Modus vivendi

"bene senescere sine timore nec spe"

blogue de Ana Roque

Arquivo de março 2008


31 de Março de 2008

De Profundis

(de facto, nem os piores, nem mesmo os melhores, escapam a esta terrível peste) Oh, is it, then, Utopian To hope that I may meet a man Who'll not relate, in accents suave, The tales of girls he used to have? Dorothy Parker


31 de Março de 2008

Reza-e Abbasi

Riza%20%60Abbasi%2033.jpg mais uma preciosidade persa


31 de Março de 2008

Já muito antes

Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a achar-te quando te encontrei. Nasci pra ti antes de haver o mundo. Não há cousa feliz ou hora alegre Que eu tenha tido pela vida fora, Que o não fosse porque te previa, Porque dormias nela tu futuro. Fernando Pessoa


31 de Março de 2008

Da memória intacta

Esquecerei primeiro a tua infância tal como a tenteariam os meus dedos nos teus dedos febris (depois da seda dos teus dedos nos dedos da manhã) e em cada rio o rio que se alevanta da solidão da terra à tua estrela desmedindo em silêncio o seu segredo na solidão do amor andante Esquecerei a casa o nome e a data (ou que a morte se vai se é ida a vida) para esquecer por fim que me esqueci na noite que partindo para chorar-te (de tão sem fundo intacta) me deixavas quando o sol se apagava atrás de ti Miguel Serras Pereira


30 de Março de 2008

Thomas Phillips

caroline%20lamb%20thomas%20phillips.jpg Lady Caroline Lamb, escritora gótica no início do século XIX, obsessão de Byron ("mad, bad, and dangerous to know") durante algum tempo


30 de Março de 2008

Crepuscular

A incerteza cai com a tarde no limite da praia. Um pássaro apanhou-a, como se fosse um peixe, e sobrevoa as dunas levando-a no bico. O seu desenho é nítido, sem as sombras da dúvida ou as manchas indecisas da angústia. Termina com a interrogação, os traços do fim, o recorte branco de ondas na maré baixa. Subo a estrofe até apanhar esse pássaro com o verso, prendo-o à frase, para que as suas asas deixem de bater e o bico se abra. Então, a incerteza cai-me na página, e arrasta-se pelo poema, até me escorrer pelos dedos para dentro da própria alma. Nuno Júdice


30 de Março de 2008

Olha bem

Não pode Amor por mais que as falas mude exprimir quanto pesa ou quanto mede. Se acaso a comoção falar concede é tão mesquinho o tom que o desilude. Busca no rosto a cor que mais o ajude, magoado parecer aos olhos pede, pois quando a fala a tudo o mais excede näo pode ser Amor com tal virtude. Também eu das palavras me arreceio, também sofro do mal sem saber onde busque a expressão maior do meu anseio. E acaso perde, o Amor que a fala esconde, em verdade, em beleza, em doce enleio? Olha bem os meus olhos, e responde. António Gedeão


30 de Março de 2008

The Thing

Each time it rings I think it is for me but it is not for me nor for anyone it merely rings and we serve it bitterly together, they and I William Carlos Williams


30 de Março de 2008

Francisco de Zurbarán

453px-Francisco_de_Zurbar%C3%A1n_066.jpg desta vez, não é pelo barroco da imagem, não é pela mestria do pintor, não é sequer porque sim; é uma intenção, uma imagem para povoar os olhos fechados daquela que, forte toda a vida, aguarda agora o seu tempo de paz.


30 de Março de 2008

Sonhei contigo

Sonhei contigo embora nenhum sonho possa ter habitantes tu, a quem chamo amor, cada ano pudesse trazer um pouco mais de convicção a esta palavra. É verdade o sonho poderá ter feito com que, nesta rarefacção de ambos, a tua presença se impusesse - como se cada gesto do poema te restituisse um corpo que sinto ao dizer o teu nome, confundindo os teus lábios com o rebordo desta chávena de café já frio. Então, bebo-o de um trago o mesmo se pode fazer ao amor, quando entre mim e ti se instalou todo este espaço - terra, água, nuvens, rios e o lago obscuro do tempo que o inverno rouba à transparência da fontes. É isto, porém, que faz com que a solidão não seja mais do que um lugar comum saber que existes, aí, e estar contigo mesmo que só o silêncio me responda quando, uma vez mais te chamo. Nuno Júdice


29 de Março de 2008

Do beijo

Como poderemos beijar essa boca que apenas se anuncia com a suave tristeza de quem ainda ama as sílabas do sangue ou a lua cálida das velas? Essa boca talvez seja apenas uma boca de sombra e quase uma boca de cal mas a sua forma ainda é uma margem estremecida uma erva que respira sobre a pedra azul da melancolia Que palavra poderá dar um espaço à sua sede como uma guitarra que lentamente se acende na noite? Mas no peito frágil como um pássaro palpita ainda um astro vibrante como uma haste inclinada pelo vento Ela acaricia a sua crisálida de areia como se fosse o corpo amante ou uma palavra preciosa Não posso desenhar o movimento do seu coração nem encontrar a palavra que fosse um beijo vacilante mas incandescente O meu pulso no entanto estremece com o rumor de um sangue que desejaria ser a luz da sua sede António Ramos Rosa


29 de Março de 2008

Hiroshige

Ando%20Hiroshige%20098.jpg a noite, a noite


29 de Março de 2008

The obvious

The obvious is difficult To prove. Many prefer The hidden. I did, too. I listened to the trees. They had a secret Which they were about to Make known to me-- And then didn't. Summer came. Each tree On my street had its own Scheherazade. My nights Were a part of their wild Storytelling. We were Entering dark houses, Always more dark houses, Hushed and abandoned. There was someone with eyes closed On the upper floors. The fear of it, and the wonder, Kept me sleepless. The truth is bald and cold, Said the woman Who always wore white. She didn't leave her room. The sun pointed to one or two Things that had survived The long night intact. The simplest things, Difficult in their obviousness. They made no noise. It was the kind of day People described as "perfect." Gods disguising themselves As black hairpins, a hand-mirror, A comb with a tooth missing? No! That wasn't it. Just things as they are, Unblinking, lying mute In that bright light-- And the trees waiting for the night. Charles Simic


29 de Março de 2008

Medo

"Ah, agora sei quão enraizada está a vaidade no coração humano, a vaidade que é a outra face do medo de não sermos amados." Chitra Banerjee Divakaruni, in A Senhora das Especiarias, trad. Maria Filomena Duarte


29 de Março de 2008

Juan Gris

le-livre-ouvert-juan-gris.jpg o livro aberto, ou a melhor companhia para a insónia


28 de Março de 2008

As Metamorfoses

(presente de uma Amiga, bem que me foi "legado" por uma pessoa especial) "Mas, em resumo, acontece que a alquimia das metamorfoses é implacável: o que é dominante como herança genética impõe-se aos gostos da educação e à vontade imaginária. Sempre acabamos por ser o que somos na pluralidade dos nossos sonhos." Aguntina Bessa-Luís


28 de Março de 2008

Lucidez ardente

Em tuas veias de rosa de cândida maturidade quero derramar o meu encanto quero fluir no meu outono Na tua nudez de piscina dourada e marinha com minúsculas sombras de melancolia beberei a tua noite azul e repousarei a salgada dolência na firmeza macia dos teus róseos músculos já não serei o fumo de uma sombra mas um sopro de estrelas desfalecendo no moroso júbilo da minha sombra inteiramente aberta cheia da nítida substância de um páramo terrestre em dois vasos num só vaso de lucidez ardente António Ramos Rosa


28 de Março de 2008

Prospective Immigrants Please Note

Either you will go through this door or you will not go through. If you go through there is always the risk of remembering your name. Things look at you doubly and you must look back and let them happen. If you do not go through it is possible to live worthily to maintain your attitudes to hold your position to die bravely but much will blind you, much will evade you, at what cost who knows? The door itself makes no promises. It is only a door. Adrienne Rich


28 de Março de 2008

Açafrão

"Às vezespergunto a mim própria se a realidade existe, uma natureza do ser objectiva e intacta. Ou se tudo aquilo com que deparamos já foi alterado pelo que julgávamos que era. Se sonhámos com isso." Chitra Banerjee Divakaruni, in A Senhora das Especiarias, trad. Maria Filomena Duarte


27 de Março de 2008

Reza-e Abbasi

300px-Riza_i-Abbasi_-_Princely_Youth_and_Dervish.jpg o príncipe e o derviche, ou a procura da sabedoria


27 de Março de 2008

Da liquidez perfeita dos passos

És, como no Klee a máquina de chilrear a liquidez perfeita dos passos, a música dos surdos. Que húmido pilar sustenta, amor, o paço em que me acoito e durmo que não seja teu canto ao canto do meu dia? És, como no Klee, a virgem matemática que tudo me desvenda e sem que eu faça contas calculas somas, sumos, entre o covo das ondas e azul astronomia. Pedro Tamen


27 de Março de 2008

Hoje

A verdade é filha do tempo. Aulo Gélio, in noites Áticas É, na verdade, um dia extraordinário, no sentido de marcante, diferente. Simbólico. Claro que os desenhos que permitem o padrão deste dia começaram a ser traçados há largos meses, em algumas dimensões há mais tempo ainda, graças aos deuses que se apiedaram de tantas horas vãs. Tempo de balanço, sempre interior, incomunicável. Ainda assim, dois terços de uma vida média deram para isto: memórias ricas de afectos, momentos de realização, objectivos cumpridos, algumas dores, desalentos e passos perdidos, até vislumbrar o começo da sabedoria. A alegria máxima dos filhos chegados à maioridade com rumo, esperanças, metas a atingir. O consolo da presença daqueles que nos geraram, e a construção diária de uma partilha intensa, cúmplice e inteira a que se convencionou chamar amor. As décadas, de tão cheias, voaram, levando a inconsistência de tudo o que não poderia nunca transformar-se em solidez. Sobrou o que conta, enfim.


27 de Março de 2008

Yes! No!

