuro Escondido atrás das nuvens que trouxeram Ao nosso rosto os olhos prematuros Das órbitas reais que nos esperam. Natália Correia


24 de Outubro de 2008

O comércio de viver

Viver, entretanto, é ver, ir vendo e também ver inclui dormir sem que nada se desfaça ou exclua no interior dos sonhos. Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios quando, a passar, se retém a espessa água do tempo, da tempestade. Um comércio, apenas - desvio da moeda da trajectória do ouro para o papel. Sempre viver incluiu andar percorrer voar de avião ou com os braços ou num ser de mais rodas que nos conduza a outro sentido ambulatório. Luiza Neto Jorge


24 de Outubro de 2008

Serusier

serusier5.JPG mistérios indecifráveis


24 de Outubro de 2008

É um outono que não é outono

É um outono que não é outono. Tampouco a estação por que se espera Na dor de nos deixarem ao abandono As ninfas que são flores na primavera. No entanto nas coisas o segredo De uma só alma põe a sabedoria Dando à terra repouso no arvoredo De que o cedro é a sagrada biografia. Natália Correia


23 de Outubro de 2008

O Poema

II Piso do poema chão de areia Digo na maneira mais crua e mais intensa de medir o poema pela medida inteira o poema em milímetro de madeira ou apodrece o poema ou se alteia ou se despedaça a mão ateia ou cinco seis astros se percorre antes que o deserto mate a fome Luiza Neto Jorge


23 de Outubro de 2008

Regresso

Ao céu regresso. Quero dizer à terra anoitecida pelo amor. Extasio-me com a terrestre vida dos astros. Passeio por uma estrada de estrelas. Isto é uma estrada de flores sublimadas pela noite. Vou visitar um estábulo em pleno universo. Zodíaco. Jardim zoológico astral. Lá estão as constelações irradiando o seu frio. Quero dizer os animais pela memória desterrados. Regresso à noite. Piso a escuridão. Olho o céu como se a terra visse. As estrelas são flores. As constelações são animais. O céu é um jardim com um estábulo no meio. Comem flores os animais da terra. Mastigam estrelas os do céu. O céu também é um chão mas um chão feito de memória. Estão lá os mitos. Isto é homens elevados pela luz e pela palavra. Pisam-se lá em cima astros como em baixo se pisam pedras. No céu passo por mitos e por ideias. Estão lá poemas. Quero dizer coisas metaforizadas por esta outra noite do mundo íntima e secreta que são as palavras. António Cândido Franco


23 de Outubro de 2008

O Poema

I Esclarecendo que o poema é um duelo agudíssimo quero eu dizer um dedo agudíssimo claro apontado ao coração do homem falo com uma agulha de sangue a coser-me todo o corpo à garganta e a esta terra imóvel onde já a minha sombra é um traço de alarme Luiza Neto Jorge


23 de Outubro de 2008

Pintura Mughal

babur__founder_of_the_mughal_dynasty_mf21.jpg Babur, ou o prazer da leitura


23 de Outubro de 2008

O silêncio em brasa

Nela celebro o êxtase da terra o luminoso nascimento do mundo da carne a esplêndida Primavera quando tudo é vida e desejo fundo Nela celebro a beleza do dia um rio de seiva e sangue fecundo Nela celebro da selva a luxúria quando tudo é sede e prazer jucundo Ela é um fruto de carne da terra um canto azul no princípio de tudo Eu sou apenas a sombra que cerra o último crepúsculo quedo e mudo Sem a chamar aos pés ponho de sua casa de uma palavra o silêncio em brasa António Cândido Franco


22 de Outubro de 2008

Única certeza

Logo que desceu do comboio, só, atravessou a cidade deserta, entrou sozinho no desocupado hotel, franqueou a porta do quarto individual, e escutou com assombro o silêncio. Dizem que levantou o auscultador para chamar a alguém mas é falso, completamente falso. Como se houvesse alguém a quem chamar - ninguém vivia na cidade, ninguém no mundo. Ingeriu a água, as pequenas drageias, e esperou a chegada do sono. Com um certo receio pela sua saúde - tinha pela primeira vez firmado a sua existência - talvez curioso, com amolecidos gestos, sentiu chegar o peso das pálpebras. Horas depois - um enigmático sorriso desenhava-lhe os lábios - a si mesmo anunciou, convictamente, a única certeza que no fim tinha adquirido: jamais voltaria a dormir só num quarto de hotel. Juan Luis Panero


22 de Outubro de 2008

Desconforto

A senhora nega as luzes. Na escuridão o gesto desencontrado: adeus, desdito. Ávida, a paixão não resulta. O instante em brancas nuvens. O céu encoberto em espaços negados ao juízo. A graça da senhora em imagens espelhadas. Confortar o enfermo. Fazer aceitar o enigma da escolha. O sorriso na negação das luzes. Desconforto. Pedro Du Bois


22 de Outubro de 2008

Paul Poiret

ppoiret.jpg descida de temperatura


22 de Outubro de 2008

Onde tudo começa

Fechadura onde a chave remove onde óleo solar se derrama onde cabeça de peixe nada em águas virginais onde tudo começa António Borges Coelho


22 de Outubro de 2008

Used words

Com palavras usadas gastas pelo tempo e o hábito, cujo último alento já se diluiu. Com palavras, como sonhos, queimadas pela vida, nesta noite chuvosa, falo contigo ou pelo menos tento, ligeiramente ébrio, extraindo cada sílaba do país do nunca jamais. E sentindo essa repentina lucidez com a qual, de imediato, rompemos a rotina de ser e conhecer-nos, sentindo, digo, essa rara sensação distante e exangue do whisky, da noite e do silêncio; do ardente desespero com que aceitamos a derrota, dessa vertigem, às vezes -só às vezes -tua e minha, na qual morremos sorrindo de olhos abertos. Sentindo o pouco que é um beijo ao fundo da tua língua ou os teus olhos espraiados nos meus, ou as nossas mãos unidas no ar, percorrendo um museu de assumidos fracassos. Desfilam, batalhão desolado de fantasmas, nomes e nomes de tão distintos ecos. Pretendemos, com abolidos rostos, datas caducadas e cidades inatingíveis, responder a uma velha questão cuja resposta só a morte já conhece. Anos e anos, voluntários exílios de seres e países, os filhos que não quis ter, os que tu sim tiveste, o tremor do desejo que ainda guardas na tua pele, o meu eterno navegar de cama em cama, reúnem-se e afirmam o seu destino frente à cerimónia do amanhecer. Juan Luis Panero, versão de António Cabrita e Teresa Noronha


21 de Outubro de 2008

No começo do Outono

Descem os socalcos aureoladas pela luz andam a luz salpica como dardos Malvasia mourisca dona branca formosa As deusas voltaram à terra das vides enfeitam os lábios com os bagos vermelhos António Borges Coelho


21 de Outubro de 2008

Piero di Cosimo

661px-Piero_di_Cosimo_004.jpg olhar de Piero di Lorenzo, pintor florentino e discípulo de Cosimo Rosselli, renascentista.


21 de Outubro de 2008

Caminho

Caminho sem pés e sem sonhos só com a respiração e a cadência da muda passagem dos sopros caminho como um remo que se afunda. os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes para que a elevação e a profundidade se conjuguem. avanço sem jugo e ando longe de caminhar sobre as águas do céu. Daniel Faria


21 de Outubro de 2008

Mais tarde

Y esta palabra, este papel escrito por las mil manos de una sola mano, no queda en ti, no sirve para sueños, cae a la tierra: allí se continúa. No importa que la luz o la alabanza se derramen y salgan de la copa si fueron un tenaz temblor del vino, si se tiñó tu boca de amaranto. No quiere más la sílaba tardía, lo que trae y retrae el arrecife de mis recuerdos, la irritada espuma, no quiere más sino escribir tu nombre. Y aunque lo calle mi sombrío amor más tarde lo dirá la primavera. Pablo Neruda


20 de Outubro de 2008

Lacombe

LacombeGeorges.jpg sonho antes de dormir


20 de Outubro de 2008

Cortina

Era Inverno e nós tínhamos sede. Talvez por causa do medo, essa forma de sermos fiéis a nós próprios. Cambaleámos até ao fundo de Lisboa, que nesse dia se estipulou ser uma casa outrora propriedade de um judeu. Pássaros esvoaçavam numa sala sem gente, a janela ao fundo, em contraluz. Escondemo-nos atrás de uma cortina, espreitando pelo canto da janela a memória do nosso passado comum. Depois, estupidamente, discutimos poesia. Éramos cinco. Decidimos separar-nos em grupos de quatro. Por qualquer razão fiquei sozinho. Vítor Nogueira


20 de Outubro de 2008

Dos acasos literários

A vida tem destes acasos literários: um comboio, dois livros e a pior das razões para nos apaixonarmos. Tenho vinte e dois anos e o equivalente em retratos teus -periféricos ou não- catalogados de acordo com as horas psicologicamente intermináveis do teu sorriso. O nosso amor é como o lado vazio de uma ampulheta, ou seja , inverso ao próprio tempo que não marca o surgir inesperado daquelas noites em que tudo acontece numa peça de teatro à qual nunca comparecemos. As tuas mãos são um jardim demasiado inconstante para fazer fila e esperar a morte. Tens seis letras no nome e antes que amanheça saberei em que lugar do meu corpo cada uma delas cabe. David Teles Pereira


20 de Outubro de 2008

Silence between the words

In the secular night you wander around alone in your house. It's two-thirty. Everyone has deserted you, or this is your story; you remember it from being sixteen, when the others were out somewhere, having a good time, or so you suspected, and you had to baby-sit. You took a large scoop of vanilla ice-cream and filled up the glass with grapejuice and ginger ale, and put on Glenn Miller with his big-band sound, and lit a cigarette and blew the smoke up the chimney, and cried for a while because you were not dancing, and then danced, by yourself, your mouth circled with purple. Now, forty years later, things have changed, and it's baby lima beans. It's necessary to reserve a secret vice. This is what comes from forgetting to eat at the stated mealtimes. You simmer them carefully, drain, add cream and pepper, and amble up and down the stairs, scooping them up with your fingers right out of the bowl, talking to yourself out loud. You'd be surprised if you got an answer, but that part will come later. There is so much silence between the words, you say. You say, The sensed absence of God and the sensed presence amount to much the same thing, only in reverse. You say, I have too much white clothing. You start to hum. Several hundred years ago this could have been mysticism or heresy. It isn't now. Outside there are sirens. Someone's been run over. The century grinds on. Margaret Atwood


19 de Outubro de 2008

Paul Poiret

paulpoiret.jpg a lua vista de cima


19 de Outubro de 2008

A página reescrita

Onde se escondem as horas da minha passagem invisível corpo descontraído onde se escondem as feras mal distinguidas dos que sofrem o vazio da ausência em pedra de reconstruídos muros dos isolamentos sei das horas passadas: do tempo vindouro a página reescrita pelas bordas. Pedro Du Bois


19 de Outubro de 2008

Manhã de Outono

Blown from the west, fallen leaves gather in the east. Yosa Buson, translated by Robert Hass


19 de Outubro de 2008

Josefa de Óbidos

josefa_s.jose_e_menino-1.jpg passeio de domingo


19 de Outubro de 2008

Danos irreparáveis

Homens que são como lugares mal situados Homens que são como casas saqueadas Que são como sítios fora dos mapas Como pedras fora do chão Como crianças órfãs Homens sem fuso horário Homens agitados sem bússola onde repousem Homens que são como fronteiras invadidas Que são como caminhos barricados Homens que querem passar pelos atalhos sufocados Homens sulfatados por todos os destinos Desempregados das suas vidas Homens que são como a negação das estratégias Que são como os esconderijos dos contrabandistas Homens encarcerados abrindo-se com facas Homens que são como danos irreparáveis Homens que são sobreviventes vivos Homens que são sítios desviados Do lugar daniel faria


18 de Outubro de 2008

Regresso a Ítaca

Nem sequer tinha um abre-latas de vinte e cinco cêntimos Raymond Chandler Não é como anunciam nos folhetos, As traves dificilmente se apoiam no muro, As janelas estão de rastos. No mar, com uns copos, não é tão tola. Caminhas como um vazio pelas ruas E o sol que te segue desde o céu Já não é mais que a pupila de uma pomba Brilhando no telhado. Mas dobras as últimas esquinas. Parece esta a tua casa, O lugar onde ancoras e governas A hemorragia que é viver Com um morto colado ao passaporte. Passas a porta e já as traves Te assinalam um ponto além do céu. O sol morreu. Na cama Aguarda-te o corpo falso de outro corpo Que outrora desejaste. Manuel Moya