How necessary it is to have opinions! I think the spotted trout lilies are satisfied, standing a few inches above the earth. I think serenity is not something you just find in the world, like a plum tree, holding up its white petals. The violets, along the river, are opening their blue faces, like small dark lanterns. The green mosses, being so many, are as good as brawny. How important it is to walk along, not in haste but slowly, looking at everything and calling out Yes! No! The swan, for all his pomp, his robes of grass and petals, wants only to be allowed to live on the nameless pond. The catbrier is without fault. The water thrushes, down among the sloppy rocks, are going crazy with happiness. Imagination is better than a sharp instrument. To pay attention, this is our endless and proper work. Mary Oliver


27 de Março de 2008

George Haytter

annabella%20george%20Haytter.jpg Anabella, fazendo jus ao nome


27 de Março de 2008

Olhar

Olhas-me entre a surpresa e o desencanto e eu fico embaraçado ante esse olhar: nada podia perturbar-me tanto como uns olhos roubados ao luar das noites em que o tempo e o lugar se faziam de espuma, luz e espanto. Mas o que importa, sobre a ruinosa erosão dos desenganos, é esta força de quem ousa amar-te acima do passar dos anos. Torquato da Luz


26 de Março de 2008

Desejos de Junho

no lento triunfo da noite estremece o coração poema amantes sonham-se deuses desfeitos enlaçados pelo engano da mísera solidão devotos no leito os seus corpos de sede docemente guardam beijos neles os cetins e os clarões das tochas crepitam melodias de alfazema místicos apagados encurvados no gesto do abraço êxtase perdido como o sol sem forças beijos adivinham instintos angústias de sono nos lábios tépidos do novo dia as almas jardins do corpo unidas à natureza pelas raízes das águas encontram a beleza na claridade do suor nocturno das danças sagradas inebriantes mornas no túmulo ébrio onde o sangue se agita... nascem rosas acordam floridos na virgindade dos seus olhos onde os anjos servem doces lágrimas renova-se o mundo pedaço de tempo que lhes sobra... HenriqueLevy


26 de Março de 2008

Reza-e Abbasi

278px-Georgian_prince_by_Reza_Abbasi.jpg príncipe Muhammad-Beik, visto por Agha Reza-e Abbasi, que viveu entre 1565 e 1635 e foi o mais afamado artista persa- miniaturista, pintor e caligrafista - da escola de Isfahan


26 de Março de 2008

Anel

Dá-me um anel; mas que seja Como o anel em que cingida Tem gemido toda a minha vida. Dá-me um anel; mas de ferro, Negro, bem negro, da cor Desta minha acerba dor, Deste meu negro desterro! Dá-me um anel; mas de ferro... Sempre comigo hei-de tê-lo; Há-de ser o negro elo, Que me prenda à sepultura. Quero-o negro...seja o estigma, que decifre o escuro enigma, Duma grande desventura. Dá-me um anel; mas de ferro, Que resista mais que os ossos Dum cadáver aos destroços Do roaz verme do pó. Entre as cinzas alvacentas, como espólio das tormentas Apareça o ferro só. E o teu nome impresso nele, Falará dum grande amor, Nutrido em ânsias de dor, Pelo fel da sociedade... Que teu nome nele escrito, Nesse padrão infinito, Vá comigo à Eternidade. Camilo Castelo Branco


26 de Março de 2008

Finalmente, os dias...

A praia foi lugar de muita espera. A maré molhou-te De improvisos. Chegou a noite E abriu-te as portas Ao sol poente. A noite Para os poetas. Sei que não existes Só porque o desejo. O teu rosto Corroído Pelo fogo. Se nos encontram, Rejuvenesces E eu clamo: amo-te! Paisagem Cercada de mar profundo. Montanhas, uma baía Que a muitos se parece Na idade, que não esquece A poeira que há nas almas, Nem as areias que as invadem. Passaram dias sem que a vida ousasse Sujar-me de atritos E a vida foi um gesto de água Intenso de tráfego Na ilha. Finalmente, os dias... Ruy Cinatti


26 de Março de 2008

John Hoppner

oxford%20lady%20john%20Hoppner.jpg o perfil de lady Oxford


26 de Março de 2008

A Map Of Love

Your face more than others' faces Maps the half-remembered places I have come to I while I slept— Continents a dream had kept Secret from all waking folk Till to your face I awoke, And remembered then the shore, And the dark interior. Donald Justice


26 de Março de 2008

Sede

Saio à rua sedento do teu rosto e apenas surpreendo nas esquinas o rastro da tua ausência. Não sei de ti, não dou por ti. Falta-me a tua voz, sem a qual não irei adormecer. Pergunto-me onde estás, onde andarás, em que nuvem te diluíste ou que vento te arrastou a que paragens e perigos nascidos do meu medo. Torquato da Luz


25 de Março de 2008

Imagem da memória

Ainda existem as ruas onde por acaso nos encontrávamos? Tantos dias correram num ano, viam-me em dias de mais desejo apressar os passos, olhar para o relógio, pôr falhando os discos nas capas. Parecia ter sido só uma despedida de um dia para o outro, agora se escrevo é porque és apenas uma imagem da memória, pouco faltará para que guarde de ti um risco, um embaraço. E sempre chegarei a tactear o rosto, fingir que me lembro de alguns sinais, das poucas palavras necessárias para que eu aceitasse, duas vezes o meu corpo esteve com o teu, outras mais do que podes pensar. Na volta de uma esquina não reparo, tropeço, encontro, o último sorriso começa a nascer. Helder Moura Pereira


25 de Março de 2008

Mar e terra

Chega de mar. Já vimos mar que chegue. Ao entardecer, quando deslavada a água se estende e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala. Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma taberna, perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos (o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos) em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra, que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas. Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo, vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar. As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo. Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas. Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo aceita-as e quer vesti-las de flores e frutos selvagens para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que os frutos. Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta um sorriso. Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho, poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas, uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol, e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas. Cesare Pavese, trad. Carlos Leite


25 de Março de 2008

Palazuelo

pablo%20palazuelo.bmp as cores de Stendhal em explosão


25 de Março de 2008

No silêncio

No silêncio Do meu desânimo triste, Fui quebrando As últimas ilusões... Da vida não quero nada. O que é que a gente constrói Dando amor ou amizade? Tranquiliza-te, sei bem: Eras o único afecto - Um frágil fio de cambraia Envolvendo A mais sólida ilusão - Que se esvaiu como as outras... Da vida não quero nada. De tudo me hei-de esquecer... E se aperto com dandismo O nó da minha gravata, É inda um defeito inútil - Dos poucos que hei-de manter. António Botto


25 de Março de 2008

Fragmentos do passado

Não hei-de conseguir falar contigo, é sempre difícil. Uma imagem cintila de repente e lá estou eu nesse baile de máscaras - revi-o mais de dez vezes! Foi tão bom ficar preso a nenhumas esperanças, sentir o vento muito frio. Percorri os desertos, o inverno era a estação preferida e sobretudo a noite. Viajava entre corpos e alma, esse mundo parecia não ter fim; o seu limite era como um segredo, um olhar desafiando a morte enquanto esperava por novas ilusões. Um telefonema é fácil de fazer, podemos encontrar-nos, conversar, fingir que existe o amor ou qualquer outra invisível certeza, mas não há lugar algum para fugir-me ainda, ninguém nas ruas cada vez mais longas, e mal vislumbro sob o azul da névoa os fragmentos do meu coração. Fernando Pinto do Amaral


24 de Março de 2008

William Etty

williametty.jpg a nudez da entrega ao sono


24 de Março de 2008

Spring Pools

These pools that, though in forests, still reflect The total sky almost without defect, And like the flowers beside them, chill and shiver, Will like the flowers beside them soon be gone, And yet not out by any brook or river, But up by roots to bring dark foliage on. The trees that have it in their pent-up buds To darken nature and be summer woods - Let them think twice before they use their powers To blot out and drink up and sweep away These flowery waters and these watery flowers From snow that melted only yesterday. Robert Frost


24 de Março de 2008

Imagem num espelho

Se alguém descrevesse o meu rosto, pálpebra, a pálpebra, aleta a aleta do nariz, a curva de lábio a lábio, a fronte agora, a face depois eu poderia desdenhar da solitária alheada imagem num espelho. Fiama Hasse Pais Brandão


24 de Março de 2008

Jogo possessivo

O meu é teu. O teu é meu e o nosso é nosso quando posso dizer que um dente nos cresceu roendo o mal até ao osso. O teu é nosso. O nosso é teu. O nosso é meu. O meu é nosso, e tudo o mais que aconteceu é uma amêndoa sem caroço. Dizem que sou. Dizem que faço, que tenho braços e pescoço - que é da cabeça que desfaço, que é dos poemas que eu não ouço? O meu é teu. O teu é meu e o nosso, nosso qundo poss olhar em frente para o céu e sem o ver galgar o fosso. Mas tu és tu e eu sou eu não vejo o fundo ao nosso poço, o meu é meu, dá-me o que é teu depois veremos o que é nosso. Ary dos Santos


24 de Março de 2008

Moretto da Brescia

moretto.jpg jovem entediado, em pleno século XVI


24 de Março de 2008

Escrito de Memória

Formado em direito e solidão, às escuras te busco enquanto a chuva brilha. É verdade que olhas, é verdade que dizes. Que todos temos medo e água pura. A que deuses te devo, se te devo, que espanto é este, se há razão pra ele? Como te busco, então, se estás aqui, ou, se não estás, porque te quero tida? Quais olhos e qual noite? Aquela em que estiveste por me dizeres o teu nome. Pedro Tamen


23 de Março de 2008

Disse Eva

O rio apenas de leve se mexia e virava: menino dormindo, suspirava de calor. - Que sabes (disse Eva) da corrente do teu sangue? escuta em mim: sentirás este fundo rumor do mar, ondas que tocam na terra, regressam e voltam para teu corpo. António Osório


23 de Março de 2008

Spring

Spring is the Period Express from God. Among the other seasons Himself abide, But during March and April None stir abroad Without a cordial interview With God. Emily Dickinson


23 de Março de 2008

Hiroshige

Ando%20Hiroshige%2000.jpg antecipação da lua


23 de Março de 2008

Arrependimento

O poema tem mais pressa que o romance, Asa de fogo para te levar: Assim, pois, se houver lama que te lance Ao corpo quente algum, hei-de chorar. Deus fez o poeta por que não descanse No golfo do destino e amores no mar: Vem um, de onda, cobri-la - e ela que dance! Vem outro - e faz menção de me enfeitar. Os outros a conspurcam, mas é minha! Chicoteá-la vou com a própria espinha, Estreitam-me de amor seus braços mornos, Transformo seus gemidos em meus uivos E torno anéis dos seus cabelos ruivos Na raspa canelada dos meus cornos. Vitorino Nemésio


23 de Março de 2008

Quando o amor morrer

Quando o amor morrer dentro de ti, Caminha para o alto onde haja espaço, E com o silêncio outrora pressentido Molda em duas colunas os teus braços. Relembra a confusão dos pensamentos, E neles ateia o fogo adormecido Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido Espalhou generoso aos quatro ventos. Aos que passarem dá-lhes o abrigo E o nocturno calor que se debruça Sobra as faces brilhantes de soluços. E se ninguém vier, ergue o sudário Que mil saudosas lágrimas velaram; Desfralda na tua alma o inventário Do templo onde a vida ora de bruços A Deus e aos sonho que gelaram. Ruy Cinatti


23 de Março de 2008

Thomas Lawrence

thomas%20lawrence.jpg pronta para sair antes do almoço de Páscoa


23 de Março de 2008

Na Palma da Mão

(para a minha amiga - e leitora - Luísa Cardoso Matias) Não tenho vocação para a saudade é o agora que amo em cada gesto em cada cheiro em cada cor em cada choro. É o brilho das coisas e a neblina o claro e o escuro da condensada noite, e a fluidez da manhã acordada sozinha. É o mistério das coisas que contemplo olhos para o futuro que trago comigo desde que nasci. Ângela Leite


23 de Março de 2008

Domingo de Páscoa

Conforme consta do calendário ocidental, instituído pelo Papa Gregório XIII em 24 de Fevereiro de 1582, quarenta e seis dias depois da quarta-feira de cinzas chega o domingo de Páscoa - o primeiro domingo depois da primeira Lua Cheia após o Equinócio de Março. Em 2008, a lua cheia brilhou na noite de 21, poucas horas após o equinócio. Cá está o domingo de Páscoa.


22 de Março de 2008

Ticiano

492px-Tizian_004.jpg esta noite, um anjo


22 de Março de 2008

Contigo

Contigo ascenderei para colher a mais túmida estrela, seremos a luz, o espaço, o corpo azul da manhã. Pela chama de um nome diremos o mundo, a onda indissolúvel, o lis, a frescura. Com o corpo trémulo respirando, colheremos o linho, os perfumes, as luzes e as ametistas - os lábios tecendo as sombras ébrias, as pálpebras e a folhagem, as liras e o jasmim ardente; os cabelos fluindo, retendo sobre si, o bálsamo, as fábulas, o silêncio tecendo os lugares de veludo, a rósea combustão, a luz do orvalho, síntese suprema, génese de todas as manhãs Maria do Sameiro Barroso


22 de Março de 2008

Mario Giacomelli

ma%20giacomelli.jpg sábado de aleluia, ou o festejo improvável


22 de Março de 2008

Na primavera

As palavras verdes só são azedas se amadurecidas na página entregues a uma branca corrosão dotempo vamos por isso ceder à impaciência e provar na primavera o amargo do fruto em flor quevale mais esta palavra verde ainda do que qualquer sinónimo meu amor Rita Taborda Duarte


22 de Março de 2008

Café do molhe

Perguntavas-me (ou talvez não tenhas sido tu, mas só a ti naquele tempo eu ouvia) porquê a poesia, e não outra coisa qualquer: a filosofia, o futebol, alguma mulher? Eu não sabia que a resposta estava numa certa estrofe de um certo poema de Frei Luis de Léon que Poe (acho que era Poe) conhecia de cor, em castelhano e tudo. Porém se o soubesse de pouco me teria então servido, ou de nada. Porque estavas inclinada de um modo tão perfeito sobre a mesa e o meu coração batia tão infundadamente no teu peito sob a tua blusa acesa que tudo o que soubesse não o saberia. Hoje sei: escrevo contra aquilo de que me lembro, essa tarde parada, por exemplo. Manuel António Pina


22 de Março de 2008

Voltes ou não voltes

Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas, mas as palavras estão prontas sobre os lábios como segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão. E, se de noite as repito em surdina, no silêncio do quarto, antes de adormecer, é como se de repente as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses em busca desses antigos recados levados pelo tempo: Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas. Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos. Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo; e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes. Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo, por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes. Maria do Rosário Pedreira


22 de Março de 2008

Incêndio numa hipótese de amor

Encontrei o segredo, a chave de vidro das palavras que escrevo; e tenho medo. Talvez nos campos imensos, onde o lírio floresce, na margem de rio que abriga, de manhã cedo, os teus pés de ninfa, num engano de idade, me tenhas visto à sombra de um rochedo; e se os teus lábios, entreabertos num torpor de romã, me tocaram num sonho bêbedo, deles só lembro, imprecisos, fluxos de incêndio numa hipótese de amor. Nuno Júdice


22 de Março de 2008

George Hyde-Lees

George%20Hyde-Lees.jpg retrato da mulher deW. B. Yeats


22 de Março de 2008

The Choice

The intellect of man is forced to choose perfection of the life, or of the work, And if it take the second must refuse A heavenly mansion, raging in the dark. When all that story's finished, what's the news? In luck or out the toil has left its mark: That old perplexity an empty purse, Or the day's vanity, the night's remorse. William Butler Yeats


22 de Março de 2008

Ninguém

Ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Podem utilizá-lo nos espelhos apagar com ele os barcos de papel dos nossos lagos podem obrigá-los a parar à entrada das casas mais baixas podem ainda fazer com que a noite gravite hoje do mesmo lado ninguém como nós conhece o sol Até que o sol degole o horizonte em que um a um nos deitam vendando-nos os olhos Sebastião Alba


22 de Março de 2008

Em ti, o poema

Em ti, o poema, o amplo tecido de água ou a forma do segredo. Outrora conheceste a margem abandonada do desejo, a sua extensão e principias a entregar os vasos alongados para receberes as mãos das chuvas. Apagaram-se junto aos olhos as praias, as árvores que se ergueram um dia sobre as estradas romanas, o vestígio dos últimos peregrinos, aves nuas que já desceram, cansadas, pelo interior do teu peito. Uma voz, no silêncio calmo das águas, esquece a mentira das primeiras colheitas, onde os nossos gestos perderam os sorrisos ou o orvalho que os cerca. Serenamente, começaram a fechar-se os sonhos de Deus no interior de novos frutos e, abandonado, fico junto do teu corpo, onde principia a sombra deste poema. Fernando Guimarães


21 de Março de 2008

Before The World Was Made

If I make the lashes dark And the eyes more bright And the lips more scarlet, Or ask if all be right From mirror after mirror, No vanity's displayed: I'm looking for the face I had Before the world was made. What if I look upon a man As though on my beloved, And my blood be cold the while And my heart unmoved? Why should he think me cruel Or that he is betrayed? I'd have him love the thing that was Before the world was made. William Butler Yeats


21 de Março de 2008

Botticelli

800px-Sandro_Botticelli_046.jpg bela e intemporal sagração da primavera, este nascimento de Vénus pintado pelo florentino renascentista Alessandro di Mariano Filipepi


21 de Março de 2008

Conhecer o mundo

Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento às coisas regulares e irregulares do mundo. Ou também: eu envio o amor sob a forma de muitos olhos e ouvidos a explorar, a conhecer o mundo. Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo da escuridão do mundo. Porque tudo se escreve com a tua letra. Fernando Assis Pacheco


21 de Março de 2008

Assinalando o equinócio

Vinham rosas na bruma florescida rodear no teu nome a sua ausência. E a si se coroavam, e tingiam a apenas sombra de sua transparência. Coroavam-se a si. Ou no teu nome a mágoa que vestiam madrugava até que a bruma dissipasse o bosque e ambos surgissem só lugar de mágoa. Mágoa não de antes ou de depois. Presente sempre actual de cada bruma ou rosa, relativos ou não no espelho ausente. E ausente só porque, se não repousa, é nome rodopio que, na mente, embruma a brisa em que se aviva a rosa. Fernando Echevarría


20 de Março de 2008

Março

Marco%20duque%20Berry.JPG Livro de horas do duque de Berry, nesta imagem assinalando o mês de chegada da primavera, pintado pelos irmãos Limbourg (Paul, Hermann e Jean) no século XV


20 de Março de 2008

Chamamento

Da margem do sonho e do outro lado do mar alguém me estremece sem me alcançar. Um bafo de desejo chega, vago, até mim. Perfume delido de impossível jasmim. É ele que me sonha? Sou eu a sonhar? Sabê-lo seria desfazer, no vento, tranças de luar. Nuvens, barcos, espumas desmancham-se na noite. E a vida lateja, longe, num outro lugar. Luísa Dacosta


20 de Março de 2008

Geraldo de Barros

geraldobarros.jpg porque hoje este contraste é sugestivo


20 de Março de 2008

Garras dos Sentidos

Não quero cantar amores, Amores são passos perdidos, São frios raios solares, Verdes garras dos sentidos. São cavalos corredores Com asas de ferro e chumbo, Caídos nas águas fundas, não quero cantar amores. Paraísos proibidos, Contentamentos injustos, Feliz adversidade, Amores são passos perdidos. São demências dos olhares, Alegre festa de pranto, São furor obediente, São frios raios solares. Da má sorte defendidos Os homens de bom juízo Têm nas mãos prodigiosas Verdes garras dos sentidos. Não quero cantar amores Nem falar dos seus motivos. Agustina Bessa Luís


20 de Março de 2008

Hooray Say The Roses

hooray say the roses, today is blamesday and we are red as blood. hooray say the roses, today is Wednesday and we bloom wher soldiers fell and lovers too, and the snake at the word. hooray say the roses, darkness comes all at once, like lights gone out, the sun leaves dark continents and rows of stone. hooray say the roses, cannons and spires, birds, bees, bombers, today is Friday the hand holding a medal out the window, a moth going by, half a mile an hour, hooray hooray hooray say the roses we have empires on our stems, the sun moves the mouth: hooray hooray hooray and that is why you like us. Charles Bukowski


20 de Março de 2008

A pele absoluta do silêncio

As palavras amendoam o sorriso, amado, amada conversam e conversam, deitados lado a lado depois, e devagar, maciamente passam à pele absoluta do silêncio Isabel Cristina Pires


20 de Março de 2008

Guerreiro japonês

warriorlg.jpg pronto para a luta quotidiana


20 de Março de 2008

Chuva

Fácil, tão fácil Como um espasmo, Pondo os teus dedos Na minha face, Nem sei se és água Ou se o meu sangue É que incendeias, Abrindo todas as minhas veias... Pedro Homem de Mello


20 de Março de 2008

Onde está agora o ramo dourado

(gentileza de Amélia Pais) que esgotei no seu corpo? Onde está o sabor a água doce arrancado das nossas bocas? E porque é que os pássaros cantores nunca mergulham na água ou caçam descendo da montanha? Escuta: o balido do pato selvagem, o queixume do mergulhão e o crocitar da garça, os falcões que uivam como lobos e as águias marinhas que relincham como cavalos, o alarido das gaivotas, e o pequeno mocho a latir na luz do dia: como ossos na garganta as suas próprias questões indestrutíveis. Robert Bringhurst, trad. Nuno Dempster


20 de Março de 2008

Morning Poem

Every morning the world is created. Under the orange sticks of the sun the heaped ashes of the night turn into leaves again and fasten themselves to the high branches --- and the ponds appear like black cloth on which are painted islands of summer lilies. If it is your nature to be happy you will swim away along the soft trails for hours, your imagination alighting everywhere. And if your spirit carries within it the thorn that is heavier than lead --- if it's all you can do to keep on trudging --- there is still somewhere deep within you a beast shouting that the earth is exactly what it wanted --- each pond with its blazing lilies is a prayer heard and answered lavishly, every morning, whether or not you have ever dared to be happy, whether or not you have ever dared to pray. Mary Oliver


19 de Março de 2008

Bronzino

A%20bronzino.jpg ou Agnolo Tori, também chamado Ângelo di Cosimo di Mariano ou Agnolo Bronzino, pintor maneirista florentino.