18 de Outubro de 2008

Crematório sentimental - Guia de Bem-Querer

Eu já lá estava. Depois tu vieste molhada na utopia do regresso. E ficámos os dois, sozinhos na pradaria com metros e toupeiras a escavar-nos a imaginação marginal. Tricotámos girassóis e sorrisos em acrílicos Van Gogh, cortamos a orelha esquerda à espera, e moldámos a felicidade segundo o cálculo infinitesimal da cama. Houve vernissages de panos turcos e instalações automáticas nas galerias dos desejos. Houve beberetes e bebedeiras, prados coelho e antónios vieira. Agora estamos os dois sozinhos, cada um com o seu pedaço de tecto e de sonhos, a passearmos ao Domingo com uma cachorrada esfomeada no complexo comercial da paciência. Golgona Anghel


18 de Outubro de 2008

A definição do amor

dantes escrevia poemas de amor. para viver com o amor nos poemas, sempre. depois disseram-me que já toda a gente o fez, que nada mais havia a escrever sobre o amor. que o amor já estava em demasiados poemas. eu aceitei o conselho e passei a escrever poemas de morte. escrevi muitos poemas sobre o meu pai, até ao dia em que percebi que a morte é sinónimo de amor, como tudo é sinónimo do amor. e voltei a escrever o que nada havia a dizer. porque até o poema é sinónimo de amor. Jorge Reis-Sá


18 de Outubro de 2008

Vallotton

Interior%20With%20A%20Woman%20In%20A%20Shirtvalloton.jpg sem pressa


18 de Outubro de 2008

Proposta

(...) Al amor sepultado por tanto tiempo frío, por nieve y primavera, por olvido y otoño, acerquemos la luz de una nueva manzana, de la frescura abierta por una nueva herida, como el amor antiguo que camina en silencio por una eternidad de bocas enterradas. Pablo Neruda


18 de Outubro de 2008

Inquietude

Não sei como consigo amar-te tanto se querer-te assim na minha fantasia é amar-te em mim e não saber já quando de querer-te mais eu vou morrer um dia perseguir a paixão até ao fim é pouco exijo tudo até perder-me enquanto, e de um jeito tal que desconhecia poder amar-te ainda um outro tanto Maria Teresa Horta


17 de Outubro de 2008

La Farge

lafargeBOSegypt.jpg o céu como limite


17 de Outubro de 2008

A história verdadeira

iii A história verdadeira existe no meio das outras histórias, uma confusão de cores, como roupa despida amontoada ou atirada fora, como corações em mármore, como sílabas, como os desperdícios do talho. A história verdadeira é viciosa e múltipla e falsa afinal de contas. Para que precisas tu dela? Não me peças nunca a história verdadeira. Margaret Atwood, trad. de Ana Teixeira


17 de Outubro de 2008

Despropósito

(excerto) Em alto mar refugiar águas paradas. Evidenciar ao cego o desdizer da experiência. Sorrir ao despropósito em medos. Rasgar na imaginação a cortina despossuída. Na aridez do rumo desfazer a palavra escrita. Colocar os pontos em letras ignoradas. Pedro Du Bois


16 de Outubro de 2008

A história verdadeira

ii A história verdadeira perdeu-se durante o caminho para a praia, é alguma coisa que nunca tive, esse negro emaranhado de ramos numa luz evanescente, as minhas pegadas esbatidas cobrem-se com sal água, esta mão cheia de pequenos ossos, a matança daquela coruja; uma lua, papéis amarrotados, uma moeda, o resplendor de um antigo piquenique, as covas feitas na areia por amantes cem anos antes: nenhuma pista. Margaret Atwood, trad. de Ana Teixeira


16 de Outubro de 2008

Paul Poiret

hppaulpoiret1912.jpg o consolo exterior


16 de Outubro de 2008

Preferência

Mais do que amor, do que dinheiro e do que fama, dai-me a verdade. Henry David Thoreau, in Onde vivi e para que vivi, trad. Odete Martins


16 de Outubro de 2008

A história verdadeira

(gentileza de Amélia Pais) Não me peças a história verdadeira; para que precisas tu dela? Não é com isso que me levanto nem o que transporto. Aquilo com que vou navegando, uma faca, fogo azulado, sorte, algumas palavras boas que ainda funcionam, e o instante. Margaret Atwood, trad. de Ana Teixeira


15 de Outubro de 2008

Do desespero

Como se pudésseis matar o tempo sem ferir a eternidade. A maior parte dos homens leva uma vida de mudo desespero. O que é apelidado de resignação é na verdade um desespero incurável. Henry David Thoreau, in Onde vivi e para que vivi, trad. Odete Martins


15 de Outubro de 2008

Missing

LuaCheiaNaRiaFormosa-2007.jpg lua cheia sobre a ria Formosa


15 de Outubro de 2008

Do sentido da permanência

Busca na relação o sentido da permanência do primeiro beijo e do olhar com que a seqüência se fez maior que a realidade fantasiosa do encontro a relação inicial concretizada em palavras de apresentação e desvelo com que lhe abriu a porta e lhe puxou a cadeira e lhe serviu o copo e da relação ante o pôr do sol e o sal no prato adocicada na passagem e a paisagem ao lado: cúmplice e sócia das mãos e dos braços ... Pedro Du Bois


15 de Outubro de 2008

Partial Comfort

Whose love is given over-well Shall look on Helen's face in hell, Whilst they whose love is thin and May view John Knox in paradise. Dorothy Parker


15 de Outubro de 2008

Serusier

serusier.jpg000.jpg interrogação silente


15 de Outubro de 2008

Cor dos dias

Não pode haver nos olhos outra cor que esta camuflada cor dos dias nunca uns olhos suportam outra água que não seja de um rio que se esgota outra boca nascente não pode haver e assim se prova um nome um sabor melancolia não pode em caso algum surgir a dúvida a dúvida acarreta o sofrimento alonga a noite ataca a vida e tudo tão escusado tanto excesso ao menos que dos olhos se retirem as mãos supostas súbitas muralhas contra a cor nascida com o dia tão excessiva a cor a dor esta melancolia que se agacha no fundo de um olhar não pode haver nos olhos outra venda ou seu disfarce ou magro fingimento agora que sabemos onde pomos este corpo de outono consentido e destinado ao vento. Nuno de Figueiredo


14 de Outubro de 2008

Keeping Things Whole

In a field I am the absence of field. This is always the case. Wherever I am I am what is missing. When I walk I part the air and always the air moves in to fill the spaces where my body's been. We all have reasons for moving. I move to keep things whole. Mark Strand