19 de Março de 2008

Da intimidade

"No entanto, a intimidade é mais do que um súbito reconhecimento de afecto entre duas pessoas. Eu sei que sim. Mas o que é, na verdade? Talvez seja a experiência que, de vez em quando, temos - raramente, é certo, mas temos - de nos tornarmos cada vez mais transparentes e de sentir o olhar cúmplice e familiar de alguém penetrando suavemente em todos os nossos poros? E, de igual forma, sentir que o nosso olhar interior consegue atravessar e compreender esse outro ser? (Embora, no entanto, comecemos pelo exterior). Nem sequer se pode pensar em intimidade sem antes meditar nas coisas a frio e ser capaz de infligir um ao outro uma espécie de ferida afectuosa." Robert Dessaix, in Corfu, trad. Ana Teresa de Castro, ed. Gótica


19 de Março de 2008

Confession

To say I'm without fear-- It wouldn't be true. I'm afraid of sickness, humiliation. Like anyone, I have my dreams. But I've learned to hide them, To protect myself From fulfillment: all happiness Attracts the Fates' anger. They are sisters, savages-- In the end they have No emotion but envy. Louise Glück


19 de Março de 2008

Guido Reni

Guido_Reni_042.jpg Imagem de São José, dedicada a todos os Pais (dedicados)


19 de Março de 2008

Olhos negros

Olhos negros, que da alma sois senhores Duvido com razão desse atributo, Que é muito, que quem mata, traga o luto, E é muito ver na noite resplendores: Se de negros, meus olhos, tendes cores, Como as almas vos dão hoje tributo. Quem viu que os negros com rigor astuto Os brancos prenda com grilhões traidores. Mas ah, que foi discreta providência O fazê-lo da cor da minha sorte, Por não sentir rigor tão desabrido. Para que veja assim toda a prudência Que foi prodígio grande, e pasmo forte, Em duas noites ver o Sol partido. Francisco de Vasconcelos


19 de Março de 2008

Escultura de amanhã

Dentro de um secular sossego nós somos a escultura de amanhã (trilhos de formiga descem no cabelo patinado de pó o coração) Tu e eu só estátuas de amanhã Não temos na mão a flor um livro uma espingarda uma cadeira gasta onde morrer E sem o monstro gótico apunhalado aos pés (Todos os sonhos são de pedra ou bronze não os meus de palha ou de papel) Tu e eu baixo-relevo vendidos tocados expostos em vida perseguidos pelos milionários e pelos mortos talvez que invadiram já o pedestal das estátuas Tu e eu elípticos de sexo ontem gritada no teu peito hoje secreto no meu ventre deserdados da sombra já sem gesto escultura de amanhã Luiza Neto Jorge


19 de Março de 2008

Ticiano

800px-Tizian_102.jpg a Vénus de Urbino, ou da perfeita nudez


19 de Março de 2008

Crónica Feminina

estava nua, só um colar lhe dava horizontes de incêndio sobre o peito, a transmutar, num halo insatisfeito, a rosa de rubis em quente lava. estava nua e branca num estreito lençol que o fim do sono desdobrava e a noite era mais livre e a lua escrava e o mais breve pretérito imperfeito só o tempo verbal lhe fugiria, no alongar dos gestos e requebros, junto do espelho quando as aves vão. toda a nudez, toda a nudez, toda a melancolia a dor no mundo, a deslembrança, a febre, os olhos rasos de água e solidão Vasco Graça Moura


18 de Março de 2008

cheguei há pouco do amor

cheguei há pouco do amor (cidade de gaivotas loucas e luzes cegas). não concordas? eu sei já sei: vês as coisas como falésias altas e impossíveis como ameias. cheguei há pouco do amor e trago comigo esse discurso aprendiz: o idealismo. desculpe mas o que pensa destas palavras do recomeço (desse caminho) dóceis letras da promessa? perdão perdão: há que ganhar o outro lado (uma chama de cada vez). se bem me lembro em pequeno as cigarras podiam ser domesticadas e cada adeus era um veneno. obrigado: obrigado. também me pareceu ser essa a sua opinião, cheguei há pouco do amor e vejo as certezas do mundo como uma ilusão. receio pelo eterno procuro a fantasia mas é sempre no ventre dessas gaivotas que se dão os primeiros beijos João Luís Barreto Guimarães


18 de Março de 2008

Neste Inverno

neste inverno queimei no lume a lenha do coração a língua sangra ao bater nos dentes e assim o espaço todo pode entrar em nós. Eu sei como o ar se ilumina: quando ausentes vive para além de nós a luz que respiramos e jamais morre o que amanhã amaremos. Eu sei de obscuros lugares onde é possível viver-se morrendo mas agora eu contemplo-te submersa num espelho de água porque quando amas eu vejo-te: estás sentada nas escarpas do sonho quase dormindo preparando-te para essa morte Manuel Silva Terra


18 de Março de 2008

Do romance

"Sob a perfeição de um romance, está subjacente uma sensação que me agrada de uma história em espiral. É uma dupla hélice: o desejo enrolado à volta da adoração. (...) É raro. E, naturalmente, condenado. Condenado à vulgaridade. A surpresa desaparece - como desaparece de um conto palavroso, por muito divertido que seja. Tal como o desejo. Mas no início, quando, inundados de prazer, ficamos espantados com o que acabámos de ver, o conto em espiral ainda está todo na nossa cabeça. Isso é romance." Robert Dessaix, in Corfu, trad. Ana Teresa de Castro, ed. Gótica


18 de Março de 2008

Lorezo Lotto

Lorenzo%20Lotto.jpg uma dama veneziana vinda do século XVI


18 de Março de 2008

Palavras

Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Alexandre O'Neill


18 de Março de 2008

poema de amor

Os segredos de amor têm profundezas difíceis de alcançar, tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face, nós olhando triste uma saudade imensa num corpo de mulher metamorfoseada. Sou demasiado são para me esquecer do tempo apaixonado que vivi nos teus braços e bebo no teu um coração meu adormecido no mar do meu cansaço ou no rio das minhas secas lágrimas. Tardará muito, se é que as horas contam, ver-te, de novo, perto de mim, longe, mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto, um dia a menos, o da tua chegada. E assim me fico, rente ao horizonte, abrigado da chuva numa cabine telefónica, e ligo para ti - que número? - ninguém responde do oceano que avança e retrai colinas, o vulto de um navio, tu na amurada acenando um lenço, ó minha pomba branca!... Como se tempestade houvesse e um naufrágio de chuva - as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se...- escurecendo os teus cabelos, ou, se preferes, a minha boca neles carregadas de ilhas, de nocturnos perfumes que ateiam lumes, ó minha idolatrada, na minh'alma inquieta um outro bater d'asas ou num jardim um leito de flores!... Ruy Cinatti


17 de Março de 2008

Assim foi...

Sê paciente, espera que a palavra amadureça e se desprenda como um fruto ao passar o vento que a mereça Eugénio de Andrade


17 de Março de 2008

Da verdade do amor

Da verdade do amor se meditam relatos de viagens confissões e sempre excede a vida esse segredo que tanto desdém guarda de ser dito pouco importa em quantas derrotas te lançou as dores os naufrágios escondidos com eles aprendeste a navegação dos oceanos gelados não se deve explicar demasiado cedo atrás das coisas o seu brilho cresce sem rumor José Tolentino Mendonça


17 de Março de 2008

Pierfrancesco di Jacopo Foschi

437px-Foschi_lady.jpg a renascença italiana nesta dama retratada


17 de Março de 2008

Uma Carta

sobre a cama as metáforas parecem-se mais belas e mais sublimes uma carta, o poder da língua que liberta os beijos e as pálpebras em êxtase, quando vens descendo em letra redonda e a perturbar o meu sono João Ricardo Lopes


17 de Março de 2008

O Segredo

O segredo está no amor, é evidente, mas também em sabermos afastar do nosso convívio o que não presta. Só quem se libertou do medíocre e do vazio poderá ser feliz. Torquato da Luz


16 de Março de 2008

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol que é feito de ternura amarrotada, da frescura que vem depois do Sol, quando depois do Sol não vem mais nada... Olho a roupa no chão: que tempestade! há restos de ternura pelo meio, como vultos perdidos na cidade em que uma tempestade sobreveio... Começas a vestir-te, lentamente, e é ternura também que vou vestindo, para enfrentar lá fora aquela gente que da nossa ternura anda sorrindo... Mas ninguém sonha a pressa com que nós a despimos assim que estamos sós! David Mourão-Ferreira


16 de Março de 2008

O presente absoluto

Duas bocas descobrem o veludo incandescente e saboreiam o sabor perfeito de um fruto liso que é um sumo do universo. Com a sua espuma constante os amantes tecem uma abóbada leve de seda e espaço. Vivem num volume cintilante o presente absoluto. Corpos encerrados em superfícies delicadas abrem-se como velas vermelhas e o calor brilha, clareiras acendem-se numa tranquilidade branca, os olhos embriagam-se de míriades de cores e todos os vocábulos são recentes como o orvalho, Criam a origem pela origem, num corpo duplo e uno, transformam-se subindo morrendo em verde orgia, inertes renascem de onda em onda radiantes, reconhecem-se no vento que os expande e os dissolve, o mundo é uma brecha um esplendor um redemoinho. António Ramos rosa


16 de Março de 2008

Thomas Lawrence

356px-Thomas_Lawrence_-_Elisabeth_Farren.jpg Elizabeth (née Farren), Countess of Derby (1759?-1829), actriz famosa; segunda mulher de Edward Smith Stanley, Earl of Derby, era notada na época pela sua vivacidade e estilo. Never adull moment bem podia ser o seu mote.


16 de Março de 2008

Sinfonia

Enternece-me a música que desprendem os teus olhos, melodia única, da família dos sonhos. Misteriosas paisagens espraiam no teu rosto o som líquido das vagas confluindo no porto. Não sei de outra sinfonia para a perfeição dos dias. Torquato da Luz


16 de Março de 2008

paixão

Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos erguer entre eles uma parede e abrir depois caminho à água. Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia de súbito em profundas minas, a memória das suas mais longuínquas galerias extrai aquilo de que é feito o coração. Ficávamos no quarto, onde por vezes o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior paixão que pelo coração se chega à pele. Não há então entre eles nenhum desnível. Luís Miguel Nava


16 de Março de 2008

Matéria de Inquietação

Tão grandes que são as dúvidas quando os amantes se amando sofrem feridas violentas os lábios mordidos tão Carícias martirizadas nos peitos a consumir-se: impulsos como aguilhões nas pétalas do prazer na flor redonda do grito E nos olhos os olhos beijam inundam lágrimas lágrimas: dentes agudos pousados nas bocas na incerteza de que o amor foi motivo. António Salvado


16 de Março de 2008

Salvador Dali

Dali_ChristofStJohnoftheCro.jpg Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, ou a memória distante de uma entrada triunfal em Jerusalém que terminou da pior maneira.


16 de Março de 2008

O medo era espantoso

Naquela noite a tormenta foi espantosa e ao cabo das tormentas pelo escuro dos meus olhos veio saindo um filão infindo de carvão, fria hulha, mil segredos minerais daquilo que era escrito não saberes. O medo era espantoso. Eu ouvia ressonar vozes diversas ao comprido do quarto azul e frio. Eu ardia de febre e indiferença. Por essas noites grandes a mim sozinho ia jurando que te amava ainda, ainda. Jorge Colombo


16 de Março de 2008

Amores

A nudez da palavra que te despe. Que treme, esquiva. Com os olhos dela te quero ver, que te não vejo. Boca na boca através de que boca posso eu abrir-te e ver-te? É meu receio que escreve e não o gosto do sol de ver-te? Todo o espaço dou ao espelho vivo e do vazio te escuto. Silêncio de vertigem, pausa, côncavo de onde nasces, morres, brilhas, branca? És palavra ou és corpo unido em nada? É de mim que nasces ou do mundo solta? Amorosa confusão, te perco e te acho, à beira de nasceres tua boca toco e o beijo é já perder-te. António Ramos Rosa


15 de Março de 2008

Escuta o vento

Folha que escuta o vento o som do muro erguido ao sol da erva nuvem clara feita o instante verde a pedra rara sobre o anel do tempo e do futuro. Boca do arespuma das palavras na janela do fogo abelha pura voando sobre os beijos mão que lavras na polpa das cerejas a mais pura morte que se escreve com a mágoa do medo sobre o rosto a longa asa rasando os lábios soltos pela água de quem faz com versos uma casa. Joaquim Pessoa


15 de Março de 2008

Representação do Modus

amata-tree.jpg representação gráfica do Modus Vivendi segundo um engenhoso mecanismo pós-moderno


15 de Março de 2008

Realidade

Por causa de um livro vieste ao meu encontro. Era Verão, não sabias de nada nem isso interessava. Palavras amavam-se fora de ti, no atropelo das emoções. Lá chegaria a primeira vez, o encontro apressado num lugar público. Desfeito o erro ao toque da pele, não sei se havia medo, a paixão queria-me no lugar exacto do teu coração. Palavras enrolam-se na sombra da vida a dor do sentimento. Atingido o espírito, o tempo da infância, a realidade. Em ti a solidão que o prazer não mata. Quero a beleza dos versos revelada. Alguns anos passaram sobre a nossa história que não acabou. A tarde envelhece e escrevo isto sem saber porquê. Isabel de Sá


15 de Março de 2008

Nome muito próprio

O seu nome é gracioso e muito próprio dela: Respira um vago tom de música inocente; E lembra a placidez de um lago transparente; Recorda a emanação tranquila duma estrela. Lembra um título bom, que logo nos revela A ideia do poema. E todo o mundo sente Não sei que afinidade entre o seu ar dolente, a sua morbidezza, e o próprio nome dela. E chego acreditar - ingenuamente o digo - Que havia um nome em branco, e Deus pensa consigo Em traduzi-lo enfim numa expressão qualquer: De forma que a mulher suave e graciosa Faz parte deste nome um tanto cor-de-rosa, E este nome gentil faz parte da mulher. Guilherme de Azevedo


15 de Março de 2008

Newton

newton2.jpg urgência sugestiva


15 de Março de 2008

Dias Inúteis

Ficarão perdidos os dias que não tivemos juntos. Dias inúteis encostados a paredes e muros envelhecidos. Dias sem calendário, hora evasivas e fugidas, desperdiçadas, afundadas em rios sem margens nem pontes, noites, noites e mais noites deitadas fora como casa desabitadas Carlos Lopes Pires


15 de Março de 2008

I Will Kiss Thy Mouth

Do fundo da cisterna a tua voz eleva-se e nenhuma masmorra abafa este ardor por ela aceso, no derradeiro véu, a minha pele. Nem as proféticas maldições, nem o teu repúdio, nem a luxúria do tetrarca me impedem de cumprir o mandamento primeiro da paixão: a colheita da tua face. Inês Lourenço


14 de Março de 2008

Stern

marilyn-monroe%20bert%20stern.jpg da beleza efémera, sabendo que não há outra


14 de Março de 2008

Quente, o teu coração quente

Quente, o teu coração quente pulsa no lusco-fusco. Palpita em toda a casa deserta que nos vê. Galga as sacadas altas, corre nas avenidas. É o silêncio do amor que abre as veias na tarde... Quente, o teu coração quente, é uma estrela no escuro que a pele das tuas mãos prolonga em minha pele... quem te amou e é já morto renova a primavera. Oh! doce comunhão de desejo e infinito, de saudades e de céu, de paraíso e grito! Água clara e tremente a boca, a sede, a fonte. Flor de sangue à corrente o teu coração quente. Natércia Freire


14 de Março de 2008

Vens de noite

Vens de noite no sonho sem pés entre páginas de gasta paciência quando a música findou e teu sorriso se desfez como um grão de pólen. Vens no veneno oculto de meus dias no silêncio dos meus ossos devagar arrastando em queda o nosso mundo. Vens no espectro da angústia na escrita inquieta destes versos no luto maternal que me devolve a ti. A escuridão desce então sobre o meu corpo quando o rosto da morte adormece na almofada. Ana Marques Gastão


14 de Março de 2008

Geraldo de Barros

barros%20geraldode.jpg o movimento dos contrastes


14 de Março de 2008

Dia a dia

Há lençóis de ternura nas tuas mãos solta-os naquela margem para que os peixes nos vejam brancos e matinais e o rio não leve só água mas também ar ar estendido dia a dia na tua água e nos teus joelhos que ardem brancos e matinais José Acácio Castro


14 de Março de 2008

Não encontro o retrato

Não, não encontro o retrato. Estavas de perfil, a luz de cinza caía-te dos braços, da casa próxima o fumo subia devagar os últimos degraus do outono, um cachorro saltava no terreiro, não tardaria a escurecer. Estavas de perfil, a mão acompanhando no regaço a rosa que te dei. Deixa-a ficar e ser, a mão, rosa também. Eugénio de Andrade


13 de Março de 2008

Kikuchi Yosai

180px-Ono_no_Komachi%20kikuchiyosai.jpg Ono no Komachi, famosa poetisa japonesa do século IX


13 de Março de 2008

Requiem

1. Solistício é o sol sozinho sem interstícios no horizonte liso 2. quando no altar se ilumina não tu mas eu viva para quê invocar lugares comuns para quê imaginar e porque não que se morreu de amor 3. o amor torna a morte mais difícil a Primavera sem ti será possível? 4. tua veia incendeia a madrugada a sombra que desfere és tu ainda Teresa Balté


13 de Março de 2008

Geraldo de Barros

geraldo_barros_ilustra.jpg a luz desfaz a sombra, ou a interrupção das trevas


13 de Março de 2008

Pequena litania para um amor familiar

sê devastador e violento como a tempestade ao abrir as gavetas, ao depor sobre a mesa nenhuma razão que outros conheçam. alimenta-te de mim e de ti, guarda as fotografias em paredes brancas onde nenhuma ave se demore, abre-me as feridas, as mais recentes e as antigas. sê brando e lento como as manhãs de dezembro ao desfazerem-se em neve, esquece os recados, os pequenos delitos escondidos em segredo. os telhados abrigam-nos da maledicência, do azar, daquilo que o tempo gasta em passar sobre nós. leva-me assim, como um acidente entre os dedos. sê luminoso e intenso, ó meu amor, retrato escondido, colecciona os declives, ensina-me essa geografia, sê inocente e puro, mesmo que a noite interrompa a vida e a nossa pele estremeça. deixa que bebamos apenas se o prazer magoar onde nasce a sede, fala-me de mim e de ti, se nos sentarmos nas dunas. Francisco José Viegas


13 de Março de 2008

Figuras de Estilo

este poema começa por te comparar com as constelações, com os seus nomes mágicos e desenhos precisos, e depois um jogo de palavras indica que sem ti a astronomia é uma ciência infeliz. Em seguida, duas metáforas introduzem o tema da luz e dos constrastes petrarquistas que existem na mulher amada, no refúgio triste da imaginação. A segunda estrofe sugere que a diversidade de seres vivos prova a existência de Deus e a tua, ao mesmo tempo que toma um por um os atributos que participam da tua natureza e do espaço criador do teu silêncio. Uma hipérbole, finalmente, diz que me fazes muita falta Pedro Mexia


13 de Março de 2008

Parmigianino

parmigianino_grande.jpg retrato de Antea 'La Bella', pintado por Girolamo Francesco Maria Mazzola, maneirista italiano dado à alquimia


13 de Março de 2008

Imortalidades

Há algo de imortal numa promessa, dizia Borges num poema seu. Lembra-me só, sem que eu sequer te peça, esse esquecido verso quem mo deu. Podia ser quem mais desconhecesse um jogo que entre versos e temores da nossa própria vida se tecesse em doída suspeita de fulgores Perfeitos os amores sem piedade; abolidas certezas; e a paixão podia ser tão só a claridade da noite a agonizar à nossa mão. Ninguém estende a mão a um poema que a memória não saiba transformar: neste, corpos e versos são o tema dos jogos que aprendemos a jogar. Como um amor que dói sem ter nascido, num verso cabe a vida e o seu olvido. Luís Filipe de Castro Mendes


13 de Março de 2008

Half An Hour

I never had you, nor will I ever have you I suppose. A few words, an approach as in the bar yesterday, and nothing more. It is, undeniably, a pity. But we who serve Art sometimes with intensity of mind, and of course only for a short while, we create pleasure which almost seems real. So in the bar the day before yesterday -- the merciful alcohol was also helping much -- I had a perfectly erotic half-hour. And it seems to me that you understood, and stayed somewhat longer on purpose. This was very necessary. Because for all the imagination and the wizard alcohol, I needed to see your lips as well, I needed to have your body close. C.P. Cavafy


12 de Março de 2008

Cintilações

A terra hoje é uma varanda sobre um jardim de Matisse um claro degrau de pedra nua no interior de um poço rodopiam as cores na água cintilações, folhas, frutos, sargaços raízes, e perto talvez os teus passos. Maria João Fernandes


12 de Março de 2008

Por que insistes?