14 de Outubro de 2008

Botticelli

santo%20agostinho%20botticelli.jpg Santo Agostinho, ou a urgência de pensar


14 de Outubro de 2008

Pessimismo existencial

A natureza criou o esquecimento para que nos seja possível suportar o terrível tédio deste minúsculo aquário a que chamamos vida. José Eduardo Agualusa, in Um Estranho em Goa


14 de Outubro de 2008

Razões

razões com que espera da vida o caminho correto e exato das ilusões com que entende o vento assobiar entre frestas recém é quarta-feira e a manhã se apresenta clara em chuvas passageiras elenca razões para ser na continuação afogadas idéias que se remoçam na força suplantada à lógica e a função de pensar naufragada aos primeiros votos a semana passa lenta no tempo e exato e o relógio da cozinha determina a fome e a hora das limpezas e dos polimentos nas razões a família se acomoda e a vida mancha o destino onde é encontrado inerte sobre o sofá em única luz. Pedro Du Bois


13 de Outubro de 2008

Vallotton

la_visitefelxvalloton.jpg cores da noite


13 de Outubro de 2008

Nada de nada

(gentileza de Amélia Pais) Caminhamos E caminhamos numa solidão de areia, Onde nada foi dito ainda das coisas que atravessamos E das coisas que nos atravessam Sem que o saibamos, Onde a neve é a neve, Onde a neve cobre toda a planura E torna ainda mais espessas as nossas incertezas. Caminhamos Caminhamos desde sempre. E não percebemos nada de nada. Yves Namur


13 de Outubro de 2008

Upon A House Shaken By The Land Agitation

How should the world be luckier if this house, Where passion and precision have been one Time out of mind, became too ruinous To breed the lidless eye that loves the sun? And the sweet laughing eagle thoughts that grow Where wings have memory of wings, and all That comes of the best knit to the best? Although Mean roof-trees were the sturdier for its fall. How should their luck run high enough to reach The gifts that govern men, and after these To gradual Time's last gift, a written speech Wrought of high laughter, loveliness and ease? William Butler Yeats


13 de Outubro de 2008

Pintura Mughal

portrait_of_mughal_emperor_shah_jahan_wh45.jpg retrato do imperador mughal Shihab-ud-din Muhammad Shah Jahan I, ou a busca de inspiração para mais um dia no mundo em rápida mudança


13 de Outubro de 2008

O tempo da monção

Chegava um dia ao tempo da monção. No alto das figueiras cheirava-se o mar e o vento trazia o barulho das suas ondas a rebentar nas rochas em punhados de rendas brancas ainda por bordar. As falésias sopravam os fenos e as vinhas salgavam-se nos pingos da chuva trazida nas asas e nos gritos das gaivotas invisíveis. Não apetecia a correr, a desbravar os mistérios da terra por cultivar ou a subir aos galhos mais altos das papaieiras curvadas pelo ar convulso dos estios. Deitados no chão imaginávamos as brincadeiras desenhando nas nuvens as rotas pelos plantios. Chegadas as noites apurávamos os ouvidos ao piar das corujas e aos fogos fátuos nos montes com medo das feiticeiras e das bruxas dançando até se cansarem de folia à porta dos cemitérios ou saltando à fogueira nas encruzilhadas. Chegava um dia o tempo da monção. Se demorasse, como costumava demorar, o cerco dos temores era o mesmo debaixo da Lua cheia. E as histórias vinham em contas completas de rosário. Eram sempre inventadas. José António Gonçalves


12 de Outubro de 2008

Introdução ao Tempo

III Será que este instante te acomoda no tempo? A desvanecer-se como o tufão que mercuriza os ilhéus, um trigo lento e milenar em germinação, a pirâmide que se anguliza. Somos cúmplices, onde o rosto desponta e devora e surge a cidade submersa da infância, há um calor tão denso quanto é estridente, rumorejante, a tua memória. Sentes no teu dorso o escaninho que conduzes? Avalias o que isto cala para a jornada? Contém gestos e palavras. Alucina-te, mas silencia. Corrói-te. No invisível despontar das sombras compassa o futuro, dilacera lentamente o pão. Alonga as facas que cristalizam os gestos. É já o momento chegado. Aguarda ainda, não soltes os cães da noite, as esponjas envolventes, nas áleas de choupos que bordejam os pequenos rios, sê contido até cercares, interrompe a dor que te sobe no peito, a crisálida da fúria. Ataca. Carlos Eurico da Costa


12 de Outubro de 2008

Tapan Mitra

Tapan%20Mitra.jpg a evidência da cor


12 de Outubro de 2008

The Voice

Woman much missed, how you call to me, call to me, Saying that now you are not as you were When you had changed from the one who was all to me, But as at first, when our day was fair. Can it be you that I hear?Let me view you, then, Standing as when I drew near to the town Where you would wait for me: yes, as I knew you then, Even to the original air-blue gown! Or is it only the breeze in its listlessness Travelling across the wet mead to me here, You being ever dissolved to wan wistlessness, Heard no more again far or near? Thus I; faltering forward, Leaves around me falling, Wind oozing thin through the thorn from norward, And the woman calling. Thomas Hardy


12 de Outubro de 2008

Do medo

O medo é quase sempre uma falta de capacidade para suspender a imaginação. José Eduardo Agualusa, in Um Estranho em Goa


12 de Outubro de 2008

Introdução ao Tempo

II Na senda ondulada do asfalto alguma coisa te cria, inverte. São os traços convulsos da morte, a ladainha biológica que sabes. Cada descoberta que fazes é a antecipação do dia imediato, garras de aves esgaravatando o chão de sílica, em espamos, a conspiração acre e dolorosa de viver. No tempo estás fluído: a bússola que tens no coração volteja o teu infinito, é o teu sangue perdido, quando acaricias o destino em exaltação, escorrrendo neste rio que goteja na nascente - a aurora dos sábios - um líquido espesso e feroz que corrói os tecidos de cardos roxos, a película que volteja no ar fino adejando ao ritmo que compassas. Ergues-te sorridente e cais. Carlos Eurico da Costa


12 de Outubro de 2008

Pintura Mughal

mughal.jpg o gosto pelo detalhe


12 de Outubro de 2008

Existir

A existência sustenta a palavra expressada quando a noite cobre a cama onde repousam pedaços do dia nada representa a vida: as palavras dão ao contexto a certeza do que foi dito sombras dialéticas discutem luzes espiraladas onde se perde o minotauro. Pedro Du Bois