Por que pairas? Por que insistes? Por que pairas se deixaste que te prendessem terrenas falsas tranquilidades? Por que negaste o que eras - nuvem íntegra, real, sobre as mentiras do mundo? Às vezes cantas em tudo. Mas é tão triste e tão tarde. Meu amor, porque vieste? Nunca tivera sabido como se nasce e se morre de repente ao mesmo tempo para sempre, ó arrastada humana deusa frustrada água irmã da minha sede luz de toda a claridade que só em ti neste mundo para mim era verdade. Alberto Portugal Correia de Lacerda


12 de Março de 2008

Early Spring

Harshness vanished. A sudden softness has replaced the meadows' wintry grey. Little rivulets of water changed their singing accents. Tendernesses, hesitantly, reach toward the earth from space, and country lanes are showing these unexpected subtle risings that find expression in the empty trees. Rainer Maria Rilke, translated by Albert Ernest Flemming


12 de Março de 2008

Moretto da Brescia

Moretto.jpg cujo nome era na realidade Alessandro Bonvicino, pintou belos retratos na primeira metade do século XVI. Nesta tela, mal cabe a melancolia do olhar.


12 de Março de 2008

Caligrafia

Os amores antigos, frases que os descrevam, anacrónicos monarcas exumados. Os anos passam, o absoluto cobre-se de fuligem e as cartas têm menos valor pela paixão que pelo estudo da caligrafia. Pedro Mexia


12 de Março de 2008

A Quem Perguntas?

(gentileza de Amélia Pais) A vós a quem a luz aquece, na abertura da luz, inteiramente resguardados, não é possível tocar-vos as entranhas e perguntar: Onde apanhastes isso? À beira do mar que contém as visões dos outros e os rostos a quem já não é possível molestar - a quem perguntas? Quando se abre uma cratera a fronteira renova-se, o fogo sossega. Quando te cobres de flores, quem sabe se é para adormeceres ou para acordares para os actos mais puros? Ivan Lau?ik


12 de Março de 2008

Antigo Mar Vermelho

Quando tu vens ao meu encontro sorrindo Rosa precipitada antigo Mar Vermelho meu coração abre-se Ana Hatherly


12 de Março de 2008

Geraldo de Barros

geraldodebarros.jpg a liberdade da abstracção


12 de Março de 2008

Coisas de Partir

Tento empurrar-te de cima do poema para não o estragar na emoção de ti: olhos semi-cerrados, em precauções de tempo a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti. Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar: tudo coisas de ti, mas coisas de partir... E o meu alarme nasce: e se morreste aí, no meio de chão sem texto que é ausente de ti? E se já não respiras? Se eu não te vejo mais por te querer empurrar, lírica de emoção? E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá? E se tu não estiveres onde o poema está? Faço eroticamente respiração contigo: primeiro um advérbio, depois um adjectivo, depois um verso todo em emoção e juras. E termino contigo em cima do poema, presente indicativo, artigos às escuras. Ana Luísa Amaral


12 de Março de 2008

I Sit And Look Out

I sit and look out upon all the sorrows of the world, and upon all oppression and shame; I hear secret convulsive sobs from young men, at anguish with themselves, remorseful after deeds done; I see, in low life, the mother misused by her children, dying, neglected, gaunt, desperate; I see the wife misused by her husband--I see the treacherous seducer of young women; I mark the ranklings of jealousy and unrequited love, attempted to be hid--I see these sights on the earth; I see the workings of battle, pestilence, tyranny--I see martyrs and prisoners; I observe a famine at sea--I observe the sailors casting lots who shall be kill'd, to preserve the lives of the rest; I observe the slights and degradations cast by arrogant persons upon laborers, the poor, and upon negroes, and the like; All these--All the meanness and agony without end, I sitting, look out upon, See, hear, and am silent. Walt Whitman


11 de Março de 2008

Os silêncios da fala

São tantos os silêncios da fala De sede De saliva De suor Silêncios de silex no corpo do silêncio Silêncios de vento de mar e de torpor De amor Depois, há as jarras com rosas de silêncio Os gemidos nas camas As ancas O sabor O silêncio que posto em cima do silêncio usurpa do silêncio o seu magro labor. Maria Teresa Horta


11 de Março de 2008

Apparently

Apparently with no surprise To any happy Flower The Frost beheads it at its play— In accidental power— The blonde Assassin passes on— The Sun proceeds unmoved To measure off another Day For an Approving God. Emily Dickinson


11 de Março de 2008

Dorothea Lange

do%20lange.jpg a usura dos dias


11 de Março de 2008

Porque eu sou o teu nome

Quem deita sal na carne crua deixa a lua entrar pela oficina e encher o barro forte: vasos redondos, os quadris das fêmeas - e logo o meu dedo se põe a luzir ao fôlego da boca: onde o gargalo se estrangula e entre as coxas a fenda é uma queimadura vizinha do coração - toda a minha mão se assusta, transmuda, se torna transparente e viva, por essa força que a traga até dentro, onde o sangue mulheril queimado a arrasta pelos rins e aloja, brilhando como um coração, na garganta - o sal que se deita cresce sempre ao enredo dos planetas: com unhas frias e nuas retrato as lunações, talho a carne límpida - porque eu sou o teu nome quando te chamas a toda a altura dos espelhos e até ao fundo, se teus dedos abertos tocam a estrela como uma pedra fechada no seu jardim selvagem entre a água: tu tocas onde te toco, e os remoinhos da luz e do sal se tocam na carne profunda: como em toda a olaria o movimento toca a argila e a torna atenta à translação da casa pela paisagem rodando sobre si mesma - a teia sensível, que se fabrica no mundo entre a mão no sal e a potência múltipla de que esta escrita é a simetria, une tudo boca a boca: o verbo que estás a ser cada tua morte ao que ouço, quando a luz se empina e a noite inteira se despenha para dentro do dia: ou a mão que lanço sobre esse cabelo animal que respira no sono, que transpira como barro ou madeira ou carne salgada exposta a toda a largura da lua: o que é grave, amargo, sangrento. Herberto Helder


10 de Março de 2008

The Shower

we like to shower afterwards (I like the water hotter than she) and her face is always soft and peaceful and she'll watch me first spread the soap over my balls lift the balls squeeze them, then wash the cock: "hey, this thing is still hard!" then get all the hair down there,- the belly, the back, the neck, the legs, I grin grin grin, and then I wash her. . . first the cunt, I stand behind her, my cock in the cheeks of her ass I gently soap up the cunt hairs, wash there with a soothing motion, I linger perhaps longer than necessary, then I get the backs of the legs, the ass, the back, the neck, I turn her, kiss her, soap up the breasts, get them and the belly, the neck, the fronts of the legs, the ankles, the feet, and then the cunt, once more, for luck. . . another kiss, and she gets out first, toweling, sometimes singing while I stay in turn the water on hotter feeling the good times of love's miracle I then get out. . . it is usually mid-afternoon and quiet, and getting dressed we talk about what else there might be to do, but being together solves most of it for as long as those things stay solved in the history of women and man, it's different for each- for me, it's splendid enough to remember past the memories of pain and defeat and unhappiness: when you take it away do it slowly and easily make it as if I were dying in my sleep instead of in my life, amen. Charles Bukowski


10 de Março de 2008

Dizem que a paixão o conheceu

dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros senta-se no estremecer da noite enumera o que lhe sobejou do adolescente rosto turvo pela ligeira náusea da velhice conhece a solidão de quem permanece acordado quase sempre estendido ao lado do sono pressente o suave esvoaçar da idade ergue-se para o espelho que lhe devolve um sorriso tamanho do medo dizem que vive na transparência do sonho à beira-mar envelheceu vagarosamente sem que nenhuma ternura nenhuma alegria nenhum ofício cantante o tenha convencido a permanecer entre os vivos Al Berto


10 de Março de 2008

Bonnard

bonnard_miroir2.jpg o espelho indiscreto


10 de Março de 2008

The Aliens

you may not believe it but there are people who go through life with very little friction or distress. they dress well, eat well, sleep well. they are contented with their family life. they have moments of grief but all in all they are undisturbed and often feel very good. and when they die it is an easy death, usually in their sleep. you may not believe it but such people do exist. but I am not one of them. oh no, I am not one of them, I am not even near to being one of them but they are there and I am here. Charles Bukowski


10 de Março de 2008

O Amante Diz Da Rosa No Seu Coração

Tudo quanto é feio, destruído, todas as coisas gastas, velhas o grito de uma criança à beira do caminho, o rangido de uma carroça que se arrasta, o pesado andar do lavrador, passo a passo sobre o limo invernal, maculam a tua imagem que engendra uma rosa no fundo do meu coração. Tão grande é a mácula das coisas torpes que não pode ser descrita; a minha ânsia é tudo reconstruir e sentar-me num verde outeiro solitário, com a terra, o céu, a água renovados, como um cofre de ouro para os meus sonhos da tua imagem que floresce numa rosa tão profundamente no meu coração. W. B. Yeats, trad.José Agostinho Baptista


9 de Março de 2008

Goya

goya.teresa-sureda.jpg Dona Teresa Sureda, no início do século XIX; eco longínquo: "Teresa? Qual Teresa?"


9 de Março de 2008

O problema

(dedicado à circe, para esclarecer sobre as razões do amor-próprio) "Ser sempre professor - é esse o problema do Kester. Sempre a querer esclarecer, sempre a querer abençoar. E é sempre um desastre. O que deve fazer o aluno, quando já está ensinado? Que deve fazer o acólito, quando os mistérios já lhe foram revelados? Qualquer pessoa com o mínimo de amor-próprio um dia levanta-se e diz, «Muito obrigado, foi uma verdadeira educação», e vai-se embora." Robert Dessaix, in Corfu, trad. Ana Teresa de Castro, ed. Gótica


9 de Março de 2008

Lost

Desolate and lone All night long on the lake Where fog trails and mist creeps, The whistle of a boat Calls and cries unendingly, Like some lost child In tears and trouble Hunting the harbor's breast And the harbor's eyes. Carl Sandburg


9 de Março de 2008

In medio virtus

"(...) todos os convidados pareciam ser de meia-idade, aquela idade intermédia, não totalmente desinteressante, quando finalmente se sabe aquilo que se quer e também se sabe que nunca se terá." Robert Dessaix, in Corfu, trad. Ana Teresa de Castro, ed. Gótica


9 de Março de 2008

Aos Domingos

Aos Domingos, iremos ao jardim. Entediados, em grupos familiares, Aos pares, Dando-nos ares De pessoas invulgares, Aos Domingos iremos ao jardim. Diremos nos encontros casuais Com outros clãs iguais, Banalidades rituais Fundamentais. Autómatos afins, Misto de serafins Sociais E de standardizados mandarins, Teremos preconceitos e pruridos, Produtos recebidos na herança De certos caracteres adquiridos. Falaremos do tempo, Do que foi, do que já houve... E sendo já então Por tradição E formação Antiburgueses - Solidamente antiburgueses-, Inquietos falaremos Da tormenta que passa E seus desvarios. Seremos aos domingos, no jardim, Reaccionários Reinaldo Ferreira


9 de Março de 2008

Dorothea Lange

d%20lange.gif conversa de domingo, em tempos sem leveza


9 de Março de 2008

The Love a Life can show Below

The Love a Life can show Below Is but a filament, I know, Of that diviner thing That faints upon the face of Noon— And smites the Tinder in the Sun— And hinders Gabriel's Wing— 'Tis this—in Music—hints and sways— And far abroad on Summer days— Distils uncertain pain— 'Tis this enamors in the East— And tints the Transit in the West With harrowing Iodine— 'Tis this—invites—appalls—endows— Flits—glimmers—proves—dissolves— Returns—suggests—convicts—enchants— Then—flings in Paradise— Emily Dickinson


9 de Março de 2008

Kikuchi Yosai

Murasaki_Shikibu%20Kikuchi%20Yosai.jpg a propósito de Murasaki Shikibu e da sua estória do Genji


8 de Março de 2008

Ouvir as estrelas

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" e eu vos direi, no entanto, Que para ouvi-las, muita vez desperto E abro a janela, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A via Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro no céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas." Olavo Bilac


8 de Março de 2008

Rodtchenko

alex%20rodtchenko.jpg a certeza da força telúrica, ou do eterno feminino


8 de Março de 2008

No Dia da Mulher, Natália

Harmonioso vulto que em mim se dilui. Tu és o poema e és a origem donde ele flui. Intuito de ter. Intuito de amor não compreendido. Fica assim amor. Fica assim intuito. Prometido. Natália Correia, in Livro dos Amantes


7 de Março de 2008

Desde a hora da infância eu não fui Como outros foram - eu não vi Como outros viram ? não pude tomar Minhas paixões duma primavera vulgar. Da mesma nascente eu não traguei A minha tristeza; eu não despertei Para o júbilo comum o meu coração; E tudo o que amei, eu amei em solidão. Nesse tempo da infância ? na madrugada Da vida mais tormentosa ? foi traçada Das profundezas do bem e do mal O mistério que me mantém sem igual: Da torrente ou da fonte, Do rubro penhasco do alto monte, Do sol que gira em meu torno Num matiz dourado de Outono ? Do relâmpago no céu Que tão perto de mim se deu ? Da tempestade e do trovão, E da nuvem que adquiriu a feição (Quando azul era o resto dos Céus) De um demónio aos olhos meus. Edgar Allan Pöe, trad. Henrique Fialho


7 de Março de 2008

Escola de Dosso Dossi

Ferrara%20Dosso%20Dossi%20Laura%20Pisani.jpg Laura Pisani, veneziana, aos vinte anos de idade, em 1525.


7 de Março de 2008

Impressão

Tens a cor mais límpida e real e a luminosidade calma das manhãs de primavera Eu carrego na alma a explosão boreal e a densidade rubra das tardes de inverno ens nos pés as estradas, os caminhos, o destino Tenho asas densas e mergulho cego num vôo sem rumo -caio, levanto, bato o pó e me aprumo- És música cristalina, o som puro, melodia solta ao vento Sou o tempo, semifusa, o contratempo Tu, a beleza límpida e afinadíssima da voz de soprano Sou Mozart ao piano. És da noite as estrelas iluminadas no céu enluarado Sou cometa incandescente e alucinado atravessando veloz, incendiando a paisagem És postal. Sou miragem. Tens a força da terra a suavidade da vinha, a tez da uva Sou vento que te remexe, vendaval, e, depois, o carinho precioso da abençoada chuva. És paisagem a céu aberto, montanhas, água, brisa, vela Sou Van Gogh escancarado na tela. És o riacho que mata a sede Sou a cascata incontrolável És descanso, a paz, o sono, a rede Sou o desejo inadiável És o calor que alenta os viajantes Sou a brasa que arde em seu fogo ruivo Encantas com a voz de mil pássaros cantantes Eu uivo. És, inteira, parte de mim que se perdeu. Sou, assim dividido, definitivamente inteiro teu. Nilson José Ribeiro


7 de Março de 2008

Entre ontem e amanhã

Desprende-te, coração, da árvore do tempo, soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados, outrora abraçados pelo sol, soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes. Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento na fronte tisnada do deus do campo, sob a camisa aperta o punho já a ferida aberta. Por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens voltar a curvar-se para ti, não te iludas se o Himeto te encher de novo os favos. De pouco vale ao lavrador uma erva na seca, de pouco um verão, face à nossa grande estirpe. E que testemunha afinal o teu coração? Entre ontem e amanhã balança, silencioso e estranho, e o seu bater é já a sua queda para fora do tempo. Ingeborg Bachmann


7 de Março de 2008

Rodtchenko

Rodtchenko.jpg o esforço da subida, carregando a recompensa


6 de Março de 2008

Hoje, na Casa Fernando Pessoa

Hoje, na Casa Fernando Pessoa, com apresentação de Eduardo Pitta, foi lançado o livro A Expressão na Rede - O Caso dos Blogues, de Luís Carmelo (Magna Editora). Seguiu-se um debate com moderação de Paulo Gorjão e com a presença dos bloggers Carla Hilário Quevedo, Isabela, Pedro Rolo Duarte e Vasco M. Barreto. Lá estivemos. Correu bem, teve momentos de reflexão/interrogação interessantes. Para mim, acima de tudo, foi motivo de justa celebração e mote para o magnífico jantar que se seguiu. E uma dúvida: onde é que eu estava com a cabeça para não ver as evidências? Pergunta retórica.


6 de Março de 2008

Amor de Goya

Qual das duas, a nua ou a vestida, contém a sua alma? Seguramente ambas percorreu poro a poro, afundou-se no seu peito, na suave cratera do ventre, na fenda gomosa que nenhum filho lhe deu e no bosquete, no acre perfume das axilas; beijou em ambas os olhos tremendamente inexplicáveis, o ponto equidistante dos lábios e sua delicada união, tocou-lhes na anca, nessa parte que nem a garupa do mais esbelto dos seus cavalos excedeu alguma vez e acariciou-lhes os joelhos, implorando, sem palavras, morrer entre eles. Se pudesse trocar de alma, a tua, Goya, escolheria. Felicidade da pintura: eis vivo, duplo, evidência cósmica, o que amaste e tu dentro delas, sangue, carnação, a luz distante, orgulhosa, dolorida de seus olhos. António Osório


6 de Março de 2008

O Espelho na Entrada

A casa rica tinha no vestíbulo um espelho enorme, imenso, muito antigo, comprado há pelo menos oitenta anos. Um perfeito rapaz, aprendiz de alfaiate - e aos domingos atleta amador - chegou com um embrulho. Entregou-o a alguém da casa que o levou p'ra dentro por causa do recibo. O mandarete ficou sòzinho à espera ali na entrada. E foi até ao espelho e começou a ver-se e a ajeitar a gravata. Uns minutos depois, trouxeram-lhe o recibo, e foi-se embora. Porém o espelho antigo que já vira, nos tantos anos em que fora espelho, milhares e milhares de imagens várias, ficou contente enfim, cheio de orgulho, pois recebera em si, dentro de si, inteira, tal beleza, por instantes. Kavafys, trad. Jorge de Sena


6 de Março de 2008

Dorothea Lange

dor%20lange.jpg tempos difíceis


6 de Março de 2008

Sound And Sense

True ease in writing comes from art, not chance, As those move easiest who have learned to dance. 'Tis not enough no harshness gives offense, The sound must seem an echo to the sense: Soft is the strain when Zephyr gently blows, And the smooth stream in smoother numbers flows; But when loud surges lash the sounding shore, The hoarse, rough verse should like the torrent roar; When Ajax strives some rock's vast weight to throw, The line too labors, and the words move slow; Not so, when swift Camilla scours the plain, Flies o'er the unbending corn, and skims along the main. Hear how Timotheus' varied lays surprise, And bid alternate passions fall and rise! Alexander Pope


6 de Março de 2008

Imagem e Semelhança

Un cronopio encuentra una flor solitaria en medio de los campos. Primero la va a arrancar, pero piensa que es una crueldad inútil y se pone de rodillas a su lado y juega alegremente con la flor, a saber: le acaricia los pétalos, la sopla para que baile, zumba como una abeja, huele su perfume, y finalmente se acuesta debajo de la flor y se duerme envuelto en una gran paz. La flor piensa: «Es como una flor». Julio Cortázar


5 de Março de 2008

Eikoh Hosoe

artwork_images_89028_136128_eikoh-hosoe.jpg como alguém disse, a natureza não tem compromissos


5 de Março de 2008

A Invenção da Escrita

Ler o verso da paisagem o outro lado da cantiga falando somente os fatos dessa caminhada antiga passada de boca em boca havia de se extraviar inventando muitos galhos estranhos do caminhar. Mas essa invenção da mente louvada seja louvada fez-se da pedra rochedo da parelha acasalada. Rochedo na forma dura na convivência de pedra dessa fêmea e desse macho que aqui o canto celebra: da fala a pedra se lasca no diário conviver dessa árvore com seus frutos para a caça de comer; do sol que vinha esquentar a alma do dia cinzento da chuva que lhes banhava o solo e os muitos rebentos; um recado a adocicar o coração da parceira lavrado no seu desejo de quedar-se à sua beira. Do gozo desses momentos no olhar que se guardava para a fala dos invernos a fala que se contava. Também cantava o registro da vida seus outros lados o fel dos fatos fanados de fados tão desgarrados. Mas o tempo adormecia nos poros de suas peles deixando também as trilhas no rosto pra que revele cada sinal cada ruga um desafio outra mágoa nada se esconde do tempo nem se bebe a mesma água. Dessa condição finita para marcar a passagem o homem cravou-se em rocha no rio de sua própria margem. Queria que outros soubessem não mais pela boca de outros que a história que é recontada vem nas curvas com sons roucos. Aníbal Beça


5 de Março de 2008

Bartolomeo Veneziano

Lucrezia_borgia_bartolomeo_veneziano-420.jpg Lucrécia, sem remorsos nem lamentações


5 de Março de 2008

Seguindo Horácio

À medida que envelhecia, foi-se minguando em passarinho, a beliscar sua fatia de pão, encharcado de vinho: precisava dessa leveza de folha seca sobre a mesa, que o vento, vindo da janela, como arcanjo das cercanias, dispersa, chama de uma vela tão fácil de ser apagada pelo sopro de Deus, ou por nada. ? Alberto da Cunha Melo