12 de Outubro de 2008

Pramod Ganpatye

Pramod%20Ganpatye.jpg mulher em tons de azul, como a lua


12 de Outubro de 2008

A Lua e o Teixo

Esta é a luz do espírito, fria e planetária. As árvores do espírito são negras. A luz é azul. As ervas descarregam o seu pesar a meus pés como se eu fosse Deus, picando-me os tornozelos e sussurrando a sua humildade. Destiladas e fumegantes neblinas povoam este lugar que uma fila de lápides separa da minha casa. Só não vejo para onde ir. A lua não é uma saída. É um rosto de pleno direito, branco como o nó dos nossos dedos e terrivelmente perturbado. Arrasta o mar atrás de si como um negro crime; está mudo com os lábios em O devido a um total desespero. Vivo aqui. Por duas vezes, ao domingo, os sinos perturbam o céu: oito línguas enormes confirmando a Ressurreição. Por fim, fazem soar os seus nomes solenemente. O teixo aponta para o alto. Tem uma forma gótica. Os olhos seguem-no e encontram a lua. A lua é minha mãe. Não é tão doce como Maria. As suas vestes azuis soltam pequenos morcegos e mochos. Como gostaria de acreditar na ternura... O rosto da efígie, suavizado pelas velas, é, em particular, para mim que desvia os olhos ternos. Caí de muito longe. As nuvens florescem, azuis e místicas sobre o rosto das estrelas. No interior da igreja, os santos serão todos azuis, pairando com os seus pés frágeis sobre os bancos frios, as mãos e os rostos rígidos de santidade. A lua nada disto vê. É calva e selvagem. E a mensagem do teixo é negra: negra e silenciosa. Sylvia Plath, tradução de Maria de Lourdes Guimarães


11 de Outubro de 2008

Uma vida esquecida

Eu conheço o vidro franja por franja meticulosamente à porta parado um homem oco franja por franja no espaço meticulosamente oco uma porta parada. Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente dez badaladas por brincadeira dança um homem com pernas de mulher e um olhar devasso no Marte passo por passo uma criança chora uma águia e um vampiro recuados no tempo António Maria Lisboa


11 de Outubro de 2008

De facto

Não se pode suprimir o passado. José Eduardo Agualusa, in Um Estranho em Goa


11 de Outubro de 2008

Pintura tradicional

PABAA003.jpg descrição do salto impossível


11 de Outubro de 2008

Introdução ao Tempo

I Onde estavas floresce o teu mito. Aparelhas o rosto, o amplo e severo gesto da mão apanhando no ar o objecto incólume, com galhardia, sem ostentação. Rodeias-te dos punhais de aço cristalino, das automáticas granitadas e puras - um arsenal azul-aço e cobre corolando fogos-fátuos de gestos contidos - a esperança do ver e tactear o radiar do tempo. Vês como é fácil? Abre o leque aracnídeo dos telhados, adivinha a digitalidade destas colinas já ensombradas, decapita esta poalha cinza e ouro. Alongaste-te nos indivisíveis mistérios da rota, pelas baías mansas e coralinas afagadas de sol e panóplias de cristais, encobrindo espectros de cimitarra à cinta, turbantes, esmeraldas e arcas, arcabuzando a linha do horizonte com seus arremedos e gritos guturais nas enxárcias. Vês como é fácil escamotear a onírica verdade? Carlos Eurico da Costa


11 de Outubro de 2008

Aurora boreal

Tenho quarenta janelas nas paredes do meu quarto. Sem vidros nem bambinelas posso ver através delas o mundo em que me reparto. Por uma entra a luz do Sol, por outra a luz do luar, por outra a luz das estrelas que andam no céu a rolar. Por esta entra a Via Láctea como um vapor de algodão, por aquela a luz dos homens, pela outra a escuridão. Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza, pela da frente a beleza que inunda de canto a canto. Pela quadrada entra a esperança de quatro lados iguais, quatro arestas, quatro vértices, quatro pontos cardeais. Pela redonda entra o sonho, que as vigias são redondas, e o sonho afaga e embala à semelhança das ondas. Por além entra a tristeza, por aquela entra a saudade, e o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa, e o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia, e essa fome sem remédio a que se chama poesia, e a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia, e a paixão que se incendeia, e a viuvez, e a piedade, e o grande pássaro branco, e o grande pássaro negro que se olham obliquamente, arrepiados de medo, todos os risos e choros, todas as fomes e sedes, tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes. Oh janelas do meu quarto, quem vos pudesse rasgar! Com tanta janela aberta falta-me a luz e o ar. António Gedeão


11 de Outubro de 2008

Vallotton

intimeszenebyfelixvalloton.jpg cenas íntimas em déjà vu


11 de Outubro de 2008

Súbito fragmento

O súbito fragmento do discurso que aos ouvidos chega como um eco e se escoa de árvore em árvore de rio em rio o súbito fragmento chega deformado e vem rasteiro num bolor de estrume escorrendo sua baba sobre a terra sua seiva num rasto convertendo tudo num caminho pisado gasto imundo como passos moldados no descuido o súbito fragmento do discurso erra não tem a convicção do nosso ouvido chega a nós como a imagem deformada sobre um espelho partido contra o futuro o súbito fragmento fabrica na paisagem um corpo cujo ventre se resume ao desejo de um súbito fragmento de um fragmento capaz do nosso ouvido onde dorme acocorado o fervor da paz que fede sobre o mundo podre este momento. Nuno de Figueiredo


10 de Outubro de 2008

Realismo epicurista

Porém, os homens trabalham à sombra de um engano. O melhor do homem não tarda a ser cultivado no solo para adubo. Devido a um suposto destino, geralmente apelidado de necessidade, ocupam-se, como refere um livro antigo, a amontoar tesouros que a traça e a ferrugem consumirão e que os ladrões minarão e roubarão. É uma vida de tontos, como perceberão quando a percorrerem até ao fim, se não for antes. Henry David Thoreau, in Onde vivi e para que vivi, trad. Odete Martins


10 de Outubro de 2008

Pintura tradicional

PABB_001.jpg beleza hindu


10 de Outubro de 2008

In the universal crisis

One Step Backward Taken Not only sands and gravels Were once more on their travels, But gulping muddy gallons Great boulders off their balance Bumped heads together dully And started down the gully. Whole capes caked off in slices. I felt my standpoint shaken In the universal crisis. But with one step backward taken I saved myself from going. A world torn loose went by me. Then the rain stopped and the blowing, And the sun came out to dry me. Robert Frost


10 de Outubro de 2008

Aqui

Estive aqui. O início repleto em medos e a mulher em olhos sobre o corpo. Pássaros em sobrevôos. Garras sobre o peixe. A mulher na praia sofre areias. Na sujidade do instante aves e arranjos desajustados. Apaguei a luz e me desfiz em prantos. Estive aqui. Fechei a janela e me fiz na escuridão o fantasma presente ao ato. O barulho do ônibus transita paradas. O sobe e desce desqualificado: na conquista fui do processo o significado: ser desconsiderado. Estive aqui em impenetráveis dizeres. A quente água sufocou o corpo inexistente. A exatidão arremedou o erro e se espalhou em ondas: areias ressecadas sobre os corpos. Pedro Du Bois


9 de Outubro de 2008

Vallotton

f%20valloton.jpg imagem antes de dormir


9 de Outubro de 2008

A chama e o fogo

(gentileza de Amélia Pais) O sol gira na minha cabeça Sou uma palmeira que arde. E danço, danço, à espera da chuva do amor. A lua gira na minha cabeça. Sou o silêncio e a noite. E danço, danço, embalsamando-me de felicidade com o perfume do teu corpo. Tu és a chama e eu sou o fumo. Tu és a água e eu sou o fogo. Tu és a faca e eu sou o fruto. Dou-te o ouro da minha pele, as pérolas dos meus dentes, os dois rubis dos meus seios, os diamantes esguios dos meus olhos. Em troca, apenas te peço que te lembres de mim. Anónimo árabe do sec. X,tradução de Fernando Ilharco Morgado


9 de Outubro de 2008

Secretamente

No te amo como si fueras rosa de sal, topacio o flecha de claveles que propagan el fuego: te amo como se aman ciertas cosas oscuras, secretamente, entre la sombra y el alma. Te amo como la planta que no florece y lleva dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores, y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo el apretado aroma que ascendió de la tierra. Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde, te amo directamente sin problemas ni orgullo: así te amo porque no sé amar de otra manera, sino así de este modo en que no soy ni eres, tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía, tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño. Pablo Neruda


9 de Outubro de 2008

uma lágrima pura um cristal perfeito

Vimos de algures onde cantam as folhas e no chão das flores projectamos o sono vimos todos vimos de muito longe onde os pássaros não são um mero adorno e cantam cantam nós vimos de algures cujo nome esquecemos não é sítio não há mapa capaz perdeu-se o dicionário a geografia e perguntar agora não ajuda é de algures é certo é mais que certo mas a boca da resposta é muda e vimos com as mãos de dedos mais vazios que uma lágrima pura um cristal perfeito cuja beleza provém dessa estrutura interna dessa linha que passa como um eixo entre o presente e o tempo remoto a primavera pode ser de onde vimos ninguém sabe ao certo ninguém nega só sabemos que lá cantam as folhas e no chão das flores projectamos o sono e no sonho bebemos. Nuno de Figueiredo


8 de Outubro de 2008

Pintura Mughal

mughal_horseshoeSalim%20Quli.jpg caminho longo em preparação


8 de Outubro de 2008

É outono

Volta sempre à memória a repetida fuga denotando uma tarde impaciente um tempo alarve um como brando fogo onde não arde o corpo que entretanto nos queimando prossegue volta sempre o aviso uma réstea de sol amargo é outono e tudo está dito é outono agora por enquanto e por isso é que volta à memória outro frio outro fim e se nota que o inverno está perto o inverno é preciso sabes isso apesar de sabermos ao certo donde vem e aonde conduz volta sempre à memória uma luz que repete um sono que nos promete outro mundo enquanto o outono dura e dura e anestesiados nos deixa a flutuar entre frutos já podres onde o bicho da fruta se aproxima da gula e a terra da gente. Nuno de Figueiredo


8 de Outubro de 2008

Clareiras do sol

Dos castanheiras a folhagem árida já desce no ar morto que se move dentro da palidez do céu de outono sobre as aves imóveis Movem-se as folhas só na tarde escassa de clareiras do sol movem-se as aves extintas do outono dentro dele e do sol que mais que as aves mortas sob as árvores se move e movem-se aves mais do que as folhas que do alto caem mas sem sol grande as aves não se movem nem já não caem com a calma as aves Gastão Cruz


8 de Outubro de 2008

A tempo

Nunca é tarde demais para renunciar aos nossos preconceitos. Não existe um modo de pensar ou de agir, por mais antigo que seja, que possa ser aceite cegamente. Henry David Thoreau, in Onde vivi e para que vivi, trad. Odete Martins


7 de Outubro de 2008

Krishna Shamrao Kulkarni

Krishna%20Shamrao%20KULKARNI.jpg par ou ímpar?


7 de Outubro de 2008

Said The Poet To The Analyst

My business is words. Words are like labels, or coins, or better, like swarming bees. I confess I am only broken by the sources of things; as if words were counted like dead bees in the attic, unbuckled from their yellow eyes and their dry wings. I must always forget who one words is able to pick out another, to manner another, until I have got somethhing I might have said... but did not. Your business is watching my words. But I admit nothing. I worth with my best, for instances, when I can write my praise for a nickel machine, that one night in Nevada: telling how the magic jackpot came clacking three bells out, over the lucky screen. But if you should say this is something it is not, then I grow weak, remembering how my hands felt funny and ridiculous and crowded with all the believing money. Anne Sexton


7 de Outubro de 2008

Chuva

ergue-te ó chuva nos olhos das manhãs inquietantes de deus reflexo indecifrável esculpido no tempo estala entre o imenso consolo das nossas poderosas emoções e o pavor que trazemos aos gritos no crepúsculo de ti debruçada sobre os campos sobre a fome ergue-te acende no olhar a carícia das flores encantada janela de deuses voltada às estrelas de onde caem nenúfares camélias flores de papel... sentes-te só miraculosamente viva corajosa recordas em silêncio a piedade que resta aos espíritos da água misteriosos como pingos preciosos cintilantes na angústia humilde da transformação deixai falar a alma transfigurada adormece a chuva nos olhos inquietantes de deus vulto cinzento de sombras a tua valiosa máscara esconde no nevoeiro pálido o martírio a graça o corpo de quem se despe de vida ergue-te ó chuva em gemidos escavas e beijas as fontes buscas os olhos de deus indo sozinho anseia em teus braços molhados adormecer... redimido em cristalinas lágrimas onde navegaram ensombrados os meus sonhos de rir de cruzes de batalhas és a sombra desenhada pelas águas tuas num jardim desfeito de tanta ilusão incompleto ergue-te ó chuva! Henrique Levy