5 de Março de 2008

Testamento real

Fui nascido rei num pomar de luxúrias me puseram na cabeça o colar de chamas dos heróis. Conheci as rotas do mar e suas mitologias de concha e sal. Minha nau de exílios um dia ancorou nos mares de Ulisses. Construí palácios de cristal no vértice das escarpas. Meus rebanhos pastavam girassóis em todas as encostas dos mapas. Tive vassalos e cães fiéis. Duzentas amantes cavalgaram meu corpo da cabeça aos pés. Fui íntimo das águas e das marés cem vezes morri duzentas vezes ressuscitei voltei do exílio num esquife de pedra. Escrevi estas palavras no papiro para que reste de mim algum vestígio e para que saibam que um rei vive para sempre à sombra do herói. Francisco Carvalho


5 de Março de 2008

o Tempo por dentro

O amor é camisa que se carrega sobre o esqueleto sem saber que por dentro está cerzido o Tempo. E passa o Tempo por dentro das pedras não decifradas dos mapas portugueses do oceano que já foi mar e antes rio do assassinato do fundista solitário. E passa o Tempo por dentro de Publio Virgilio Marão sonhando Enéias de Ragusa no Adriático dos navegantes de Urano e Netuno de certos tons de abril que será sempre e estranhamente abril. E passa o Tempo por dentro do bisavô Affonso Donato visitado por um anjo no dia da sua morte. E passa o Tempo por dentro da Quinta Sinfonia de Mahler das janelas de Veneza dos 150 Salmos de Israel e daquilo que se amou de verdade. Passa o Tempo por dentro desta página como passa o incenso por dentro do labirinto de um relógio chinês. Neide Archanjo


4 de Março de 2008

Rodtchenko

Rodtchenko9.jpg por entre as sombras


4 de Março de 2008

Nunca direi que te amo

Sem nenhum aviso, as sardas de um rosto, vieram as sardas e eram notícia de uma navegação morena; uma voz rouquenha, como se abafasse o grito súbito sobre este porto de nenhum aviso. Nunca lhe direi sobre o amor:jamais faria declaração de posse às minhas mãos; nenhum registro público hei de requerer sobre meus pés; nem protocolos mandarei abrir sobre meus braços; mandato algum darei sobre meus olhos: cega-me a crueldade desta posse. De que haveria de falar, se a voz me some nos contrastes deste aviso súbito? Os segredos, não os desvendarei— as mãos, a voz, este "sim" — porque Ela, subitamente a tua voz morena: a flor, o vinho. Soares Feitosa


4 de Março de 2008

Tríptipo

I tudo o que possuis a alma, o pomar da lascívia a fome de palavras a sede de volúpia a sentença lavrada na poeira dos arquivos: tudo cabe, poeta, dentro de uma gaveta. II o olho da serpente passeia na treva o seu fulgor breve lambe o odor da presa entre folhas mortas mastiga as horas e uma ceia de besouros. III somos apanhados numa teia de mitos nada sabemos da alma e do logaritmo binário entre conchas e búzios baionetas e obuses a esfinge nos espreita nos decifra e devora. Francisco Carvalho


4 de Março de 2008

Paul Barnett

paul%20barnett.jpg momentos de viragem


4 de Março de 2008

Lição de espaço

O homem no espaço é a sombra de Sísifo. O espectro da esfinge O vertigem do tísico. O homem no espaço é a pedra no vértice. A folha que tomba no vórtice. Francisco Carvalho


3 de Março de 2008

Sweet anatomy

It was a face which darkness could kill in an instant a face as easily hurt by laughter or light 'We think differently at night' she told me once lying back languidly And she would quote Cocteau 'I feel there is an angel in me' she'd say 'whom I am constantly shocking' Then she would smile and look away light a cigarette for me sigh and rise and stretch her sweet anatomy let fall a stocking Lawrence Ferlinghetti


3 de Março de 2008

O tempo nos desfolha

O tempo nos desfolha com sua foice de murmúrios somos o rebanho de cabras pastando o caos somos os tufos de relva nas frestas da rocha batida pelo mar onde a nau de Ulisses ainda ancora somos a escória do mito a rota em que navega a nossa penúria. Francisco Carvalho


3 de Março de 2008

Mario Giacomelli

mario%20giacomelli.jpg o espaço em volta


3 de Março de 2008

Discurso do tempo

se a pressa iguala o santo à fera espera. Não peça à pressa insana faça-se, Quimera. Nem pense que o porvir será de pura primavera pois que ao nascer a flor em si se desinteira. Por isso o tempo passava antes dos relógios e era maior quanto selvagem era. Carlos Nóbrega


3 de Março de 2008

Dor

Não tenho mal nenhum, senhora minha, como se fosse puro, imaculado, como se fosse um anjo, um serafim, como se fosse deus, imune à dor. Eu nada sinto, dor nenhuma tenho, quer na cabeça, quer no amargo peito. Não tenho mal nenhum, senhora minha, perfeitamente são me sinto e puro. Se existe mal em mim, se existe dor, é a de morrer tão cedo, a pleno sol, envelhecer como qualquer mortal. E a dor maior, minha senhora bela, é dentro d'alma, bem profunda e aguda, a dor chamada angústia, a dor de ser. Possessão Nada é meu, nem a vida, que é minha. Nilto Maciel


3 de Março de 2008

Eva Rubinstein

eva%20rubinstein.jpg sol a preto e branco


3 de Março de 2008

Carpe Diem

Daqui a alguns anos, todas as novidades serão velhas. E ainda mais tarde, quando os calendários marcarem outro século, e quando esse outro século for velho, lápides testemunharão nossa passagem, efêmera passagem pelo mundo. É incrível admitir que este momento, este instante de agora, novo, atual, moderno, será passado um dia... os últimos modelos de automóvel (que já hoje raros chamam de automóvel) e os mais modernos aviões (que um dia se chamaram aeroplanos), tudo será futuramente atração de museu... Colhamos (doce ou amargo) o momento presente antes que ele se torne antigamente... Sânzio de Azevedo


2 de Março de 2008

Bonnard

pbonnard.jpg porque amanhã é outro dia


2 de Março de 2008

Epitagmata

estes poucos cabelos, este gesto, esta úlcera e as coisas de praxe: uma fita, este brilhante palavras, discos, móveis, automóvel, óculos e o que quiser mais desde que de novo abaixe docemente o rosto a nuca fique em abandono a carne em desmaiada espera fingindo embora ou a valer que a mesma dor é o prazer de dar prazer: volúpia de perder, vibrando apenas, por um instante, sob o rápido e amoroso golpe. Paulo Franchetti


2 de Março de 2008

Canção da oferta

Te ofereço um búzio do Mar Morto o molde de cristal da placenta de Cleópatra. Te ofereço a lágrima de areia do espantalho a alba seduzida pelas retinas da águia. Te ofereço a prata dos arroios a conjuração da pedra o mar acorrentado à quilha da nau de Ulisses. Te ofereço um ramo de fogo do pomar da lascívia um ramalhete de todas as pulsações da vida. Te ofereço a sobra de lã da túnica de Laertes tecida por Penélope. Francisco Carvalho


2 de Março de 2008

Cerejas

Onde te vi despir regresso agora para adormecer ou chorar os pequenos dias desse verão. Seria tanto contemplar a tua boca assim limpa de eu te cantar mordendo-a nupcial de não querer mais olhar essa nossa idade Joaquim Cardoso Dias


2 de Março de 2008

Stieff

jeanloup%20stieff.jpg manhã de domingo, sem pressa, ou o direito à preguiça em gozo e exercício


2 de Março de 2008

Brilho do amanhecer

d' água que brota na fonte do ser vou saciar a sede eterna cantar com a chuva mansa cambiar sentimentos tudo que ilumina o sorriso criança serei as asas orvalhadas nas águas cristalinas de suas retinas gritarei seu nome ao infinito completar o nada com o brilho do amanhecer José Geraldo Neres


1 de Março de 2008

máscara

bazaar-max-factor.jpg as cores da noite


1 de Março de 2008

Estado de Sítio

Cavalos Galope Noite Trote Num artifício de último instante Invento de Estado Um golpe Não sei o que fazer Com tanto Poder Tomar da fantasia o Reino É tão fácil Difícil é viver anônimo Nas ruas sem dono Desta cidade. Ricardo Alfaya


1 de Março de 2008

Esta tarde

esta tarde esmagado pela luz do mundo contemplei a cidade da varanda na alegria dos outros e nenhum sorriso foi preciso aos primeiros detalhes fortuitos desta paisagem entre prédios e fotografias e de muito longe o interior da floresta é o rito de iniciação sexual entre o medo e a raiva de não te ter amado Joaquim Cardoso Dias


1 de Março de 2008

Borisov-Musatov

Borisovmusatov_agave.JPG as cores da tarde


1 de Março de 2008

Ouve, meu anjo

(gentileza de Jaime Roriz) Ouve, meu anjo: Se eu beijasse a tua pele? Se eu beijasse a tua boca Onde a saliva é mel? Tentou, severo, afastar-se Num sorriso desdenhoso; Mas aí!, A carne do assassino É como a do virtuoso. Numa atitude elegante, Misterioso, gentil, Deu-me o seu corpo doirado Que eu beijei quase febril. Na vidraça da janela, A chuva, leve, tinia... Ele apertou-me cerrando Os olhos para sonhar - E eu lentamente morria Como um perfume no ar! António Botto


1 de Março de 2008

Parâmetro

Deus é mais belo que eu. E não é jovem. Isto sim, é consolo. Adélia Prado


1 de Março de 2008

Bonnard

bonnard-pierre-iris-et-lilas-2400361.jpg as cores da manhã


1 de Março de 2008

Love Letter

Not easy to state the change you made. If I'm alive now, then I was dead, Though, like a stone, unbothered by it, Staying put according to habit. You didn't just tow me an inch, no-- Nor leave me to set my small bald eye Skyward again, without hope, of course, Of apprehending blueness, or stars. That wasn't it. I slept, say: a snake Masked among black rocks as a black rock In the white hiatus of winter-- Like my neighbors, taking no pleasure In the million perfectly-chisled Cheeks alighting each moment to melt My cheeks of basalt. They turned to tears, Angels weeping over dull natures, But didn't convince me. Those tears froze. Each dead head had a visor of ice. And I slept on like a bent finger. The first thing I was was sheer air And the locked drops rising in dew Limpid as spirits. Many stones lay Dense and expressionless round about. I didn't know what to make of it. I shone, mice-scaled, and unfolded To pour myself out like a fluid Among bird feet and the stems of plants. I wasn't fooled. I knew you at once. Tree and stone glittered, without shadows. My finger-length grew lucent as glass. I started to bud like a March twig: An arm and a leg, and arm, a leg. From stone to cloud, so I ascended. Now I resemble a sort of god Floating through the air in my soul-shift Pure as a pane of ice. It's a gift. Sylvia Plath