7 de Outubro de 2008

S. H. Raza

S.H.%20Raza.jpg geometria em perspectiva


7 de Outubro de 2008

um triste e oculto movimento

Se, para possuir o que me é dado, Tudo perdi e eu próprio andei perdido, Se, para ver o que hoje é realizado, Cheguei a ser negado e combatido. Se, para estar agora apaixonado, Foi necessário andar desiludido, Alegra-me sentir que fui odiado Na certeza imortal de ter vencido! Porque, depois de tantas cicatrizes, Só se encontra sabor apetecido Àquilo que nos fez ser infelizes! E assim cheguei à luz de um pensamento De que afinal um roseiral florido Vive de um triste e oculto movimento António Botto


7 de Outubro de 2008

regresso ao som silencioso

agora estou na beira do penhasco e não vou voar como o sublime bicho estratosférico brilhante de plumas esmeraldas tentativos braços apenas eu baço de nenhuma asa debruçado sobre o vidro de água e em baixo os corredores, dispostos à partida em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido de improváveis azagaias) exclama: é esta a fonte do trovão!, e aponta um buraco azul mudo nas paredes da pedra. por fora de mim regresso ao som silencioso da cidade onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário e as patas dos homens pousam na larga secretária e ficam, em relevo, caminhando no sangue. e eu queria para ti, uma cidade sem mistério, o gelo transparente onde mergulha a imagem dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados pela luz, que é uma areia movediça, este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais às portas do trovão, onde o mais sábio se lança nu compacto deus do fogo e ri António Franco Alexandre


6 de Outubro de 2008

Pintura Mughal

mughal_harem_PH28_l.jpg harém, ou a doce companhia


6 de Outubro de 2008

Piano

Suavemente, na penumbra, uma mulher canta para mim; Fazendo-me voltar e descer o panorama dos anos, até que vejo uma criança sentada debaixo do piano, na explosão do prurido das cordas E pressionando os pequenos, suspensos pés de uma mãe que sorri enquanto ela canta. Apesar de mim, a insidiosa mestria da canção Atraiçoa-me fazendo-me voltar, até que o meu coração chora para pertencer Ao antigo entardecer dos domingos em casa, com o inverno lá fora E hinos na aconchegada sala de visitas, o tinido do piano o nosso guia. Por isso agora é em vão que a cantora irrompe em clamor Com o appassionato do grandioso piano negro. A magia Dos dias infantis está em mim, a minha masculinidade É desencorajada no fluxo da lembrança, choro como uma criança pelo passado. D.H. Lawrence, tradução de Cecília Rego Pinheiro


6 de Outubro de 2008

Dos presságios

- Um presságio é uma recordação do futuro - costumava dizer -, contrariar um presságio seria modificar o futuro; e portanto o presente e portanto o passado. E se isso fosse possível não haveria memória e nem haveria presságios. José Eduardo Agualusa inA Conjura


6 de Outubro de 2008

Dwijen Gupta

Dwijen%20Gupta.jpg cores sonhadas a oriente


6 de Outubro de 2008

o que fizeste com a tua juventude?

Hoje eu dei-te o meu dia, na esplanada afrontando o olhar dos outros por motivos tão escassos. É a primeira oportunidade para uma nova estação, a natureza conspira no cimento à nossa volta. Mas eu acredito que toda a mudança venha apenas pelo fim de qualquer coisa e tu estás imóvel nessa cadeira, parece que nunca tiveste um princípio. Onde estão agora as tuas razões, o que fizeste com a tua juventude? Não esperes que os pássaros te castiguem por perderes o dia e sufocares de noite. Eu não te posso salvar da tua angústia, baralhei os sinais por baixo de cada nome e escolhi as ruas à sorte. E tu não me podes obrigar a pensar de outra maneira, pobre de ti com as mãos encolhidas sobre o tampo da mesa. Nos dias de sol a tua sombra seria cruel para mim. E como eu te mentiria. Rui Pires Cabral


6 de Outubro de 2008

Armazém das Palavras

O copo d'água ao lado do microfone. Inseparáveis companheiros dos extremos. Secura. Sede. O copo d?água renova o discurso. O microfone explora a sede dos ouvintes. Pedro Du Bois


5 de Outubro de 2008

Outubro

Les_Tr%C3%A8s_Riches_Heures_du_duc_de_Berry_octobre.jpg a arte dos irmãos Limbourg no livro de horas do senhor duque de Berry, com o Louvre em fundo


5 de Outubro de 2008

Siboney

(pedido em viagem) Siboney yo te quiero yo me muero por tu amor Siboney al arrullo de la palma pienso en ti Ven a mi que te quiero y de todo tesoro eres tu para mi Siboney al arrullo de la palma pienso en ti Siboney de mi sueño si no oyes la queja de mi voz Siboney si no vienes me moriré de amor Siboney de mis sueños te espero con ansias en mi caney Siboney si no vienes me moriré de amor Oye el eco de mi canto de cristal Oye el eco de mi canto de cristal Ernesto Lecuona, in 2046, de Kar Wai Wong


5 de Outubro de 2008

Women and men

anyone lived in a pretty how town (with up so floating many bells down) spring summer autumn winter he sang his didn't he danced his did. Women and men(both little and small) cared for anyone not at all they sowed their isn't they reaped their same sun moon stars rain children guessed(but only a few and down they forgot as up they grew autumn winter spring summer) that noone loved him more by more when by now and tree by leaf she laughed his joy she cried his grief bird by snow and stir by still anyone's any was all to her someones married their everyones laughed their cryings and did their dance (sleep wake hope and then)they said their nevers they slept their dream stars rain sun moon (and only the snow can begin to explain how children are apt to forget to remember with up so floating many bells down) one day anyone died i guess (and noone stooped to kiss his face) busy folk buried them side by side little by little and was by was all by all and deep by deep and more by more they dream their sleep noone and anyone earth by april wish by spirit and if by yes. Women and men(both dong and ding) summer autumn winter spring reaped their sowing and went their came sun moon stars rain e.e. cummings


5 de Outubro de 2008

Mau caminho

Eu acreditei que podia amar o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos mas crescias fora de alcance no teu próprio pensamento. Uma distância que só serviria aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas. Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio em que me mantinhas era mais urgente que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo mas eu perdia sempre alguma coisa quando te ganhava. Às vezes era só a minha vontade, outras vezes era toda a frase do meu nome. Rui Pires Cabral


5 de Outubro de 2008

Gauguin

gauguin-1894-day-of-god.jpg um outro domingo


5 de Outubro de 2008

Superfície

Quero crer-me este sentido de longa memória branca. Sobre ele não lembrar, - ficar, ficar, no encontro de tudo em pouco: o tempo se refez no instante deste espaço, superfície, chão que nem me sustenta (dura sou, eu, e dura amargura é a minha). Não, não me lembrarei, seria pensar começos e outros fins - ó lunares lembranças, doridos passos (muitos fui acompanhando de longe e mais me pisaram aqui, ali, onde sei). Estou? Se estou me consentem os gestos e os movimentos? Nenhum ruído se atenta que dentro não fosse ouvido. E tudo em mim se repete enquanto durante e sempre a lembrança vai baixando a seu leito mais dormente. Os pensamentos seriam roteiros menos sofridos? Deixá-los que se solveram nestes noturnos tormentos da mente se procurando, da idéia, refluindo sobre dúvida, distância e certeza, aéreo marco de um repouso em si medido. Deixá-los. Deixar-me enquanto existe um consenso oculto. Pensarei que desvivi num limite-lucidez lá e, no entanto, aqui. Maria Ângela Alvim


4 de Outubro de 2008

Kathleen

O amor nos seus aposentos sem luz, os quadros inacabados, a cama húmida e por fazer. Fui eu que escolhi a canção: um assalto ao pano friável da consciência. A noite estava enrolada no seu ninho como um animal, acomodava para nós o ventre ainda frio. Já não valia a pena perguntar que diabo estava eu a fazer ali, sem dinheiro e sem saber ao certo onde. Tu tiraste a roupa e revelaste o cenário que me testemunharia. Rui Pires Cabral


4 de Outubro de 2008

Serusier

paul_serusier_08.jpg espreitar as cores do campo


4 de Outubro de 2008

E sem deixar eco qualquer coisa ruía

Eu ia na passadeira com um propósito mas a gravata de um homem atirou-me para o coração do abismo. Uma insuspeitada gravata de seda com pintas discretas, o catalizador da vertigem. Aquilo que o vento levantava na avenida era uma espécie de música, um barulho de sinos remoto e descompassado, viam-se algumas flores a entrar na boca do esgoto como se fosse ali a casa delas. E sem deixar eco qualquer coisa ruía nas fachadas, o próprio oxigénio era nesse instante como uma língua estrangeira. Eu sentia na garganta os tambores do sangue e os prédios enfadonhos pulsavam na taquicardia, caíam em desamparo para a cova do meu peito. Do outro lado da rua um sinal de trânsito foi a minha âncora. Rui Pires Cabral


4 de Outubro de 2008

Aprendendo a Voltar

em cada gesto a lembrança estraçalha: o menos se transtorna em mais que nada a fome e a sede se completam nas desgraças: o sentido confuso leva o rosto ao espelho minha imagem refletida na solidão do quarto a luz apagada multiplica o espaço inacabado: em cada canto o instante anterior estabelecido no remorso depois: o sono atravessa a noite, a manhã me atrasa. Pedro Du Bois


3 de Outubro de 2008

Pintura Mughal

Mughal%20Emperor%20Shajahan%20and%20Begum%20Mumtaj%20Mahal.jpg Imperador Shajahan e Begum Mumtaj Mahal


3 de Outubro de 2008

Lost weekend

Um dia é maior do que a soma das suas horas, às vezes comporta todos os invernos e as estações assombradas pelos prejuízos do prazer. Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica? A cidade não foi feita para as nossas pretensões, está apenas alastrada por dentro de nós, crispação de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias. Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite, é a própria razão que nos ilumina os atalhos para o esquecimento. Um ano inteiro não será suficiente para tudo o que não nos acontece. Rui Pires Cabral


3 de Outubro de 2008

The Crazy Woman

I shall not sing a May song. A May song should be gay. I'll wait until November And sing a song of gray. I'll wait until November That is the time for me. I'll go out in the frosty dark And sing most terribly. And all the little people Will stare at me and say, "That is the Crazy Woman Who would not sing in May." Gwendolyn Brooks


3 de Outubro de 2008

Vallotton

RoadatStPaulvalloton.jpg tom da semana com fim à vista


3 de Outubro de 2008

Recordação

Foi feliz nessa época, quando não havia nem memória nem culpa, e tudo era eterno, e as pessoas riam à toa debaixo do sol. José Eduardo Agualusa in O Ano em que Zumbi tomou o Rio


2 de Outubro de 2008

Metamorphosis

a girlfriend came in built me a bed scrubbed and waxed the kitchen floor scrubbed the walls vacuumed cleaned the toilet the bathtub scrubbed the bathroom floor and cut my toenails and my hair. then all on the same day the plumber came and fixed the kitchen faucet and the toilet and the gas man fixed the heater and the phone man fixed the phone. now I sit in all this perfection. it is quiet. I have broken off with all 3 of my girlfriends. I felt better when everything was in disorder. it will take me some months to get back to normal: I can't even find a roach to commune with. I have lost my rythm. I can't sleep. I can't eat. I have been robbed of my filth. Charles Bukowski


2 de Outubro de 2008

Vieira portuense

portuense_vilhena1.jpg D. Filipa de Vilhena, ou a preparação para a batalha dos dias


2 de Outubro de 2008

The New Love

If it shine or if it rain, Little will I care or know. Days, like drops upon a pane, Slip, and join, and go. At my door's another lad; Here's his flower in my hair. If he see me pale and sad, Will he see me fair? I sit looking at the floor. Little will I think or say If he seek another door; Even if he stay. Dorothy Parker


2 de Outubro de 2008

Dúvida antiga

- Porque é que gostamos de um homem se não gostamos da maneira como ele gosta de nós? José Eduardo Agualusa in A Conjura


1 de Outubro de 2008

Vallotton

300px-F%C3%A9lix_Vallotton_001.jpg olhar para fora do seu tempo


1 de Outubro de 2008

Há séculos

(gentileza de Amélia Pais) Já há séculos Que não têm alma. Venderam-na E continuam a vendê-la: Têm compradores Entre os que trazem os olhos Vendados pela imaginação. Acreditam que Nós aceitaremos a troca De nada Pelo nosso sangue. Nós não traficamos almas, Mas, se querem, sangue Por sangue. Alberto Pimenta


1 de Outubro de 2008

Do riso

Ela solta uma gargalhada azul. Quando uma mulher ri um homem pode esperar dela alguma misericórdia. José Eduardo Agualusa in O Ano em que Zumbi tomou o Rio